Natureza-morta: uma convocação do tempo entre a construção e a desconstrução da imagem
Resumo
As interpenetrações entre cinema e artes plásticas expressas nas produções contemporâneas de videoarte nos colocam diante de novos sentidos da imagem, em campo aberto a lógicas e perspectivas inaugurais de outras poéticas audiovisuais. O vídeo Natureza-morta, tomado por objeto de reflexão deste artigo, decorre da composição de narrativas sensoriais por meio da suspensão da realidade imediata perspectivando a constituição de novas realidades. A força expressiva da imagem em vídeo ancora-se no caráter contemplativo do olhar que subtrai do cotidiano os fragmentos, os instantes e os detalhes preservados da submissão às cadeias narrativas clássicas do cinema e ao encadeamento lógico de imagens subordinadas umas às outras. Balizado pelos tênues limites assim estabelecidos entre o cinema e a imagem infográfica, entre o cinema e a televisão, entre a arte e a comunicação, o universo do vídeo compreende a mixagem de planos, as janelas, a textura, a espessura da imagem, a imagem totalizante e o travelling como linguagem na composição de novas poéticas videográficas. O investimento na potência plástica e sensorial da imagem desloca o objeto da temporalidade ordinária, circunscrevendo as ações em desvio às representações de uma ideia de realidade. O vídeo Natureza-morta, como forma de se pensar em imagem, apresenta mundos em permanente devir.
Palavras-chave: Narrativas sensoriais; Poética videográfica; Imagem.
Introdução
Através da janela de um trem em alta velocidade, pus-me a observar as paisagens que se construíam diante do meu olhar. Dentro dos limites da grande janela do vagão, as imagens escapavam do aprisionamento possível, lembrando, em sua resistência, que também a vida não pode ser domada. O rápido aparecimento e desaparecimento das imagens diante dos olhos revelava-se em fluxo permanente, deixando expressar-se pelo tempo fugaz do entre, do intervalo que marcava a breve permanência da imagem. Arendt (2017) chama a atenção para a coincidência entre o ser e o aparecer na existência sensível das criaturas, que são assim, ao mesmo tempo, sujeito e objeto na atividade de perceber e ser percebido. O que aparece depende do receptor de aparências, portanto todas as coisas existentes, naturais ou artificiais, em sua qualidade de aparecer, dependem da presença de criaturas vivas receptoras de aparências. As imagens pela janela do vagão se mostravam aos olhos do observador que as recebia e que, pelo aparato sensível, vislumbrava uma diversidade de aparências em paisagens que não cessavam de criar e de recriar o mundo a cada instante. Estar no mundo, nos diz Arendt (2017), significa viver o intervalo entre o aparecer e o desaparecer do e no mundo, um movimento de entradas e saídas em um cenário já montado onde o que se percebe é sempre diferente para “cada espécie e também para cada indivíduo da espécie” (ARENDT, 2017, p. 37).
O tempo do entre é a permanência quase imperceptível da imagem destinada, de novo, a desaparecer.
Cada vida individual, seu crescimento e declínio, é um processo de desenvolvimento no qual uma entidade desdobra-se em um movimento ascendente, até que todas as suas propriedades estejam plenamente expostas; essa fase é seguida por um período de permanência – que, por sua vez, é sucedido pelo movimento descendente de desintegração, que termina com o completo desaparecimento. (ARENDT, 2017, p. 38)
“Coisas em si ou coisas que aparecem”
Natureza-morta1 é o nome da obra em vídeo que apresento neste artigo. Ela nasceu de uma viagem de trem à Barcelona, quando, pela janela do vagão, pude experimentar uma miríade de imagens picturais. Em permanente mutação, as cores, as formas, a luz e a sombra, os contornos, as texturas e os volumes se apresentavam em incontáveis combinações. A minha intenção inicial era tão somente a contemplação que já guardava, em si, a ativação da imaginação na composição de narrativas ainda não explícitas. O ato de filmar a paisagem veio a seguir, quando já não cabia em mim o acervo de imagens que ora se constituía. O armazenamento pelo gesto do observador e a utilização do aparato tecnodigital decerto não eram a obra, e sim o que Heidegger (2010) conceituaria de matéria na sua força de determinação – ou seja, a matéria em potência, ainda não ordenada, que dá contorno à memória do dispositivo: “O caráter de coisa na obra é evidentemente a matéria, da qual ela é constituída. A matéria é a base e o campo para a modelagem artística” (HEIDEGGER, 2010, p. 63) As imagens filmadas davam origem à materialidade com a qual se pretendia trabalhar. Heidegger (2010) observa ainda que, quando submetida a uma distribuição e ordenação próprias, a matéria dá lugar à forma, e já se torna possível falar em serventia – ou seja, aquilo que a nós se apresenta, aquilo que nos é doado na condição de forma e estrutura da matéria, produto fabricado com vistas a uma utilidade e uso. Mas esse ente, o utensílio, não é a obra de arte, embora guarde com ela um “parentesco” que vem do fato de ambos, utensílio e obra de arte, serem produtos da fabricação humana: o utensílio é aquilo que se coloca numa posição intermediária entre a coisa e a obra, entre a pura materialidade e a gratuidade da obra necessária.
A obra em vídeo Natureza-morta é resultado da ordenação da matéria armazenada na memória do dispositivo digital. A forma que determina a ordenação da matéria e a sua estrutura não são determinadas pela utilidade: entra em jogo aqui a criação, que Heidegger define como disputa entre o Mundo e a Terra, entre a clareira e o velamento. A Terra se ergue na abertura de um Mundo ainda sem medida ou decisão. Nela tudo se abriga e com ela tudo se constrói sem que haja desgaste da matéria que lhe é própria, conferindo à Terra a condição de libertar-se a si mesma na conformação da obra que se fecha em um novo Mundo. A disputa, que não se constitui em cisão, dispõe os oponentes no ato fundamental da produção do sendo, que carrega em si os traços essenciais da disputa para a conquista da unidade de Mundo e Terra. A obra Natureza- morta gerada nesse embate mantém em velamento as circunstâncias e os processos de produção, mas deixa revelar-se em acontecimento poético no qual a obra repousa em si mesma, num aberto a ser desvelado.
Voltemos ao termo natureza-morta. A expressão, criada no século XVI, refere- se ao gênero que pretendia representar objetos inanimados da forma como eram observados. Todas as obras produzidas nesse período faziam referência ao ambiente privado ou doméstico: vasos, flores, frutas, louças, bebidas, livros, ferramentas etc. compunham a cena pictórica. Em acréscimo a esse gênero de representação estavam as paisagens tais como se apresentariam ao olhar do artista. Mas, no século XIX, Cézanne redimensiona o sentido de natureza-morta quando pinta maçãs descoladas da representação de cenas domésticas. Partindo para um lugar de suspensão entre a natureza e a utilidade, as maçãs de Cézanne perderam o status utilitário que as caracterizavam para ganhar a qualidade da pura contemplação.
O uso da expressão Natureza-morta, título do vídeo, pretende justamente remeter a esse sentido de suspensão criado por Cézanne – pelo qual a imagem que se constrói vigora em um lugar que não mais procede da pura natureza ou da simples utilidade. Como nesse caso, em que o vídeo deixa de ser um mero arquivo de memória e a paisagem apresentada se distancia da paisagem observada. O vídeo é, tal como o utensílio, o resultado da combinação matéria, forma e estrutura; contudo, ele se subtrai à condição de serventia, na medida em que, fazendo-se apenas obra, ele já não se ordena em função de um uso (HEIDEGGER, 2010).
Como faço emergir alguma coisa que não estava ali?
No início, havia um arquivo de viagem, como os de tantos turistas fascinados pela descoberta de novos lugares e paisagens. Com o olhar espraiado na tentativa de alcançar os mais diversos cenários, a lente do dispositivo recortava e armazenava imagens estáticas ou em movimento.
De volta ao material armazenado, o que parecia ser uma captura ao acaso revelou-se mais do que isso. A escolha do ângulo de captura, o enquadramento das duas garrafas no centro da tela, a diagonal cortada pela moldura da janela, somados à
descoberta da imagem interna do trem, quando este seguia por pequenos túneis, deu-me a perceber que ali estavam os elementos dos quais poderia lançar mão para uma nova produção.
Ganhando maior visibilidade nos anos 70, a videoarte nasceu no movimento Fluxus, datado dos anos 60. Pretendendo constituir-se em um modo de vida, em um modo de fazer acontecer, o Fluxus manifestava-se em concertos-happening, exposições e/ou manifestos que integravam música, artes plásticas, dança e poesia, num convite à participação do público nos espetáculos experimentais. A introdução do vídeo, nesse contexto, deve-se à iniciativa de Nam June Paik e Wolf Vostell.
Compondo o conjunto das obras audiovisuais contemporâneas, a videoarte se afirma como um espaço-tempo singular, no qual a narrativa foge à construção clássica do cinema, constituindo-se em desvios, “sofrendo os desmandos do tempo, se deixando atravessar por temporalidades múltiplas e anacrônicas, por descontinuidades, desencontros, defasagens” (GONÇALVES, 2014, p. 12). Para este autor, no contexto exploratório de novos arranjos estéticos, a narrativa se constrói a partir de pontos distintos: se, por um lado, há “um movimento no sentido da contenção e da rarefação, a busca por formas mais sóbrias e minimalistas, atentas aos pequenos gestos, aos pequenos eventos que emergem na superfície do cotidiano” (GONÇALVES, 2014, p. 11), por outro,
[…] nos deparamos com uma série de mundos dispersivos e lacunares, universos sem totalidade nem encadeamento – um conjunto de caleidoscópios audiovisuais abertos e em movimento. São obras que orquestram cenas polissêmicas e polifônicas, apoiadas sob o conceito de rizoma ou de “enredo multiforme”, nas quais a narrativa se fragmenta, decompondo-se em pequenos quadros, pequenos blocos de espaço-tempo que se cruzam e se atravessam, formando mosaicos extremamente complexos. Labirínticas e enigmáticas, essas obras tendem a oferecer um excesso de imagens que não chegam a compor um corpo ou organismo, mas propõem, antes, passagens entre corpos e imagens, viagem e nomadismo de sentidos. (GONÇALVES, 2014, p. 11)
O trabalho com as imagens escapa à centralidade das interpretações da vida para buscar modos de saber mais plásticos e sensoriais. Imagens arrancadas do dia a dia desvelam-se em “lampejos ou vislumbres de beleza, celebrações efêmeras de gestos, movimentos e sensação” (GONÇALVES, 2014, p. 14). O olhar, numa outra abordagem do mundo, se debruça sobre as banalidades e potências, desprovido do sentido de organização ou ordenação. É uma aposta na plasticidade da imagem e na sua força contemplativa, que não requer discurso ou roteiro prévio.
O vídeo Natureza-morta tem suas imagens extraídas de um dia de viagem, mas orquestra, na sua produção, momentos de fuga a partir da linearidade do tempo em fluxo, despertando o olhar para pequenos gestos de apagamentos e desvelamentos em que a narrativa fragmentada inaugura um outro olhar para o que sempre esteve ali, mas também para o que nunca esteve.
O princípio do movimento estava dado: a obra nasceria desse contexto, da ordenação daquilo que Cornelius Castoriadis (2009) chamou de Caos. Segundo este autor, mergulhado na vida cotidiana o ser humano tem sempre presente em si o Caos – ou a Terra, segundo Heidegger. O Caos é o lugar da possibilidade, o lugar onde a matéria está indeterminada: ele é o inacessível que faz, todavia, surgir o sentido que o abriga. “O desvelamento do Caos mediante o dar forma” (CASTORIADIS, 2009, p. 104) inaugura o Cosmos ou a criação do Mundo.
Desvelamento do caos porque a grande arte dilacera as evidências cotidianas, o “ficar junto” destas aparências e a sucessão normal da vida: para quem ama e compreende a música que escuta, o quadro que contempla, o tempo habitual e cotidiano são rompidos. (CASTORIADIS, 2009, p. 104)
Aos olhos de Castoriadis (2009), o dar forma não significa a mimésis de um mundo existente, ainda que seja desse último que extrai a matéria necessária à produção da obra. Tomada como fragmento do mundo, mas não como o mundo, a obra se constitui na criação de um mundo inexistente que “faz ver alguma coisa que está aí e ninguém via; e, ao mesmo tempo, às vezes faz existir o que nunca esteve aí e que não existe senão em função da obra de arte” (CASTORIADIS, 2009, p. 106).
Nessa perspectiva, o vídeo Natureza-morta fala de um lugar que não está mais no caminho para Barcelona, apesar de ter se utilizado de imagens locais. Deixou de ser um registro ou a restituição da realidade, passando a invocar novos sentidos em que forma, matéria e estrutura se colocam em uma relação de adequação e dependência mútuas. As imagens apresentadas no vídeo estão para além da natureza: o vídeo revela um lugar que a natureza seria incapaz de realizar.
Sobre a incapacidade de a natureza realizar inteiramente o que dispõe como possibilidade, Castoriadis (2009) afirma ser a ação humana responsável por acrescentar à natureza tudo aquilo que esta seria incapaz de realizar, ou de concluir – o arremate que ficou por ser acrescentado. A realização do mundo se dá, assim, pelo gesto humano, que não tem origem na necessidade ou na conformidade com a natureza. Nesse sentido, cabe ao humano o apropriar-se da tekhnê com disposição para produzir e extrair dela os elementos necessários para a criação de novas necessidades e novos modos de ser.
O caminho para Barcelona foi rompido por um estado de suspensão na medida em que a paisagem escapou de sua condição habitual: o ato inaugural do vídeo Natureza- morta é a possibilidade de o humano transitar entre a permanência e a fluidez da imagem, convocando o tempo na sua atualização e, a uma só vez, dele tomando distância. As narrativas estruturadas a partir da construção e desconstrução da imagem revelam novos lugares e novos mundos.
Considerações finais
Em seu texto “Por uma estética da imagem de vídeo”, Dubois (2004) lança algumas questões que valem a reflexão. Ele destaca, inicialmente, a utilização do termo “vídeo” como complemento de novos conceitos, tais como: videoclipe, videogame, videocassete, câmera de vídeo, tela de vídeo etc. Nesse contexto, já sem especificidade, o vídeo coloca-se como complemento na composição de expressões reconhecidamente significantes. Assim, argumenta Dubois (2004), o vídeo carrega uma ambivalência no sentido do fenômeno em si. Situado na ordem das imagens tecnológicas, ao lado de todas as outras como a fotografia, o cinema, a televisão e a imagem síntese, o vídeo deixa-se ocultar enquanto processo, enquanto dispositivo de circulação de informação, qualquer que seja esta. Nesta perspectiva, o vídeo ocupa posições distintas: ele é ao mesmo tempo “objeto e processo, imagem-obra e meio de transmissão” (DUBOIS, 2004, p. 74), sem ser, integralmente, um ou outro. Essa condição paradoxal pode ser o princípio fundamental da natureza e força do vídeo. O vídeo, na sua história, também tem sido visto como um lugar de passagem, “uma espécie de parêntese entre, de um lado, a grande imagem do cinema (emblema do século XX), que o precedeu […] e, de outro, a imagem do computador que ocupou todo o terreno, ameaçando se tornar, numa reviravolta, a imagem do século XXI” (DUBOIS, 2004, p. 99).
Diversas foram as tentativas de se pensar um corpo próprio para o vídeo, de buscar suas especificidades e definir sua identidade; mas todas as tentativas foram levadas à indefinição, a uma condição intermediária destinada ao dilaceramento histórico, dividido entre o cinema e o computador. Mesmo considerado como um espaço “entre”, como um lugar de passagem, um intervalo, um interstício, um parêntese, o vídeo foi sempre pensado como imagem. Porém, segundo Dubois (2004), seria preciso apreciá-lo como um estado, como um modo de pensamento. Para o autor, mais do que buscar as especificidades do meio, ou o seu descarte por uma não identidade efetiva do objeto, “parece mais interessante e produtivo observar o vídeo como travessia, campo metacrítico, maneira de ser e pensar em imagens” (DUBOIS, 2004, p. 111).
As criações em vídeo inauguram novos modelos de linguagem que se revelam em pesquisa, em experimentações, em inovações e em ensaios, definindo o campo da prática videográfica em força expressiva e plasticidade.
Referências:
ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
CASTORIADIS, Cornelius. Janela sobre o caos. São Paulo: Ideia eLetras, 2009. DUBOIS, Fhilippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naif, 2004.
GONÇALVES, Osmar (Org.) Narrativas Sensoriais. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2014.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Edições 70, 2010.
DUBOIS, Fhilippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naif, 2004