O Corpo Sentado
Nosso corpo é nosso contato com o mundo.
A gente se movimenta para viver como as outras espécies animais e os movimentos desempenham um papel importantíssimo na vida e na saúde.
Todos os órgãos e suas funções são direta ou indiretamente afetados pela motricidade.
Movimentamo-nos sem a necessidade de pensar nos movimentos. Eles acontecem automática e naturalmente, sempre em sinergia com o meio ambiente. Pois mover-se é adaptar-se continuamente.
Cada pessoa desde que nasce começa a desenvolver um modo próprio de se movimentar e, durante o seu desenvolvimento, vai organizando “scripts neuromotores”.
São “conversas” do cérebro que registra os nossos sentidos (que informam sobre o próprio corpo e o ambiente) com os músculos e articulações, onde acontece o movimento, organizando o corpo e a motricidade de modo coerente (no tempo e no espaço), eficiente e confortável.
É o que chamamos padrões automáticos neuromotores, que são as sequências de movimentos naturais realizados pelo corpo para a vida cotidiana. Cada pessoa desenvolve seu “Script neuromotor individual”, desde o nascimento, experimentando o mundo com seu corpo.
Assim aprendemos a dar laços sem olhar, abotoamos a roupa sem precisar prestar atenção, levamos a mão aos olhos, nos coçamos, dirigimos enquanto conversamos, encontramos o celular no bolso sem perder a atenção na paisagem, entre outras mil ações simples, cotidianas, que envolvem nossa motricidade.
Mover-se precisa ser automático e confortável, para ser funcional.
Nosso corpo, sua anatomia e seus sistemas, é antiquíssimo (cerca de 300.000 anos). Humanos eram nômades, expostos aos predadores e adversidades ambientais. Para comer, era necessário achar a comida, durante muitas horas de busca e coleta ou caçando. Gastava-se muita energia para conseguir alimento. E comia-se pouco.
Viver, naquele tempo era extremamente cansativo.
Nosso corpo então evoluiu para economizar energia e descansar sempre que possível. Sentar é o melhor descanso (80% dos músculos que sustentam o próprio corpo na vertical, relaxam quando sentamos) e o peso do tronco se transfere naturalmente para o esqueleto ósseo.
Mas, originalmente, nossos ancestrais permaneciam muito pouco sentados… era uma situação de repouso, muito raramente adotada no cotidiano dos humanos primitivos.
Herdamos destes ancestrais um físico “cansado e faminto”. Pois desde aqueles tempos remotos conservamos o mesmo corpo, com insignificantes diferenças na anatomia (estrutura) e na fisiologia (função).
Biologicamente, a evolução é um processo lentíssimo.
Nossa evolução biológica, entretanto, foi atravessada pela segunda evolução (cultural e tecnológica) que, ao longo da história se deu a partir do bipedalismo [ andar utilizando apenas dois membros], e a liberação das mãos, o crescimento do cérebro e o desenvolvimento de linguagem simultâneos, permitiram /propiciaram, evoluirmos para a arte, a subjetividade, a mente, o homo. sapiens. Cultural e tecnológico. O uso das mãos desenvolvendo habilidades, promoveu tecnologias, mais e mais substitutivas das tarefas cotidianas. Desde os arados primitivos até nossa era digital, fomos progressivamente nos sentando para nossas atividades. Pois sentar é a melhor posição para o uso das mãos.
Lembremo-nos, entretanto, que ainda vivemos em corpos “pré-históricos”, para os quais, sentar é descanso.
Nosso cotidiano com hábitos e atividades cada vez mais sedentárias é a evolução resultante da cultura e das tecnologias na vida humana.
Desde a segunda metade do século XX vivemos um estado de sedentarismo radical. Passamos a sentar até para transportar-nos. Estamos sentados em casa, na escola, no trabalho, no lazer, no transporte e na vida social.
Porque sentar é a melhor posição para usar as mãos!
Mas para nosso corpo tão antigo marcado pelo “cansaço de milhares de anos”, sentar continua sendo uma posição para repouso, porque automaticamente, toda a musculatura que sustenta o peso do próprio corpo na posição vertical (músculos antigravitacionais) relaxa, produzindo uma resposta imediata de “descanso”, pois poupa energia correspondente ao uso de 80% de nossos músculos. O apoio do peso então, se transfere para as articulações. Isso não é uma escolha, é um padrão humano, natural, como andar bípede e falar.
Crescemos e nos desenvolvemos, passando uma grande parte do dia sentados. Em geral, fazendo uso constante das mãos e os braços, mas com o tronco e as pernas “repousando”.
Entretanto, muitas pessoas sentem dores no corpo no dia a dia, ao caminhar, ou apenas ficar de pé, ao mudar de posição no sofá, ao carregar algum peso, deitar-se na cama ou levantar-se de uma cadeira, entre outras atividades cotidianas.
Não é incomum hoje ouvirmos queixas das pessoas ao executarem gestos simples como elevar o braço para pegar algo, girar a cabeça, olhar para baixo ou abaixar para recolher alguma coisa do chão. Dores que parecem inexplicáveis, que podem ser eventuais ou persistentes, agudas e súbitas ou cíclicas, recorrentes e mansas.
Por acaso já lhe aconteceu?
Já pensou que uma dor pode ser provocada lenta e silenciosamente, pelo modo como senta, como usa o corpo nos esforços no dia a dia, sem que você perceba esta relação?
Precisamos nos adaptar aos ambientes, aos mobiliários, ao nosso vestuário, aos objetos que nos cercam…nos adaptamos fisicamente, para usarmos as tecnologias inseridas em nossa vida e para desenvolver as habilidades necessárias para a vida que levamos.
Fruto dessa adaptação, acabamos passando muito tempo, talvez a maior parte do nosso, dia ativo sentados.
Portanto, sobrecarregando os ossos.
Cada pessoa a seu modo, pois cada um tem seu jeito singular de se movimentar e parar naturalmente, pois mover-se não requer pensamento ou planejamento. Assim, cada pessoa, seguramente sobrecarrega certas articulações, permanecendo sentada e seu modo de sentar e levantar estará associado aos fatores biomecânicos que provocam as dores articulares e musculares.
A sustentação do peso nos ossos, ao longo do tempo, provoca inflamação e consequente degeneração, fragilizando a articulação e causando dor.
O “cérebro motor”, só inscreve no nosso “script pessoal”, as cadeias musculares e articulações presentes na nossa movimentação habitual. Como estamos quase sempre sentados, para o cérebro, quase não temos pernas, nem parede abdominal fortes, pois estas musculaturas ficam relaxadas, “desligadas” durante todo o tempo em que estamos sentados.
No “registro do corpo sentado”, no cérebro, a presença dos músculos de sustentação do corpo, que são os abdominais, glúteos, dorsais e a maior massa das pernas, é bastante “apagada” no script neuromotor cortical, por “falta de uso”.
O que faz com que os ossos recebam o apoio do peso do tronco com nossos órgãos e vísceras, além da cabeça e dos braços.
Esta sobrecarga aplicada aos ossos na movimentação do dia a dia, nos ajuda a compreender e elucida as “inexplicáveis” ou intratáveis dores articulares tão frequentes em todas as faixas etárias da população. Por isso, não basta fortalecer os músculos antigravitacionais (sustentadores), é preciso que o cérebro perceba- ou melhor, sinta estas forças disponíveis no corpo, mas ausentes na motricidade espontânea, por falta desse “registro” no script cerebral, enquanto nos movemos automaticamente.
Sentimos dor, porque nossa estrutura vertical é toda sustentada não pela musculatura, capacitada para fazer força, mas nos calcanhares, joelhos, quadris e pela coluna, quer estejamos nos movimentando ou não.
Mas, movimentar-se é tão natural, como dormir, respirar ou comer. Por isso, espontaneamente, sempre nos movemos da maneira mais confortável e eficiente que podemos.
Desta forma, lenta e silenciosamente, os ossos sofrem pressões e micro traumas contínuos, causados pela ação do próprio peso, durante os movimentos, que provocam as degenerações das articulações, tendões e ligamentos, discos da coluna vertebral. As conhecidas artroses de joelhos, ombros (como nos apoiamos nos braços!), coluna e quadris. Essa ação silenciosa do peso sobre o esqueleto acontece o tempo todo, simplesmente quando estamos sentados, parados de pé, caminhando, elevando ou sustentando os braços ou enquanto nos movimentamos “confortavelmente”, o tempo todo, literalmente.
Não precisamos focar no “corpo em si” enquanto nos movemos e vivemos. Nossa atenção precisa estar voltada para nossas ações e relações no mundo que nos cerca.
Nossa motricidade se desenvolve para que sejamos capazes fisicamente, realizando movimentos, espontânea e naturalmente.
Sempre do modo mais econômico, confortável e eficiente possível. Por isso, só quando temos alguma lesão, inflamação, com dor, nos damos conta de nossa coluna, é quando o apoio do peso se faz notar, sob forma de dor.
Para tratarmos as dores articulares, de origem biomecânica (funcional) é necessário “acordar” os músculos responsáveis pela sustentação da postura do corpo e do peso de nossos órgãos e sistemas internos.
A organização do peso nos apoios do pé é fundamental na ativação das forças musculares que sustentam nosso corpo na vertical.
Para reorganizar essas forças precisamos primeiro perceber quais são nossos pontos de apoio (no esqueleto). Depois experimentar modos, levemente diferentes de executar os mesmos movimentos. “Sentir e ativar” a musculatura anti-gravitacional aprendendo, conscientemente a fazer os mesmos movimentos e esforços, de outro jeito: ativando, usando os músculo que, distribuindo e assumindo o peso, deixam aos ossos, naturalmente, seu papel de dar direção e precisão ao corpo em movimento.
Tratar as dores mecânicas requer uma mudança do ‘script’ automático cerebral, fazendo -se uma reprogramação neuromotora, baseada em conscientização do corpo, da postura e dos movimentos individuais associada a um processo de experimentação, descoberta e treinamento de novas maneiras de fazer os mesmos movimentos, sem impacto articular, usando a musculatura para sustentação da postura e do peso do tronco nos deslocamentos e mudanças posturais, necessário para construção de um novo padrão cerebral automático.
Isto se alcança com orientações para a vida cotidiana, especialmente para sentar-se e levantar-se, aprendendo e repetindo como “sentar ativamente”, ativando e usando a força das pernas e do tronco, inclusive na posição sentada (isso não é natural, em absoluto, mas reconheçamos que nossa evolução, segue em curso, desconstruindo essa musculatura). O cérebro é um “órgão de aprendizado”, a repetição é seu modo de registrar, assim, alguém determinado a fazer este resgate muscular funcional, motivado pelo alívio de sua dor, pode reprogramar-se para um padrão de movimento mais fisiológico, natural e, curativo e/ou preventivo, com um salto na qualidade da sua vida.