O centenário do avião Aribu
Revista Parcerias Estratégicas, Brasília-DF, v. 22, n. 45, p. 175-204, jul-dez 2017.
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1. O passado esquecido
A pequena Rua Avião Aribu, cujo código de endereçamento postal é 12227-090, está localizada no bairro Jardim Souto, na cidade de São José dos Campos, no estado de São Paulo. Ela está situada à margem esquerda da Avenida dos Astronautas, no sentido de quem vai da Rodovia Presidente Dutra para a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer). Essa é apenas uma simples descrição da localização de uma rua da cidade que é considerada a referência do complexo aeroespacial brasileiro.
A Rodovia Dutra foi concluída em 1951 e a Embraer foi fundada em 1969. O avião Aribu, por sua vez, foi concluído há 100 anos e voou em 1917, no Rio de Janeiro, cerca de dez anos depois do voo do 14-bis de Santos Dumont, na França. O Aribu foi inteiramente concebido, projetado e construído por um brasileiro, o então tenente do Exército Brasileiro, Marcos Evangelista da Costa Villela Júnior.
É relevante mencionar que há algumas incertezas acerca da data em que o Aribu voou pela primeira vez. Por exemplo, na obra de Lavenère-Wanderley (1965), que conta a história da Força Aérea Brasileira, consta, na página 55, apenas que o Aribu voou em 1917. Em Sales (2012), consta a data de 16 de abril de 1917 como sendo a do primeiro voo do Aribu e são dadas duas referências para sustentar tal afirmação. Na primeira (INCAER, 1988), que trata da história da aeronáutica brasileira até 1920, está explicitada a data de 16 de abril, porém, não está claro que o Aribu tenha voado em 1917. Pelo texto das páginas 503 e 504, pode-se até mesmo admitir que o voo possa ter ocorrido em 1918. Na segunda (CALAZA, 2007), está explicitada a data de 16 de abril de 1917, mas não há referência a documentos ou fatos que comprovem tal afirmativa. Por outro lado, em INCAER (2016), que apresenta a história da construção aeronáutica no Brasil, consta, na página 7, que o Aribu voou em 16 de abril de 1916. Nessas obras, não há menção a documentos que comprovem as datas citadas, incluindo notícias publicadas em periódicos da época, por exemplo. Em Andrade e Piochi (1982), que é um livro que trata da construção aeronáutica no Brasil, não há sequer alusão à data em que o Aribu voou. Entretanto, as informações oriundas do acervo de família, como legendas de fotografias originais do Aribu e outros textos, apontam 1917 como sendo o ano em que o Aribu, efetivamente, voou pela primeira vez.
Apesar de o Aribu ter feito sua estreia no cenário brasileiro há mais tempo que a Rodovia Dutra e a Embraer, ele permanece praticamente submerso na história nacional, assim como seu construtor. Se não fosse essa singela homenagem da cidade de São José dos Campos ao referido avião, quase nenhuma lembrança pública dessa conquista tecnológica centenária restaria para as futuras gerações.
A Rodovia Presidente Dutra conecta São Paulo ao Rio de Janeiro, as duas maiores cidades do Brasil. A Embraer é uma das principais empresas do País e a mais importante do setor aeronáutico nacional. Tanto a Dutra quanto a Embraer são conhecidas por quase todos os brasileiros. Porém, poucos conhecem o avião Aribu, que empresta seu nome a essa pequena rua de São José dos Campos, tampouco conhecem o seu projetista e construtor.
Antes de Marcos Villela Júnior, poucos tinham se aventurado a construir aviões no Brasil, como Lavaud, em 1910, em São Paulo (e.g. ANDRADEe PIOCHI, 1982; ALEXANDRIAe NOGUEIRA, 2010), e d`Alvear, em 1914, no Rio de Janeiro (e.g. ANDRADE e PIOCHI, 1982). Marcos Villela Júnior foi o terceiro a concluir com sucesso tal empreitada (e.g. ANDRADE e PIOCHI, 1982). Pouco depois, em 1918, terminou a construção do primeiro avião biplano no País, o Alagoas, também no Rio de Janeiro. Ele foi o primeiro militar a construir aviões em território nacional.
Cerca de 50 anos antes da criação da Embraer, o projetista e construtor do Aribu e do Alagoas já sonhava com a criação de uma indústria aeronáutica genuinamente nacional, fato que, infelizmente, não chegou a presenciar, já que faleceu em 17 de novembro de 1965. O exemplo de determinação para levar adiante ideias tecnológicas desafiadoras que ele nos deixou talvez possa influenciar as próximas gerações a não desistir diante de adversidades e a trabalhar para mudar ambientes hostis a essas ideias, de forma a evitar que erros semelhantes aos que ocorreram na década de 1910 sejam repetidos no futuro. O registro da data simbólica do centenário do primeiro avião construído por Marcos Villela Júnior tem, portanto, esse objetivo.
Este artigo é fundamentado em conteúdo publicado em livros e jornais, além de relatos de familiares, principalmente por parte de Denizar Villela[1], um dos filhos de Marcos Villela Júnior. Serviu como guia para este trabalho, ainda, o material do acervo sobre o construtor do Aribu, mantido por Denizar Villela. Em particular, no intuito de aproximar os fatos da fonte, foram reproduzidos trechos de entrevistas de Marcos Villela Júnior publicadas em diferentes épocas.
2. O idealizador e construtor do Aribu
2.1. O sonho de criança
Marcos Villela Júnior, desde cedo, se encantara com a possibilidade de o homem poder voar. No entanto, demorou cerca de quatro décadas, desde o seu nascimento, na pequenina Vila Meirus, no município de Pão de Açúcar, Alagoas, em 24 de março de 1875, até que seu sonho fosse realizado, em 1917. De acordo com Denizar Villela, na tenra idade, Marcos Villela Júnior foi levado para a cidade de Bom Conselho, no interior de Pernambuco, onde seus pais, Marcos Evangelista da Costa Villela e Maria Rosa de Lima Villela, compraram uma grande extensão de terra com um engenho de cana-de-açúcar. Lá, Marcos, que era o terceiro dos dez filhos do casal, foi criado. Gostou de ter estudado na Escola Pública da Baixa Grande porque, desde pequeno, tinha a mania de estudar. Essa sua característica seria essencial para os desenvolvimentos tecnológicos que ele fez quando se interessou por aviação.
Marcos Villela Júnior contou em uma entrevista que, desde a infância, sempre manifestou grande vocação por aeronáutica. Disse ele:
Observando o voo dos urubus, conclui que também nós poderíamos voar, pois, pensava, se o urubu pode voar, o homem, inteligente e engenhoso, poderia imitá-lo. Certa ocasião, arranjei folhas do cacho do coqueiro e pedi a meus irmãos que as amarrassem aos meus braços. Atirei-me do alto de uma escada contra o vento. Caí, machuquei-me muito, e esfolei todo o braço esquerdo. Minha mãe não teve dúvida: pegou na cordinha benta dos padres e deu-me uma surra. Nunca mais me esqueci disso. (ver SOUZA, 1943).
2.2. O sonho de adolescente
Além do desejo de voar e construir máquinas de voar, também alimentava a vontade de ser oficial do Exército. Segundo relato de Denizar Villela, ele dizia: “Meu filho, eu não nasci para ser dono de engenho, eu nasci para ser oficial do Exército”. E, assim, quando estava com cerca de 16 anos, combinou com seus irmãos mais moços e, numa madrugada, abandonou o lar em Bom Conselho, montou numa égua, que era de sua propriedade, e pôs-se na estrada, com o objetivo de ir a Recife se alistar. Conseguiu ser aceito no Exército com a idade de 17 anos. O capitão que o alistou, impressionado com a obstinação do jovem que queria fazer carreira como militar, alterou sua idade para que ele pudesse ser recrutado. Marcos também disse a Denizar: “Meu filho, quando eu botei a farda de soldado, a impressão que eu tinha é que eu era já um general”.
Por ter instrução, galgou os postos da hierarquia militar até conseguir, como 2º sargento, requerer matrícula na Escola Preparatória e de Tática do Exército, no bairro Realengo, no Rio de Janeiro. Seguiu para a então capital da República para se matricular na instituição de ensino que o levaria a ser oficial. Acabou ficando como adido ao Regimento de Artilharia na Vila Militar, uma vez que, ao chegar ao Rio, foi notificado de que as matrículas para aquele ano já haviam se encerrado. De nada adiantou ele argumentar que tinha autorização do ministro da guerra para ser matriculado. Nesse intervalo de tempo em que ficou como adido, veio uma grande surpresa: foi convocado para participar do combate à revolta de Canudos, na Bahia.
2.3. A primeira luta
Assim, antes de se preparar para ser oficial do Exército, Marcos Villela Júnior foi convocado para participar de uma das mais difíceis lutas no Brasil. Seguiu em duas campanhas para Canudos, a terceira e a quarta, comandadas, respectivamente, por Moreira César e Arthur Oscar. Foi forjado, como soldado, numa das mais sangrentas batalhas em solo brasileiro. Em uma dessas campanhas, foi gravemente ferido. A sua história na guerra de Canudos foi contada por ele próprio, em 1951, aos 76 anos, em um livro publicado após a sua morte, que tem duas edições (VILLELA JR., 1988; 1997).
2.4. De volta aos sonhos de infância e adolescência
De volta do conflito em Canudos, ele, finalmente, conseguiu se matricular na Escola Preparatória e de Tática, onde terminou o curso de oficial do Exército. Assim, depois de uma experiência marcante de vida, ele conseguiu realizar um dos seus maiores desejos: ser oficial do Exército.
O sonho de criança de voar como os pássaros, no entanto, ainda estava por se tornar realidade. Essa vontade ele sempre carregou consigo, tanto que, quando aluno da Escola de Tática, costumava conversar com os seus colegas sobre suas ideias acerca da aviação. Naquela época, o avião ainda não havia sido inventado e a dirigibilidade de balões era um problema a ser resolvido. Nessa mesma unidade de ensino, um episódio, em particular, ocorrido em 1900, no qual ele discorre sobre esse problema, é muito interessante e merece ser reproduzido da entrevista que foi concedida a José Garcia de Souza e Jorge Lacerda (SOUZA, 1943), uma vez que a associação que ele faz entre um navio e um balão mostra o seu entendimento acerca desse tema:
Infelizmente são poucos os que ainda vivem para que possam testemunhar o fato ocorrido naquela época, em que tanto se discutia a dirigibilidade dos aviões[2]. Estávamos no recreio e um colega mostrava-nos um jornal em que se dizia ser a dirigibilidade um dos pontos mais culminantes do momento. Respondi, em presença dos meus colegas José Joaquim de Andrade, falecido há pouco, no posto de general reformado, Luiz Lindenberg de Amora, hoje capitão reformado, e João Damasceno Ribeiro de Moraes, desenhista do Ministério da Guerra: – É perfeitamente possível. Todos se riram, mas não lhes dei atenção. Convidei João Damasceno Ribeiro de Moraes, que já era um bom desenhista, a ir ao quadro negro e desenhar um charuto. Expliquei a razão porque deveriam ter os balões aquela forma, pois recordava-me das aulas de meu professor de balística sobre as questões dos projéteis. Disse- lhes: – pondo um motor, uma hélice e um leme, como têm os navios, estou convencido de que, desta forma, se resolverá a dirigibilidade. Passou-se um ano e eu li o notável feito de Santos Dumont contornando a torre Eiffel e resolvendo o problema da dirigibilidade aérea. Então quem voltou aos colegas fui eu para lembrar-lhes do que lhes havia dito um ano antes. Dois deles ainda vivem e poderão atestar a veracidade desse fato.
Porém, mais uma vez, um obstáculo foi colocado em seu caminho no sentido de realizar a sua vontade de voar e de construir máquinas voadoras. Após se formar como oficial do Exército, foi convocado para tomar parte em outras campanhas militares, como para a eleição de Dantas Barreto para governador de Pernambuco, além do combate ao coronel rural Horácio de Matos, na Bahia, e a revolta do Contestado. Em Pernambuco, foi ferido à bala em uma das pernas (ver VILLELA JR., 1988).
Entre as idas e vindas dessas campanhas militares, foi juntando suas forças e, mesmo sem nenhum apoio oficial, começou a pensar na construção de aviões. Já como primeiro-tenente e entusiasmado com os feitos de Santos Dumont, ele, mesmo sem ser engenheiro, decidiu que construiria um avião. E começou os estudos. Voltava do quartel e, em casa, ia estudar até as tantas da madrugada. Conseguiu livros sobre aerodinâmica, raríssimos na época, resistência dos materiais, química… Não se amedrontava com nada, “[…] porque o meu pai era um gênio; gênio no seguinte sentido: fazia de tudo. Ele era mecânico, ele era carpinteiro, ele era ferreiro, ele pintava, ele envernizava, enfim, era um homem que eu não sei como classificá-lo. Tudo para ele, ele fazia.”, disse Denizar Villela em um de seus depoimentos sobre o seu pai que estão registrados em vídeo.
Em 1o de agosto de 1914, Marcos Villela Júnior registrou um pedido de direito de garantia provisória sobre a propriedade de uma invenção industrial para aperfeiçoamentos em aeroplanos. A concessão a esse pedido foi dada em 14 de setembro de 1914. Em 15 de dezembro de 1916, entrou com outro pedido semelhante, dessa vez, para aperfeiçoamentos em hélices de ‘machinas’ de voar. Esse pedido foi atendido em 12 de março de 1917. As Imagens 4 e 5 mostram, respectivamente, essas concessões.
Com a técnica dominada, construiu o avião Aribu, em 1917. Seu sonho, entretanto, ainda não estava completo. Aprendera, de forma autodidata, a projetar e construir aviões, porém, ainda não tinha as licenças para pilotá-los. Mas isso, para ele, era o menor dos problemas. Ingressou na Escola de Aviação Naval e tornou-se piloto naval. Mais tarde, tornou-se aviador militar, aviador civil e aviador internacional. A Imagem 6 mostra Marcos Villela Júnior como aviador militar, depois de ter construído o avião monoplano Aribu e o biplano Alagoas.
Com seus sonhos de infância realizados, foi chamado, de novo, em função de sua profissão, a participar em um combate a outra revolta. Dessa vez, em 1924, na revolução de São Paulo. A Imagem 7 mostra Marcos Villela Júnior como comandante da esquadrilha de reconhecimento e bombardeio, em 1924.
2.5. A criação da aviação militar
Ele não parava. Não se conformava com o fato de a aviação ser apenas um quadro dentro do Exército. Ele pensava que ela tinha que ser uma arma, a quinta arma, ao lado da artilharia, cavalaria, engenharia e infantaria. Essa sua determinação de lutar pela criação da chamada quinta arma fez com que ele se mobilizasse de diversas formas para conseguir tal objetivo. Aliou-se ao general Carlos Cavalcanti, que era senador da República na época e também um simpatizante dessa ideia. Esse general senador disse para Marcos Villela Júnior preparar a minuta do projeto para ser apresentada ao Congresso. Marcos não perdeu tempo. Redigiu a minuta e, dias depois, entregou-a ao senador.
O projeto foi apresentado e Marcos Villela Júnior fez campanha em favor da criação da quinta arma junto aos congressistas. Finalmente, em 1927, o projeto de criação da aviação militar do Exército foi aprovado. Mais tarde, a iniciativa se transformaria na Força Aérea Brasileira. Um dos objetivos dele era ver o Brasil com uma força aérea. E isso ele viu, ou seja, a transformação da aviação militar em um, na época, ministério da aeronáutica. Ele foi, assim, um ativo batalhador pela implementação da aviação militar e pelo desenvolvimento tecnológico da aviação em geral. No Exército, foi o primeiro general-aviador, tendo em vista que, à época da criação da aviação militar ele, como major, foi o oficial mais graduado a ser transferido para essa nova arma (LAVENÈRE- WANDERLEY, 1965). Quando da criação do então Ministério da Aeronáutica, mesmo estando na reserva, foi transferido para esse ministério, tornando-se brigadeiro da Força Aérea Brasileira.
No seu incansável trabalho em prol do desenvolvimento de aeronaves no Brasil, ele teve como colaborador principal o então tenente Raul Vieira de Mello, que foi o audacioso piloto de provas dos aviões que ele construiu. Sua determinação lhe permitiu construir o avião monoplano Aribu, que será mostrado adiante, e o biplano Alagoas. Como exemplo de seu desprendimento e de sua dedicação ao desenvolvimento tecnológico nacional, no campo da aeronáutica, no dia seguinte ao voo do Alagoas, fez a doação dos seus direitos de propriedade de invenção ao governo federal. Tal fato foi registrado em forma de elogio a ele pelo ministro da guerra da época (BRASIL, 1919).
Marcos Villela Júnior recebeu a medalha do mérito aeronáutico, no grau de grande oficial, em 1958. Porém, não recebeu a medalha que mais almejava: a do mérito Santos Dumont. E esse desejo tinha uma motivação: embora nunca tivesse trabalhado com Santos Dumont, admirava os feitos dele. Sempre que o inventor se hospedava no Rio, Marcos Villela Júnior ia visitá-lo no Hotel Avenida.
Sua vida, tratada aqui de uma forma resumida, foi pontuada por uma tenacidade incomum para levar seus sonhos adiante. Os seus vários ferimentos em missões militares já seriam suficientes, por si isolados, para valer-lhe respeito e homenagem. Ele foi citado pelo general Arthur Oscar, por atos de heroísmo e bravura em Canudos. Porém, seus feitos na aeronáutica são pouco lembrados. São poucas também as informações disponíveis sobre o brigadeiro Marcos Villela Júnior e os aviões que ele construiu (e.g. SOUZA, 1943; LAVENÈRE-WANDERLEY, 1965; ANDRADE e PIOCHI, 1982; INCAER, 1988; VILLELA JR., 1988; SALES, 2012; MATTOS, 2014; AUTRAN,
2017). Em geral, esses registros não mostram muitos detalhes acerca da construção dos aviões. Muitas das informações técnicas sobre essas aeronaves, por diferentes motivos, se perderam, sendo que algumas podem ser questionadas, como a referente ao motor utilizado no Aribu, como será visto mais adiante.
3. O piloto de provas do Aribu
Seria injusto discorrer sobre os feitos de Marcos Villela Júnior na aeronáutica sem mencionar Raul Vieira de Mello. Ele tem um lugar de destaque nos êxitos alcançados por Marcos Villela Júnior no desenvolvimento de seus aviões. Raul foi o piloto de provas do Aribu e do Alagoas e, também, de outras experiências com aviões realizadas por Marcos Villela Júnior. Foi o primeiro a ter um brevet emitido pelo Aero Clube do Brasil, em 1920. Antes, havia tirado um brevet na Escola Brasileira de Aviação, que fora fundada por italianos no Rio de Janeiro.
Mais do que sua coragem para pilotar aviões experimentais, em uma época em que a aviação ainda era uma grande aventura, repleta de riscos, deve ser louvado o seu espírito de colaborador e incentivador das façanhas que foram a construção e os testes do Aribu. Vieira de Mello era, na época do voo do Aribu, tenente da arma de artilharia do Exército. Ele foi, ainda, o desenhista técnico do projeto, após receber de Villela os cálculos e esboços do Aribu.
Raul Vieira de Mello é um grande nome da aviação e a ele se devem muitos dos heroicos voos experimentais dos primórdios da aviação no Brasil. A parceria entre Marcos Villela Júnior e Raul Vieira de Mello foi uma constante no desenvolvimento da aviação na década de 1910. Ao comentar, em 25 de outubro de 1941, numa entrevista que deu ao jornal A Manhã sobre um trabalho que fez, Villela revelou:
– Entendi, depois de outros estudos, que se poderiam melhorar os estilos das asas; construí umas que adaptei a um Blériot. O aparelho subiu bem e provou ser melhor que com os próprios planos de sua origem.
– Foi uma modificação e tanto, dizia o Vieira de Mello…
– Um colaborador, perguntamos.
– Um colaborador dos melhores! Meu companheiro de jornada, a quem, aliás, a aviação muito deve. Acreditou em mim desde o começo e, quando veio me ajudar, sua fé foi um estímulo. Um verdadeiro herói, batalhador intimorato.
Em outra entrevista, publicada em Souza (1943), Villela disse:
[…] quero ainda citar o nome do meu amigo Raul Vieira de Mello, colaborador inteligente e infatigável, que foi meu piloto e acompanhou pari passu o meu trabalho, com grande entusiasmo, mesmo nos momentos em que as dificuldades eram enormes.
Raul Vieira de Mello faleceu no posto de tenente-coronel.
4. O avião Aribu
Em 1911, Marcos Villela Júnior fez seu primeiro trabalho de montagem de avião, um Blériot, de origem francesa. No ano seguinte, montou outro avião do mesmo fabricante. Ambos haviam sido adquiridos pelo Exército para servir de treinamento aos pilotos da incipiente aviação militar. A partir da experiência adquirida com esses trabalhos de montagem de aeronaves estrangeiras, ele decidiu fazer um avião no Brasil. Assim, em 1912, com um projeto de um avião inteiramente nacional nas mãos, procurou o então ministro da guerra, Vespasiano de Albuquerque, para pedir apoio para o projeto que havia concluído. O ministro não achou conveniente gastar dinheiro da sua pasta com projetos experimentais. Em um artigo publicado na revista Auto-Propulsão, de 1o de dezembro de 1918 (apud SOUZA, 1943), intitulado A Aviação no Exército – as experiências oficiais do biplano Villela, encontra-se o seguinte parágrafo:
Há, seguramente, uns seis anos, apareceu um dia, no gabinete do então ministro da Guerra, general Vespasiano de Albuquerque, um tenente de infantaria que se dizia portador de importante projeto que muito interessaria ao Brasil, pois dizia de perto com a defesa nacional. Tratava-se de um projeto de construção de um aparelho de aviação que possuímos. Como resposta, o general Vespasiano disse-lhe simplesmente: – “Ora, moço, eu neste momento estou a tratar de cousas muito sérias”.
[…] Não posso, portanto, atendê-lo sobre cousas tão fúteis.
Mas essa negativa de apoio oficial não impediu que Marcos Villela Júnior continuasse com a sua determinação de construir um avião. Ele hipotecou sua casa e, com a ajuda de amigos, iniciou o seu projeto que visava a construir um avião com o maior número possível de componentes nacionais. Ele reuniu seus poucos recursos oriundos de seu salário de oficial do Exército e comprou os materiais necessários para começar a sua empreitada de construtor de avião.
Partiu para o projeto. Começou a procurar um local para iniciar a obra tão desejada. Sem desanimar, contatou, em Realengo, os donos de uma serraria, que ele tinha conhecimento, e perguntou se poderia usar aquele estabelecimento para a empreitada. Com a concordância dos donos, ele começou ali a fabricação do seu aeroplano.
O primeiro avião que Marcos Villela Júnior projetou e construiu foi um monoplano que ficou conhecido como Aribu. O nome é uma corruptela de urubu, a ave que inspirou Marcos a projetar o seu avião: “Meus colegas apelidaram-no Aribu, como lembrança da história que lhes havia contado de meus sonhos de menino, quando sonhava voar como o urubu” (ver SOUZA, 1943).
Infelizmente, há poucas informações técnicas sobre o avião Aribu construído por Marcos Villela Júnior e pilotado por Raul Vieira de Mello. Há, ainda, informações conflitantes sobre alguns dados básicos do Aribu, como o motor utilizado. Alguns episódios contribuíram para que essas informações se perdessem ao longo dos anos. Por exemplo, de acordo com Denizar Villela, os desenhos dos projetos dos aviões de seu pai, assim como outras informações, foram entregues ao jornalista José Garcia de Souza, que publicou um livro sobre a aeronáutica no Brasil (SOUZA, 1943). Nunca mais elas foram recuperadas. Esse livro acabou se tornando uma das principais referências sobre os aviões construídos por Marcos Villela Júnior e, inclusive, para este artigo.
Algumas das fontes mais utilizadas para citar a obra de Marcos Villela Júnior (e.g. SOUZA, 1943; LAVENÈRE-WANDERLEY, 1965; ANDRADE e PIOCHI, 1982; INCAER, 1988) não trazem muitos detalhes técnicos sobre os aviões que ele construiu. Em função disso, foi feita a opção de utilizar dados sobre o Aribu publicados em jornais, seja por meio de descrições diretas do avião ou por entrevistas concedidas por seu construtor, nas quais ele mencionava algum detalhe do aparelho, mesmo com a ressalva de que o uso dessas descrições carece do necessário respaldo técnico que o acesso direto ao projeto forneceria. Assim, algumas das descrições apresentadas aqui são, ainda, baseadas em fontes secundárias de informação e devem, por conseguinte, ser consideradas com o devido cuidado. Algumas das fotografias apresentadas são originais e estão em arquivo de família. Outras, são reproduções de matérias de jornais da época.
Os relatos disponíveis sobre o desenvolvimento e a construção do Aribu são interessantes e merecem ser reproduzidos. Por exemplo, segundo o jornal A Rua, de 5 de janeiro de 1917, Marcos Villela Júnior,
[…] depois de estudar a ornitologia das grandes aves – águia, condor e abutre ou urubu – , acabou por concluir que esta última é que deveria ser alvo de sua atenção. Assim, como a águia e o condor precisam de terreno para “decolar” e não fazem voo de altura sem “remar”, e só “planam” a grandes alturas, e como o urubu, não precisa de terreno para alçar voo, salta do local em que está pousado, “plana” a dois metros de altura e para subir não precisa “remar”, embora seja o maior dos “remadores”, fez os seus cálculos na própria ave, medindo tudo e fazendo a ampliação que é representada pelo seu aparelho […]
Essa foi a explicação de Villela Júnior, captada pelo jornal, para projetar seu primeiro avião. É importante notar que, em outros países, inspirações semelhantes também levaram ao desenvolvimento de aviões, como é o caso do Etrich-Taube, de origem austríaco-alemã, que parece ter a forma de uma pomba (taube, em alemão), mas que foi inspirado na forma da semente de uma planta nativa da Ásia[3]. Ele foi projetado por Igo Etrich em 1909 e voou em 1910. O Taube foi o primeiro avião que teve sucesso comercial na Alemanha e foi o primeiro avião militar a ser produzido naquele país.
Na Imagem 11, publicada pelo jornal A Noite, em edição de 1o de setembro de 1914, é mostrada uma suposta maquete do Aribu. Diz o jornal que a essa maquete foi montado um pequeno motor e que as experiências de voo não foram realizadas porque faltaram recursos. O fato curioso sobre essa reportagem diz respeito ao apelo que o então tenente Marcos Villela Júnior faz a “quantos se interessam por aviação no Brasil no sentido de tornar um ‘facto’ o aparelho de sua invenção”. Continuando, o jornal afirma que Marcos Villela Júnior espera, “com inabalável confiança, os melhores resultados de seu trabalho, que foi arquitetado de acordo com todos os princípios de aviação e está subordinado a todas as hipóteses feitas sobre as correntes aéreas”.
Na referida entrevista ao jornal A Manhã, Villela discorreu sobre a construção do Aribu:
Iniciei a montagem do avião projetado […]. Engenheiro e operário a um tempo, tudo foi feito pelas minhas mãos. Não se espante […]; eu sou mecânico: conheço, desde a forja até a fundição; conheço todas as suas especialidades; carpinteiro e marceneiro, minhas mãos se calejaram nessa tarefa que em nada deslustrava os meus galões […] Trabalhei muito e o avião ficou pronto na sua estrutura. Faltava o motor e a hélice. […] Novo problema que eu resolvi adquirindo um motor Anzani, de 35 cavalos, que se adaptou facilmente. A hélice foi mais difícil. Vocês sabem de que delicado material ela deve ser feita e que o nosso país não possuía então. Na leitura de algumas obras sobre aviação encontrei o seguinte conselho: – “o novel construtor não deve se ocupar do problema da hélice, que só irá ter decepções; procure um propulsor de reputação e coloque em seu aparelho”. Era para desanimar. Eu sou duro, porém. Estudei um tipo de hélice sui generis; calculei e construí, eu mesmo, esse tipo por mim idealizado, montei-o no aparelho e o aparelho voou com ótimos resultados.
Por sinal, um dos mais importantes desenvolvimentos tecnológicos provenientes da construção do Aribu foi a hélice, feita por Marcos Villela Júnior de madeira nacional, a ingarana. Certamente, esse desenvolvimento se constituiu em uma relevante inovação no Brasil na época. Aliás, a história relacionada ao desenvolvimento e construção de hélices por Marcos Villela Júnior merece um destaque especial. Ele disse:
[…] fiz um novo desenho, sui generis, estabeleci quatorze coeficientes, trabalhei largo tempo e construí até uma balança para o equilíbrio das hélices. Enquanto José Domingos da Silva[4] procurava fazer hélices de peroba e açoita-cavalo e muitos outros supunham ser aconselhável o aproveitamento da nogueira, divergi deles, ensaiando mais de oito carroças de diferentes madeiras nas minhas experiências. Cheguei à conclusão de que a ingarana era superior a todas as outras madeiras indicadas (ver SOUZA, 1943).
Alguns dados do avião Aribu foram apresentados pelo jornal A Rua, em 5 de janeiro de 1917: fuselagem com 4 m de comprimento, envergadura das asas de 8,84 m e altura de 2,37 m. Como explicitado anteriormente, não foi possível conseguir informações detalhadas sobre o Aribu em publicações técnicas de aeronáutica. Por isso, são utilizadas neste artigo algumas informações que foram obtidas em publicações como jornais que, obviamente, não são especializados no assunto. Assim, mais uma vez, chamo a atenção para o cuidado com que as informações aqui reproduzidas devem ser interpretadas. A reportagem apresenta a seguinte descrição do Aribu:
Os centros são divididos e a linha de ataque das asas forma um grande arco de círculo. Na vertical, a fuselagem tem 1 metro e 10 centímetros e as longarinas, morrendo dessa altura, terminam no montante na distância de 25 centímetros.
O estabilizador tem a forma da cauda do urubu, ave cuja ornitologia se baseou o autor para modelar o aparelho. O leme de profundidade é retrógrado e o leme de direção, colocado por baixo do estabilizador, trabalha em perpendicular, o que permite partir a corrente, metade dirigindo e metade estabilizando, evitando a torsão da fuselagem e facilitando os gauchissements. […]
Do aparelho, são notáveis por inteiramente novos, o trem de aterrissagem e a hélice.
Aquele é uma combinação dada pela flexão de elásticos poderosos e notação de duas alavancas em forma de S, tendo elásticos nas extremidades que, cedendo à rotação, centraliza a velocidade do aparelho.
E como se depreende uma combinação destinada a representar o modo de “pousar” do urubu que, ao descer trazendo velocidade para a frente, curva as pernas, descaindo o corpo para trás, dando, assim, o equilíbrio e quase imediata parada.
A hélice, que é também de invenção do autor, obedece a um sistema diferente do adotado na hélice Chauviére[5], com a qual foi confrontada em experiências de resistência logrando reais vantagens.
Assim, no mesmo espaço de tempo, iguala em rotações à Chauvière, não trepida quase, enquanto a Chauvière o faz bem sensivelmente, não dá banho de óleo no aviador quando cheios os reservatórios, coisa que a Chauvière faz frequentemente e, afinal, enquanto a Chauvière faz o motor aquecer muito, a hélice Villela, no mesmo tempo, não proporciona ao motor senão pequena elevação de temperatura.
Fica aqui a descrição do aparelho velho que foi construído em oficina nacional, com madeiras nacionais – itapecerica, ingarana (hélices), jenipapo (longarinas, montante e seguimentos).
A tela é nacional, de tipo idealizado pelo tenente Villela, e o próprio verniz da pintura é de fabrico nacional e tipo daquele militar.
Somente o motor que é Anzani e os fios de aço não são nacionais, mas o tenente Villela conta ter um motor também seu, em breve, tendo mesmo estudado dois tipos, um mecânico e outro de ar comprimido.
Faltam-lhe, porém, recursos e tempo e o tenente Villela atribui a isso a demora dos trabalhos. Sabemos que o Sr. Ministro da Guerra será solicitado a auxiliar e facilitar os trabalhos do tenente Villela, trabalho que S.Ex. conhece e que acompanha com real interesse. Estará achado o tipo nacional de aeroplano militar?
Na Figura 1, é mostrado um dos poucos registros técnicos disponíveis sobre o Aribu, no qual aparece a sua forma básica com as suas principais dimensões.
Pela análise das fotografias disponíveis, como as apresentadas a seguir, pode-se inferir, por exemplo, que o motor utilizado tinha três cilindros dispostos em uma configuração em leque ou em W. Porém, há relatos sobre esse motor ter cinco cilindros (cf. ANDRADE e PIOCHI, 1982; INCAER, 1988), mas, por essas imagens, tal informação pode ser questionada. Essas mesmas fontes afirmam que o motor tinha uma potência de 50 hp. Essas publicações também atribuem uma origem francesa ao motor do Aribu. Essa última informação é correta, uma vez que Alessandro Anzani, construtor desses motores, era italiano de nascimento, mas se mudou para a França, onde fabricou tais motores. Na entrevista ao jornal A Manhã, mencionada anteriormente, Marcos Villela Júnior deixou claro, do mesmo modo, que o motor era da marca Anzani, porém, que rendia 35 hp[6]. Assim, algumas evidências indicam que o motor utilizado foi da referida marca e com três cilindros dispostos em W, similar ao mostrado na Imagem 13, com 35 hp de potência. Uma curiosidade está relacionada ao fato de um motor semelhante a esse do Aribu, porém de potência menor, ter sido utilizado no primeiro avião que cruzou o canal da Mancha, um Blériot XI pilotado por Louis Blériot, em 1909.
Enfim, ele concluiria, com êxito, seu primeiro avião, o monoplano Aribu, feito de madeira nacional, com hélice, tela e verniz desenvolvidos por ele. “O meu primeiro avião foi construído em 1917, inteiramente à minha custa e com vultosas despesas” (SOUZA, 1943).
4.1. E o Aribu voou
Finalmente, depois de longo tempo, o Aribu estava pronto para alçar voo. Segundo Denizar Villela, “os incrédulos diziam: ele fez essa geringonça, mas não voa. E o meu pai respondia a eles: não voa comigo, porque não sou aviador, ainda, mas o Vieira de Mello vai voar!”. Raul Vieira de Mello tinha tirado brevet na Escola Brasileira de Aviação. “E o meu pai dizia: Vieira, tens coragem de voar nisso? Tenho, Villela, eu acompanhei a construção toda”. Assim, mesmo antes de ter licença para voar, Marcos Villela Júnior já havia fabricado um avião.
Mas, onde seriam feitas as arriscadas experiências? Com auxílio de um amigo, Villela foi apresentado a um cidadão estrangeiro, dono de um vasto campo no município de Itaguaí, Rio de Janeiro, que imediatamente colocou a área à disposição dele. O Aribu foi levado, então, do bairro carioca de Campo dos Afonsos para Itaguaí, nas proximidades de outro bairro da capital fluminense, Santa Cruz. O transporte foi realizado em um vagão prancha cedido pelo chefe da então Estação Pedro II, posteriormente conhecida como Central do Brasil. Desse modo, em Itaguaí, Marcos Villela Júnior construiu um barracão que serviria de hangar. Estava, assim, inagurada a “base aérea de Itaguaí”.
Em Itaguaí, o Aribu voou. Estava coroado de êxito. O sonho de infância de Marcos Villela Júnior estava realizado. Vários voos com o Aribu foram feitos durante alguns meses nessa localidade. Num desses, porém, em razão de uma forte rajada de vento, aconteceu uma aterrissagem infeliz e o avião artesanal, feito de madeira e tela de algodão, “entrou de asa” na pista e foi destruído. Disse Denizar Villela: “meu pai correu com os empregados que tinha e gritou: Vieira, Vieira! E o Vieira diz: Villela, eu estou aqui, saindo do entulho; estou com uns talhozinhos nas costas mas não é coisa grave não, estou bem. Meu pai levou o Vieira pro hangar e fez o curativo com iodo e algodão”. Apesar de o piloto ter sofrido apenas ferimentos leves, o Aribu estava irremediavelmente perdido.
Um fato, porém, havia se consumado: era possível fazer aviões no Brasil com grande conteúdo nacional, não apenas de materiais e insumos, mas, sobretudo, know-how. Animado com o êxito do Aribu, Marcos Villela Júnior decidiu construir um avião maior, tipo escola. Porque um dos ideais dele era dotar a aviação militar brasileira com aviões fabricados no Brasil. Mas não teve o respaldo suficiente do governo de então. Mesmo assim, fez o seu novo avião, o Alagoas, com uma pequena ajuda do então ministro da guerra Caetano de Faria. Mas esse é um outro capítulo da vida de Marcos Villela Júnior, que não será contado neste artigo.
5. Algumas lições do Aribu
Embora a distância entre a Rua Avião Aribu e a Embraer seja pequena, cerca de 4 km, podendo ser percorrida em um intervalo de tempo de poucos minutos, grande é o intervalo de tempo entre o voo do Aribu e a criação da Embraer: 52 anos. Esse hiato temporal toma vulto quando comparamos, naquela época, o cenário brasileiro com o de outros países que aproveitaram as oportunidades que se descortinavam para desenvolver suas indústrias aeronáuticas. A norte- americana Boeing, por exemplo, iniciou suas atividades em 1916. A vertente aeronáutica da empresa francesa Breguet foi fundada em 1911.
Atualmente, inovação é um verbete constante em quase todos os discursos sobre temas relacionados à tecnologia. No entanto, nessas falas, quase nada é dito sobre oportunidades de inovação perdidas. A história do Aribu é um exemplo claro de inovação perdida no nosso País. Logo, ela deveria ser sempre mencionada para evitar a sua repetição em outras áreas tecnológicas. O ocorrido com o Aribu retrata a nossa recalcitrante falta de visão estratégica, que faz com que oportunidades de explorar inovações no nosso País sejam perdidas e recursos sejam investidos na compra de bens de alto valor agregado no exterior, que poderiam ser produzidos internamente.
Inovações passíveis de se tornar oportunidades fantásticas para o País, como as relacionadas às tecnologias aeronáuticas, na época em que a aviação estava ainda no berço, não foram notadas com o devido cuidado por parte das autoridades governamentais de então. E também não foram percebidas, de maneira apropriada, pelo setor empresarial. Algumas dessas inovações tiveram período de validade, como as telas que revestiam as aeronaves e o verniz aplicado em suas coberturas. Outras, como as hélices, ainda hoje utilizadas em alguns aviões, perderam o grande poder inovador de cem anos atrás. Nesse caso, em particular, nem mesmo a dificuldade enfrentada pelo Brasil para importá-las da Europa, em função da I Guerra Mundial, foi capaz de despertar o interesse nacional para sua produção, apesar da demonstração cabal dada pelo construtor do Aribu de que as produzidas aqui podiam superar as importadas.
Nem o sucesso de algumas das inovações produzidas por Marcos Villela Júnior – como, por exemplo, a tela de algodão que recebeu medalha de ouro na exposição de tecidos de Buenos Aires, em 1918, a única recebida pelo Brasil – foi capaz de sensibilizar as autoridades da época para a importância que o domínio tecnológico na área aeronáutica teria para o País, tanto naquela época quanto no futuro. Mesmo com a prova contundente do domínio da construção de aeronaves, por meio do voo de um avião como o Aribu, projetado com grande conteúdo tecnológico nacional, essa situação não mudou.
Assim, há uma lição triste deixada pelo Aribu: desperdiçamos uma oportunidade de aproveitar inovações tecnológicas que tinham uma janela temporal para serem amplamente apropriadas. Outra lição foi nos mostrar que não é por falta de recursos humanos qualificados que deixamos de competir nas fronteiras tecnológicas, mas, sim, por fatores impeditivos internos que podem e devem ser eliminados ou minimizados. Ao nos mostrar que não precisamos ficar sempre a reboque das vanguardas tecnológicas do mundo, o exemplo do Aribu deve ser sempre lembrado. Se, há cem anos, fomos capazes de, praticamente pari passo com o restante do mundo, desenvolver artefatos com a complexidade tecnológica de um avião, lidando com as dificuldades financeiras crônicas de nosso País e sem ter o capital humano e o acesso às informações hoje disponíveis, por que não podemos fazer mais hoje em termos tecnológicos em diversas áreas do conhecimento?
Já nas primeiras décadas do século 20, havia ideias avançadas a respeito do desenvolvimento do setor aeronáutico e até mesmo sobre o desenvolvimento econômico que o País deveria seguir. Em virtude disso, a indústria aeronáutica brasileira já poderia ter deslanchado naquela época. Um panorama dos tempos pioneiros da aviação nacional foi traçado por Sales (2012). Porém, as iniciativas nesse sentido, nos primórdios da área aeronáutica no Brasil, foram ações de pessoas abnegadas que não contaram com incentivos governamentais e nem com a ousadia da iniciativa privada. E logo também foram abandonadas, como foi o caso de Lavaud e d’Alvear. Por razões parecidas, aliadas a outras inerentes à sua profissão de militar, aconteceu a mesma coisa com Marcos Villela Júnior. Naquela época, havia algumas pessoas e instituições com ideias avançadas, mas havia também um ambiente desfavorável que impedia essas ideias de prosperarem.
Tivesse o Brasil, na época do Aribu, investido em todas as tecnologias que foram desenvolvidas para produzir esse avião, talvez tivéssemos tido, com algumas décadas de antecedência, uma empresa nacional construtora de aviões. Ou, caso Villela tivesse recebido o apoio necessário para a continuação do seu projeto do Aribu, poderíamos, já na segunda década do século 20, ter tido, talvez, um avião nos moldes do Etrich-Taube.
De forma semelhante ao que aconteceu com outros pioneiros da aviação brasileira, Marcos Villela Júnior e o seu avião Aribu, lembrado à margem da Avenida dos Astronautas, em São José dos Campos, também foram colocados à margem da história. Ele, literalmente, foi um soldado da inovação aeronáutica do Brasil. Lutou muito para construir seus aviões. Mostrou, com exemplos claros, a viabilidade de se construir aviões no Brasil. Contudo, apesar dos apoios recebidos – como a permissão de seus superiores militares para se dedicar à construção de aviões, mesmo sendo um oficial de infantaria; o uso de uma serraria particular; e o empréstimo de um campo para os testes do Aribu -, seus esforços não se traduziram em ações governamentais ou do setor empresarial que levassem à implementação de uma indústria nacional de construção aeronáutica naquela época. E o Brasil seguiu comprando aviões estrangeiros.
Marcos Villela Júnior, depois de saber que haviam mandado incendiar seu avião Alagoas[7], praticamente abandonou a construção de aviões e passou a se dedicar apenas à sua carreira de piloto militar. Voava, entre outros, aviões Breguet 14. Esses aviões foram produzidos entre os anos de 1916 e 1928. O primeiro voo desse tipo de avião aconteceu em 1916 e eles entraram em operação em 1917, curiosamente no mesmo ano em que o Aribu fazia sua estreia nos ares. Eram aviões do tipo bombardeiro e de reconhecimento. E Marcos Villela Júnior, na revolta de São Paulo, em 1924, como comandante de um esquadrão de reconhecimento e bombardeio, sofreu grave acidente com um Breguet ao aterrissar sob mau tempo em Mogi das Cruzes. Mais uma vez foi ferido como soldado, só que agora como aviador. Seus dois sonhos, o de ser oficial do Exército e o de voar como os pássaros, o levaram a uma das piores experiências de sua vida: foi, mais uma vez, ferido gravemente, agora como piloto militar. E não foi pilotando um avião de fabricação nacional… Como consequência desse acidente, teve de se submeter a próteses dentária e de maxilar.
Marcos Villela Júnior foi um dos precursores da aviação no Brasil e batalhou pelo seu desenvolvimento, tanto na esfera militar quanto na civil. A sua contribuição para a criação da Força Aérea Brasileira foi importante. Ele foi tão entusiasta da aeronáutica que construiu aviões com as próprias mãos e trabalhou para que a aviação tivesse um papel destacado no Brasil. E esse trabalho foi amparado por ações marcantes e eficazes, como, além da construção de alguns dos primeiros aviões no Brasil, a publicação de artigos em jornais e revistas da época, sobre a importância da aviação, e a ação política que criou a chamada quinta arma do Exército, dando origem à Força Aérea Brasileira. Ele viu tanto a criação da aviação militar no Exército quanto a do então Ministério da Aeronáutica no Brasil. Mas, infelizmente, não viu outro de seus sonhos se tornar realidade: a criação de uma grande empresa aeronáutica brasileira. Seu falecimento ocorreu quatro anos antes da criação da Embraer.
Faltou a ele, na época da construção do Aribu, o que, de certa forma, ainda falta na atualidade no nosso País: um ambiente com uma visão estratégica para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, com planejamento de longo prazo e apoio constante para essa área. Um país só consegue se desenvolver adequadamente se investir de forma constante em ciência e tecnologia e não perder oportunidades tecnológicas como as que foram oferecidas pelo processo de desenvolvimento do Aribu.
Marcos Villela Junior, há um século, mostrou, com um projeto ousado para a época, que era possível construir aviões no Brasil. Porém, não encontrou ressonância em diversas instâncias do nosso País. Certa vez, disse: “Nunca descri do progresso do Brasil e sempre mantive viva minha fé na nossa aviação. Dias virão em que se há de dar valor ao que fiz tão desinteressadamente” (ver SOUZA, 1943). Ainda na citada entrevista ao jornal A Manhã, ele também disse:
[…] Eu lutei muito, numa época em que poucos queriam lutar, poucos acreditavam, poucos tinham fé. A aviação engatinhava em terreno incerto, a técnica em embrião, as pesquisas difíceis, o pesquisador sem material e o próprio terreno teórico o envolvia num torvelinho de dúvidas. Faltava material, tela, verniz, hélice, motor, tudo estava absorvido na guerra, para a qual se voltavam também os engenheiros e os mecânicos. Mas eu entendi de construir um avião. E haveria de construir muitos, haveria de formar o início da aviação brasileira, da nossa aviação. Os princípios da ornitologia me inspiraram um modelo de avião. Meus parcos recursos pecuniários foram empregados nisso. E não me arrependo. É muito difícil de a gente se arrepender de qualquer coisa que tenha feito pela Pátria, mesmo à custa de sacrifícios, mesmo num clima adverso e de lágrimas! Quantas vezes não restringi o conforto da minha família para empregar maiores dinheiros na minha empreitada!
Em Souza (1943) está o seguinte parágrafo:
Queixou-se ele, amargamente, da mentalidade daquela época, chegando mesmo a declarar textualmente: Meu jovem colega, não encontrei dificuldade. Não! Encontrei uma resistência passiva tremenda! Fazemos questão de transcrever suas palavras textuais para que o leitor possa avaliar o sofrimento atroz que pesava sobre ele e outros brasileiros por terem de enfrentar a incompreensão dos seus antigos dirigentes.
O centenário do avião Aribu foi uma oportunidade simbólica de mostrar a relevância desse feito tecnológico, que acabou, por várias razões, não sendo absorvido pelo País na época oportuna. Quem desconhece a própria história está fadado a cometer os mesmos erros de seus antepassados. Essa é uma forma um pouco diferente de dizer o que disse Edmund Burke. Porém, é interessante perceber que a essência dessa mensagem se encaixa muito bem na história do Aribu e de seu construtor.
6. Dedicatória
Com este artigo, presto uma pequena homenagem ao meu tio-avô Denizar Villela (in memoriam), que sempre se esforçou para que o trabalho de seu pai, Marcos Evangelista da Costa Villela Júnior, pudesse ser conhecido pelas gerações futuras.
Referências
ALEXANDRIA, S.; NOGUEIRA, S. 1910 – O Primeiro voo do Brasil. São Paulo: Editora Aleph, 2010.
ANDRADE, R.P.; PIOCHI, A.E. História da construção aeronáutica no Brasil. São Paulo: Aquarius – Editora e Distribuidora de Livros Ltda., 1982.
AUTRAN, P. Herói de terra e ar. Revista Asas, n. 96, p. 48-54, 2017.
BRASIL. Ministério da Guerra. Relatório do Ministério da Guerra do ano de 1918, 1919.
CALAZA, C.P. Aviação no Contestado: investigação e análise de um emprego militar inédito. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Aeroespaciais, Universidade da Força Aérea, Rio de Janeiro, 2007.
INSTITUTO HISTÓRICO-CULTURAL DA AERONÁUTICA – INCAER. Construção aeronáutica no Brasil, n. 42, 2016.
______, Dos primórdios até 1920. São Paulo: Editora Itatiaia Limitada, 1988. (Coleção Aeronáutica, Série História Geral da Aeronáutica Brasileira, v. 1).
LAVENÈRE-WANDERLEY, N.F. História da Força Aérea Brasileira, Brasília: Ministério da Aeronáutica, 1967.
MATTOS, M.A. Da cabine do INCAER, um voo pela história: a curiosa carreira do Brigadeiro Villela Júnior, INCAER, Ideias em Destaque, n. 44, p. 88-94, mai/dez. 2014.
SALES, M.V. Pré-industrialização nos Afonsos (1912-1931). Revista UNIFA, Rio de Janeiro, v. 25, n. 31, p. 82- 91, dez. 2012.
SOUZA, J.G. A verdade sobre a história da Aeronáutica. Rio de Janeiro: Gráf. Leuzinger, 1943.
VILLELA JUNIOR, M.E.C. Canudos: memórias de um combatente, São Paulo, SP: Ed. Marco Zero; Brasília, DF: INL. 143 p., 1988. (Coleção Resgate, v.14).
______. Canudos: memórias de um combatente. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Ed. UERJ, 137 p., 1997
[1] Denizar Villela deu três depoimentos, gravados em vídeo, sobre a vida do brigadeiro Villela, seu pai, que foram produzidos e dirigidos por Eduardo Souto e Carlos Alberto Souto, e estão disponíveis nos endereços: <https://www.youtube. com/watch?v=49rNYvAu4eo>; <https://www.youtube.com/watch?v=XapACO4jIp0>; e <https://www.youtube.com/ watch?v=pLD76qqcT44>.
[2] Provavelmente, ele tenha se referido a balões, mas, nesse texto, seja por engano dele ou de quem transcreveu seu relato, é feita menção a aviões.
[3] Ver, por exemplo, < https://en.wikipedia.org/wiki/Etrich_Taube >.
[4] José Domingos da Silva foi um português que tentou construir hélices no Brasil na década de 1910.
[5] As hélices Chauvière foram utilizadas por alguns aviões no início do século 20, como os Morane-Saulnier e os Blèriot. Um desses aviões fez um voo histórico: o Morane-Saulier G, de Roland Garros, cruzou pela primeira vez o mar Mediterrâneo, em 23 de setembro de 1913.
[6] Convém lembrar que essa informação é proveniente de uma matéria publicada em jornal não especializado em aeronáutica.
[7] Esse fato ainda precisa ser esclarecido.