Nicolau de Cusa: da metafísica à cosmologia
Reedição do artigo original de 2016
O nome de Nicolau de Cusa é pouco conhecido fora do círculo dos especialistas, mas ganhou um lugar de destaque entre estudiosos da história das ciências, quando autores como Koyré, Nagel e Kuhn o aproximaram da revolução na astronomia operada por Copérnico no final do século XVI.[1] Embora, como veremos, suas concepções astronômicas estivessem distantes daquelas do final do cinquecento, que efetivamente mudaram os paradigmas da ciência,[2] suas considerações sobre a cosmologia foram fundamentais para as transformações operadas por autores como Giordano Bruno e outros. Nosso intuito neste texto é o de ressaltar alguns aspectos da cosmologia de Nicolau de Cusa, que são fruto direto de suas considerações metafísicas e da maneira como ele transforma certas formulações medievais sobre o problema do infinito e da possibilidade de conhecê-lo. Essa abordagem segue de perto algumas considerações feitas por autores como Grazielle Vescovini[3] e Jean-Michel Counet[4] e intentam mostrar a fecundidade e a força de um procedimento analítico que, sem poder ser associado diretamente ao desenvolvimento da cosmologia científica moderna, abriu caminhos para a investigação de problemas relacionados a questões como as da natureza do infinito e da possibilidade de conhecê-lo.
Embora a obra de Nicolau de Cusa seja ampla e comporte referências a uma gama variada de problemas que vão da matemática à teologia, passando por debates sobre a Igreja e a tolerância religiosa, vamos nos ocupar quase exclusivamente com a segunda parte de seu escrito mais famoso – A Douta Ignorância[5] – na qual aparecem suas afirmações sobre astronomia e cosmologia. Antes, no entanto, de passarmos ao exame das proposições de natureza cosmológica, convém lembrar os pressupostos do pensamento de nosso autor, que estão explícitos logo no início de sua obra principal.
No primeiro capítulo da primeira parte do livro, Nicolau de Cusa afirma que: “Toda pesquisa é, pois, comparativa e se utiliza do meio da proporção”.[6] Com isso ele procura definir o método mais adequado para toda investigação a respeito da natureza situando-a nas fronteiras da matemática. Em si mesma, essa afirmação não tem nada de extraordinária se lembrarmos que estamos lidando com um autor fortemente marcado pela tradição neoplatônica, que colocava o número no centro, não apenas do conhecimento das coisas, mas também de sua origem. A continuação do texto não desmente essa filiação filosófica, mas aponta para um caminho que, sem ser desconhecido da tradição filosófica, nem sempre foi trilhado dessa maneira.
Nicolau de Cusa deixa inicialmente de lado a pergunta sobre a natureza das coisas para investir num tema ao mesmo tempo tradicional e espinhoso da metafísica ocidental: o problema do infinito. Mais uma vez não é a menção ao problema que nos interessa aqui, mas o fato de que nosso autor, afirmando que toda pesquisa consiste em uma proporção, chega à conclusão de que: “o infinito que escapa, enquanto infinito, à toda proporção, é desconhecido”[7]. Essa afirmação, que parece na verdade interditar toda pesquisa a seu respeito, o conduz à formulação do princípio que guia todo seu esforço cognitivo e que ele considera com o único válido para toda busca do conhecimento: “De fato, o homem, cujo zelo for o mais ardente, não pode alcançar a sabedoria a mais elevada se ele não for douto na ignorância ela mesma, que é o seu próprio. E nós seremos tanto mais doutos quanto mais soubermos que somos ignorantes”.[8] Tomadas isoladamente, nenhuma das afirmações anteriores podem ser consideradas originais. Mesmo a ideia da douta ignorância já se encontra formulada em pensadores dos séculos anteriores.[9] É, no entanto, a transformação da douta ignorância em princípio gnosiológico, e o desejo de aplicá-la a domínios muito diferentes daquele dos místicos medievais, que vai conferir seu caráter inovador e conduzir nosso pensador a conclusões que mudaram o rumo das investigações cosmológicas e astronômicas de seu tempo.
Para compreender o pensamento de Nicolau de Cusa é preciso não esquecer que se trata de um pensador católico, que usa de forma indistinta palavras como Deus, unidade e absoluto. Esse elemento de crença, que está no centro de sua doutrina da Douta Ignorância, não o impede de chegar a conclusões que impactam território muito diversos daquele da teologia e é justamente esse aspecto de sua filosofia que nos interessa. Assim, já no começo da segunda parte de seu livro, ele parte da ideia de que “a igualdade em ato é impossível”.[10] O recurso à linguagem da matemática serve para que ele delimite o alcance de seu saber e ao mesmo tempo defina os limites do cognoscível.[11] Referindo-se aos astros e à astronomia, ele chega a uma conclusão que poderia parecer uma renúncia à busca de qualquer saber sobre essa temática. Ele diz: “E como não há dois lugares que concordem com precisão no tempo ou no espaço, é manifesto que os julgamentos astronômicos são, em sua particularidade, muito longe da precisão”.[12] Dizer, no entanto, que a precisão absoluta que só seria possível se a igualdade absoluta fosse ela mesma possível, uma vez que todo saber é comparativo, não implica em dizer que devamos renunciar à compreensão da natureza das coisas celestes ou que devamos abdicar de qualquer busca de um conhecimento sólido sobre as coisas criadas. Isso implica que devemos encontrar um método que, ao mesmo tempo em que leve em consideração a impossibilidade de conhecer algo de maneira absoluta, seja capaz de apontar para os aspectos particulares e definidores de cada coisa. Para tanto, Nicolau de Cusa aponta para um método, conduzido pela razão, que seja capaz, por exemplo, de mostrar “de que maneira, em um objeto, a complexidade se une à simplicidade relativa, em outro, a simplicidade à complexidade, em outro ainda, a corruptibilidade à incorruptibilidade…”.[13] Em seu livro De Coniecturis, ele precisa os caminhos da razão compatíveis com os princípios da douta ignorância.[14] Dessa maneira, ele funda um saber que, ao mesmo tempo em que nega o acesso ao infinito, define uma rota que iria alterar de maneira radical a visão de mundo de sua época.
As considerações cosmológicas do segundo livro de Douta Ignorância dependem das posições assumidas pelo autor na primeira parte do escrito. Para nós importa, em primeiro lugar, o fato de que Nicolau de Cusa afirma ser o absoluto impossível de ser alcançado pela razão. Dessa forma, o universo será sempre inalcançável para a linguagem. Podemos nos aproximar da verdade, mas nunca alcançá-la plenamente. O primeiro problema que surge é, então, o de saber como devemos pensar a natureza do universo que está ao alcance da razão. Ele não coincide com o absoluto e, por isso, não pode ser a realização da totalidade das possibilidades da criação. Essa realização, que para Nicolau de Cusa só existe em Deus, seria o que ele chama de “infinito negativo”. Mas ao mesmo tempo, o universo não possui um fim determinado, e dessa forma ele não é “nem finito, nem infinito”.[15] Nosso autor chama isso de “infinito privativo”. Como não se pode imaginar que o universo tenha uma infinidade de objetos em ato, não podemos simplesmente identificá-lo com o absoluto. Ao contrário, podemos dizer que ele é ontologicamente limitado, o que significa dizer que “ele não pode ser maior”, mas também que ele não possui um término, pois não pode ser limitado por nada que lhe seja exterior.[16]
Voltando nosso olhar para as coisas terrenas – as criaturas, os objetos, os homens – podemos dizer que elas são uma diminuição, não de uma ideia delas mesmas, como no platonismo clássico, mas do máximo absoluto. Decorre daí que elas são sempre contingentes.[17] Há assim um paradoxo para Nicolau de Cusa, no fato de que as coisas “reunindo ao mesmo tempo na criatura a necessidade absoluta, pela qual ela é, e a contingência, sem a qual ela não é”[18] não são inteiramente compreensíveis, porque sua origem, o absoluto, não é cognoscível. Pensando nos termos da cosmologia da época, a origem só pode ser Deus, mas como ele é inalcançável em termos positivos pela razão, a consequência é que não sabemos qual é a origem das coisas. “Enfim – pergunta Nicolau de Cusa ̶ quem pode compreender que Deus seja a forma do ser sem estar misturado com a criatura?”.[19]
Counet chama essa posição filosófica de “panteísmo formal”, que opõe Nicolau de Cusa a Tomás de Aquino, para quem Deus “não é o ser comum de todas as coisas”.[20] Para o autor medieval “o panteísmo formal é falso porque ele faz de Deus uma simples ideia não subsistente enquanto tal”.[21] Enquanto Tomás de Aquino parte da alteridade e vai mostrando como por meio da elevação sucessiva chegamos à unidade suprema, Nicolau de Cusa vai na direção contrária, ou seja, parte da unidade absoluta em direção ao particular. O resultado é que, para ele, não é o infinito que tem de ser explicado, mas sim o finito, com suas imperfeições e incompletudes. Como resume Counet: no pensamento de Nicolau de Cusa, a questão central é: “se o absoluto existe, como pode existir algo diferente dele?”.[22] Como nosso autor recusa a ideia de que as coisas possam ser criadas do nada, resta-lhe pensar a origem da alteridade a partir de uma nova compreensão do que ele chama de “infinidade finita”.[23]
O primeiro passo para abordar essa questão é considerar que “toda criatura é perfeita enquanto tal”.[24] Isso sugere a ideia de que o mundo tal como se apresenta para nós é o melhor dos mundos possíveis, não porque possua qualidades ilimitadas, mas sim porque só podemos contemplar as coisas em seu repouso atual. É claro que as coisas particulares podem ser comparadas entre elas. Nada nos impede de dizer que um piano tem um som melhor do que o outro, ou que uma pedra seja mais resistente do que outra. Mas cada coisa em si mesma é a realização máxima de sua essência. Para Nicolau de Cusa, a multiplicidade é o verdadeiro enigma, não a unidade, que coincide com o máximo e com o mínimo absolutos.
Para compreender o alcance dessas afirmações, é necessário entender a concepção de tempo que as sustentam. Em primeiro lugar, Nicolau de Cusa considera que o ponto é a unidade infinita. Com isso ele quer dizer que o ponto é a origem de todas as figuras e que, se quisermos entender como elas são o que são, é preciso tomá-las em seu repouso, pois o “movimento é o desenvolvimento do repouso”.[25] Não podemos esquecer que, em acordo com o princípio da douta ignorância, o momento e o movimento inicial de criação das coisas são incompreensíveis para os homens. Querer atingir a origem do cosmos é o mesmo que tentar expressar o absoluto pela linguagem. Podemos nos aproximar do problema, mas há sempre um abismo que separa o finito do infinito, que marca ao mesmo tempo a distância intransponível entre a unidade e a pluralidade.
Como somos seres que observam o mundo, que nos parece em movimento, somos levados a acreditar que a realidade do tempo é sua extensão e não seu ponto de partida. Ora, para Nicolau de Cusa se dá exatamente o contrário. Só existe o presente, que contém todo o tempo. Assim, “o passado foi presente, o futuro será presente; dessa forma não encontramos no tempo senão do presente em ordem”.[26] O presente em sua realidade radical é a unidade ela mesma, mas isso não explica totalmente a existência das coisas particulares e nem resolve as aporias da gênese do finito a partir do infinito.[27] Isso coloca a necessidade de pensar a natureza do universo em sua relação com o absoluto, mas também em sua relação com o conjunto das coisas que compõem o mundo que está ao alcance de nossos sentidos. Como lembra Nicolau de Cusa, “o ser do acidente é de ser presente”.[28] Isso quer dizer que o mundo que vemos existe apenas no presente e é fruto da contingência, mesmo se em sua existência esteja conectado com o absoluto.
Como não podemos explorar toda a riqueza do livro de Nicolau de Cusa no espaço de um texto, vamos nos dedicar a esclarecer suas proposições que afetam diretamente sua cosmologia. O primeiro desafio é justamente o de esclarecer a natureza das coisas existentes na medida em que apontam ao mesmo tempo, como vimos, para o absoluto e para o contingente. O que podemos chamar de concreto, ou de mundo, ou de universo é o que nosso autor chama de “máximo restrito”. Surge aqui uma nova ideia de mundo e uma maneira inovadora de olhar para o universo, como já mostrou Counet.[29] Pensada longe dos caminhos ascensionais dos tomistas, mas também à distância de formulações banais do panteísmo, a concepção do “máximo restrito” como forma do ser concreto nos leva a alterar não apenas nosso pensamento sobre a relação do finito e do infinito, que Nicolau de Cusa pensa como aquela de um olhar para um abismo intransponível, mas também nossa forma de pensar os corpos celestes. Se o universo é uma emanação restrita do máximo absoluto, podemos dizer que ele é aquilo que entrou no ser.[30] A consequência é que “o universo não está nem no sol, nem na lua, ainda que neles ele seja o que eles são de maneira restrita”.[31] Mas ele só pode ser pensado por meio da unidade, que é restrita por se expressar na pluralidade, o que leva nosso autor a dizer que o universo é “a unidade na pluralidade”.[32]
Pode parecer, por algumas considerações anteriores, que o mundo, tal como se nos apresenta como o melhor dos mundos possíveis, deveria ser pensado em seu repouso, como para muitos filósofos antigos. Com Nicolau de Cusa dá-se o contrário. Só podemos falar de repouso absoluto lá onde essa afirmação não tem sentido algum, ou seja, referindo-se ao máximo absoluto. Se a pluralidade das coisas é o que chamamos de mundo, então não podemos esperar encontrá-las em sua forma existente em repouso. Ao contrário, nosso autor vai definir a natureza como “o que contém todas as coisas que se produzem graças ao movimento”.[33] Nessa lógica, o movimento máximo não pode existir pois, segundo a lei da coincidência dos opostos proposta pelo cusano, ele coincidiria com o repouso absoluto. Ora, nossa inteligência não alcança o significado dessa afirmação. Podemos nos servir dela para entendermos melhor as forças da natureza e até mesmo para criar teorias a seu respeito, mas estaremos sempre na beira do abismo instransponível já mencionado. O saber possível é sempre finito e se dirige a coisas finitas, ou a coisas limitadas em seu aparecer. Fora dessa esfera da douta ignorância, podemos apenas alcançar um saber negativo sobre o absoluto, que de fato nada acrescenta ao que já sabemos sobre os limites do conhecimento. Mas esse passo modesto é ao mesmo tempo uma ferramenta poderosa da razão. Ela serve para limitar seus objetivos e para construir saberes possíveis. Tentar compreender o incompreensível, levar nosso espírito para regiões que não podem ser frequentadas, é uma maneira de perder-nos em nosso esforço de compreensão do universo. Nicolau de Cusa era fortemente ligado às correntes místicas medievais, ao mestre Eckhart em particular. Por isso sabia que somos capazes de vivências que não estão sob o domínio da razão. Mas ele também sabia que essas vivências ultrapassam as fronteiras da linguagem e não podem ser convertidas em conhecimento.
Fiel à ideia de que os objetos do universo são compostos pela potência, pelo ato e pela conexão que entre eles se estabelece, Nicolau de Cusa procura então retirar as consequências de suas formulações anteriores.[34] Armado com uma metafísica ao mesmo tempo ancorada na tradição e inovadora, ele fornece os elementos de uma verdadeira máquina de guerra contra a concepção que dominara o Ocidente desde a Antiguidade e fora extremamente bem-sucedida.[35] Sua primeira investida é contra a ideia de que o mundo/universo tenha um centro. Nicolau de Cusa afirma: “Assim, o mundo não tem uma circunferência, pois, se ele tivesse um centro e uma circunferência, ele teria nele mesmo seu começo e seu fim, e o mundo seria nele mesmo terminado com relação a alguma coisa diferente”.[36] A conclusão mais importante dessa ideia é a de que “a terra não está no centro do mundo”.[37] Na verdade, nada está no centro do mundo. A noção mesma de centro é um equívoco, pois, não existindo na natureza esferas perfeitas, não há como existir um centro perfeito. Isso faz com que os cálculos astronômicos dos antigos estejam sempre errados, pois dependiam de centros que não existem na natureza, que, conforme vimos, é definida pelos corpos em movimento e não por esferas fixas e perfeitas.
Os astros tendem à perfeição. Procuram imitar a forma esférica, mas conseguem apenas se aproximar dela. Mesmo a Terra, que servia como referência para a astronomia antiga e para muitas cosmologias da Antiguidade e da Idade Média “não é esférica”.[38] Isso não quer dizer que a Terra deva ser rebaixada e desprezada. Com relação à concepção aristotélica, ela deixou de ser o “mundo sublunar” para se transformar em um astro como os outros. Sendo uma “estrela nobre”, ela tem um certo grau de perfeição, mas não “possui relação de proporção com o mundo”.[39] Como todos os corpos, ela existe não por ser o centro imóvel do mundo, mas por ser um corpo em movimento, parte da natureza como um todo. Como afirma Nicolau de Cusa: “…a máquina do mundo tem, por assim dizer, seu centro em todos os lugares e sua circunferência em lugar algum”.[40]
A concepção de um universo descentrado leva nosso autor a propor ideias que rompiam inteiramente com a visão de mundo medieval, mas também com a concepção dominante até então e que dependia inteiramente da ideia de centro fixo para funcionar. Rompido o invólucro do mundo clássico, nada detém Nicolau de Cusa em suas especulações. Assim, por exemplo, ele não hesita em falar dos “habitantes das outras estrelas”.[41] Se a Terra não é um astro especial e possui moradores, por que outros astros não podem ter habitantes eles também? Se não há privilégio ontológico de nosso mundo, como se pensava até então, não há razão para que nossas características não se encontrem também em outras partes de um universo que não pode mais ser comtemplado ou mesmo pensado em sua inteireza.
No tocante ao problema da origem do mundo, Nicolau de Cusa se serve de um lado da herança platônica, de outro ele expande seu significado incorporando as noções que desenvolveu ao longo de sua obra. No De Coniecturis, ele diz que tudo se origina no número e que “nada pode ser anterior ao número”.[42] A partir desse pressuposto, ele conclui na Douta Ignorância: “Deus se serviu, na criação do mundo, da aritmética, da geometria, da música e da astronomia”.[43] O platonismo subjacente o conduz, assim, a uma concepção do mundo como relação, como música, diz Counet. Para ele, os dois saberes principais são a astronomia e a música.[44] Daí a importância da harmonia e da concordância entre os diversos elementos que compõem o universo. Se não existisse essa harmonia, o universo não poderia ser objeto de um saber, ainda que parcial e incompleto. De forma mais radical, poderíamos dizer que, na lógica de Nicolau de Cusa, o universo não poderia nem mesmo existir se não fosse o número. De um lado, as coisas em sua particularidade e pluralidade dependem do número. De outro lado, não há nada anterior ao número, pois como afirma nosso pensador: “mas o número é composto dele mesmo”.[45]
Se quisermos investigar o universo temos de prestar atenção à sua origem, que só alcançamos de forma limitada, e ao conjunto de relações que se estabelecem a partir do momento em que ele foi criado. Do ponto de vista do absoluto, o mundo é acidental, pois só a totalidade é necessária, mas ele tem existência, formada pelas diversas substâncias e pela relação entre elas. Como resume de maneira feliz Counet; “O conjunto de todas essas substâncias e a malha das relações acidentais que elas tecem entre elas se chama cosmos”.[46] Fora das relações não existe mundo. O mundo é ao mesmo tempo um objeto único, mas também singular, uma vez que em sua existência ele porta a marca do acidental. Para conhecê-lo, é preciso buscar um saber singular, que tenha a consciência de seus limites e do fato de que deve aspirar ao universal, sem jamais alcançá-lo. Com isso, o saber possível é mais um método do que propriamente um saber, tal como concebemos o conhecimento de maneira geral.[47]
Rombach, em um texto hoje clássico, chamou esse saber de “ontologia estruturalista”.[48] Para ele, não há coisas que possam ser abordadas como substâncias como nas ontologias anteriores a nosso autor. Só as relações entre as coisas existem e podem ser investigadas. As coisas fazem parte do todo, na medida em que possuem “funções” diferentes, que as fazem existir e lhes confere identidade. Mesmo quando as coisas particulares são parecidas, ou podem ser nomeadas pela mesma palavra, não podem ser idênticas, pois enquanto “funções” dependem dos acidentes para estar ali e participar do todo. Como dois objetos não podem, por exemplo, ocupar o mesmo lugar no espaço, não podem ter a mesma “função”. A pluralidade forma o todo e depende dele para existir. Só as relações merecem ser pesquisadas, mesmo que nunca possamos compreender a totalidade das relações nem a forma de como elas participam da totalidade. Nicolau de Cusa não pode ser chamado de panteísta nessa lógica pelo simples motivo de que cada objeto particular é uma forma contraída do todo, que existe por si só e é a única coisa realmente existente.
Essa hipótese foi contestada por intérpretes como Jasper Hopkins, que procurou mostrar que, por mais tentadoras e elegantes que sejam as hipóteses de Rombach, elas não se sustentam em face de uma leitura atenta dos textos cusanos.[49] Em primeiro lugar, segundo ele, não existe no autor a noção mesma de função, que está no coração da interpretação de Rombach.[50] Seus equívocos, no entanto, não param aí. Para Hopkins, ele erra desde a tradução de partes importantes dos textos de Nicolau de Cusa até na compreensão de seus conceitos de base. De forma peremptória, ele afirma: “Apesar de Nicolau ensinar que as várias funções do corpo contribuem para a perfeição do homem, ele não ensina o funcionalismo. Ele pensa que o todo está na parte, mas na parte o todo está presente não enquanto todo, mas enquanto parte. Mais ainda, o todo está na parte somente na medida em que a parte está imediatamente no todo”.[51]
Independentemente da polêmica envolvendo os intérpretes sobre a importância do pensamento de nosso autor para a modernidade, ele apresenta aspectos instigantes e desafiadores até hoje. Essa disputa tem Rombach num extremo, afirmando ser Nicolau de Cusa o Aristóteles de nosso tempo, e num outro extremo Karl Jaspers[52], que diz que o pensamento de Nicolau de Cusa não tem lugar na modernidade. No meio desse campo de discussões, várias interpretações já foram propostas realçando ora um aspecto, ora outro da filosofia cusana. De nosso lado, acreditamos que ele operou uma verdadeira revolução no terreno da metafísica e isso teve impactos consideráveis na demarcação da fronteira dos saberes, em particular da metafísica e da cosmologia. Hopkins tem razão em dizer que em Nicolau de Cusa convive uma transformação radical da filosofia com a preservação de uma ontologia da substância aristotélica de talhe.[53] Mas não é esse o debate que nos interessa aqui, embora ele tenha sua razão de ser. Nossa atenção se volta para os caminhos abertos para um diálogo aberto entre filosofia e cosmologia cujos ecos chegam até nós.
Em 1445, Nicolau de Cusa tentou construir uma astronomia que pudesse refletir as conquistas teóricas da Douta Ignorância. Do ponto de vista da ciência moderna, seus resultados foram muito modestos e não foram incorporados nos desenvolvimentos posteriores da ciência astronômica. Mas essa não foi, a nosso ver, sua contribuição essencial para o pensamento filosófico e científico. Ao colocar no centro de suas interrogações o problema do infinito e suas implicações, ele ajudou a transformar a metafísica e a apontar para seus limites. Outros pensadores da tradição platônica já haviam trilhado alguns de seus caminhos, mas não haviam chegado às suas conclusões. Sobretudo, eles não tiraram do princípio da douta ignorância as consequências cosmológicas de um método que, ao colocar a matemática no centro, também aponta para suas limitações e para a impossibilidade de se alcançarem resultados definitivos quando se trata com o absoluto e com a origem do universo. Tendo tido a coragem de tirar as consequências de seus princípios, o que o levou, como vimos, a teses ousadas no que diz respeito ao universo e suas formas, ele também mostrou que os limites da metafísica são os limites do conhecimento enquanto tal e, por isso, impactam domínios como os da cosmologia. Não se trata é claro de confundir as duas disciplinas e nem de pretender que a cosmologia de Nicolau de Cusa antecipe a ciência de nossos dias. Esse não é o caso. Mas ao mostrar que não podemos conhecer o absoluto, ele aponta para a dificuldade de pensar o universo partindo de sua origem no sentido mais radical. Talvez possamos nos aproximar das raízes das coisas, sabendo que elas são uma forma contraída do todo, mas não podemos jamais chegar ao todo ele mesmo. Longe de sugerir que abandonemos nossa busca por um saber cosmológico, Nicolau de Cusa nos mostra que podemos nos aproximar infinitamente do saber inalcançável da totalidade, e isso é o que torna a exploração do universo e de seus significados um saber tão fascinante.
[1] Alexandre Koyré. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária, 1979; Thomas Kuhn. La révolution copernicienne. Paris: Fayard, 1992.
[2] Michel-Pierre Lerner. Tre saggi sulla cosmologia ala fine del Cinquecento. Napoli. Bibliopolis, 1992.
[3] Graziella Federici Vescovini. Il pensiero di Nicola Cusano. Torino: Libreria UTET, 1998.
[4] Jean-Michel Counet. Mathématiques et dialectique chez Nicolas de Cuse. Paris: J. Vrin, 2000.
[5] Vamos nos servir aqui da seguinte edição: Nicolas de Cusa. De la Docte Ignorance. Paris: Éditions de la Maisnie, 1930.
[6] Nicolas de Cusa. De la Docte Ignorance. I, 1, p.37.
[7] Idem, I, 1, 37.
[8] Idem, I, 1, 38.
[9] Graziella Federici Vescovini. Il pensiero di Nicola Cusano. P.15-16.
[10] Nicolas de Cusa. De la Docte Ignorance. II, 1, p. 102.
[11] Luciana de Bernart. Cusano e i matematici. Pisa: Scuola normale superiore, 1999.
[12] Nicolas de Cusa. De la Docte Ignorance. II, 1, p. 102.
[13] Idem, II, 1, p.105.
[14] Nicolas de Cues. Les Conjectures/De Coniecturis. Paris: Les Belles Lettres, 2011. Para uma análise detalhada do método de Nicolau de Cusa, ver: Jocelyne Sfez. L’art des conjectures de Nicolas de Cues. Paris: Beauchesne, 2012.
[15] Nicolas de Cusa. De la Docte Ignorance. II, 1, p. 106. Ver a esse respeito: Pierre Duhem. Le système du monde, VII.Paris: Hermann, 1956, p. 89-150.
[16] Nicolas de Cusa. De la Docte Ignorance. II, 1, p. 106-107.
[17] Idem, II,2, p. 108.
[18] Idem, II,2, p.108.
[19] Idem, II, 2, p. 109.
[20] Jean-Michel Counet. Mathématiques et dialectique chez Nicolas de Cuse. P. 214.
[21] Idem, p. 215.
[22] Idem, p. 217.
[23] Nicolas de Cusa. De la Docte Ignorance. II, 2, p. 111.
[24] Idem, II, 2, p. 111.
[25] Idem, II, 3, p. 113.
[26] Idem, II, 3, p. 113.
[27] Jean-Michel Counet. Mathématiques et dialectique chez Nicolas de Cuse. P.221.
[28] Nicolas de Cusa. De la Docte Ignorance. II, 3, p. 126.
[29] Jean-Michel Counet. Mathématiques et dialectique chez Nicolas de Cuse. P. 225
[30] Nicolas de Cusa. De la Docte Ignorance. II, 4, p. 119.
[31] Idem, II, 4 p. 118.
[32] Idem, II, 6, p. p. 124.
[33] Idem, II, 10, p. 148.
[34] Idem, II, 11, p. 150.
[35] Ver a esse respeito: Michel-Pierre Lerner. Il mondo delle sfere. Genesi e trionfo di una rappresentazione del cosmo. Milano: La Nuova Italia, 2000.
[36] Nicolas de Cusa. De la Docte Ignorance. II, 11, p. 151.
[37] Idem, II, 11, p. 151.
[38] Idem, II, 12, p. 155.
[39] Idem, II, 12, p. 156.
[40] Idem, II, 12, p. 155.
[41] Idem, II, 12, p. 159.
[42] Nicolas de Cues. Les Conjectures/De Coniecturis. Cap. II, 8, p. 9.
[43] Nicolas de Cusa. De la Docte Ignorance. II, 13, p. 163.
[44] Jean-Michel Counet. Mathématiques et dialectique chez Nicolas de Cuse. P. 232.
[45] Nicolas de Cues. Les Conjectures/De Coniecturis. Cap. II, 8, p. 9.
[46] Jean-Michel Counet. Mathématiques et dialectique chez Nicolas de Cuse. P. 236.
[47] Idem, p. 237.
[48] H. Rombach. Substanz, System, Struktur. Die ontologie des funktionalismus und der philosophische hintergrund der modern Wissenschaft. Freiburg-München: Alber Verlag, 1966.
[49] Jasper Hopkins. Nicholas of Cusa’s metaphysic of contraction. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 1983.
[50] Idem, p. 69.
[51] Idem, p. 79.
[52] Karl Jaspers. Anselm and Nicholas of Cusa. New York, London: A Helen and Kurt Wolff Book, 1974.
[53] Jasper Hopkins. Nicholas of Cusa’s metaphysic of contraction. P. 60.