Narrativas do Páthos no limiar do século XIX: exorcizar o demoníaco para psicologizar o indivíduo.
Considera-se 1900 o marco do nascimento da psicanálise com a publicação da “Interpretação dos sonhos”, livro em que Freud apresenta um modelo do aparelho psíquico, um dos primeiros ensaios de uma teoria do sujeito e da formação dos sintomas psicopatológicos. Freud geralmente é apresentado como pioneiro, que descobre e cria conceitos que serão centrais na história do campo psi no século nascente. Inversamente, a partir da leitura de Foucault, Stengers e Lantéri-Laura compreendemos que a psicanálise (especialmente até 1914) também pode ser lida como uma espécie de ponto de chegada, de síntese, do que se apresentou como problemático ao longo do século XIX. O que nos permite vislumbrar um intrincado processo de constituição de uma narrativa psicologizada de si, através de uma via de formalização deste discurso primeiramente como método de tratamento, posteriormente como uma Antropologia. Na psicanálise e em alguns elementos da história da psiquiatria vamos tentar demonstrar uma colaboração na formatação do campo psicológico. O efeito desta formatação aglutinadora de diversas tradições e disciplinas será a possibilidade de localizar uma certa dimensão interiorizada como causa, ou a possibilidade de recorrer a conceitos como personalidade para explicar os mais diferentes atos, o que durante o século XX nos parecerá cada vez mais natural. A variação da localização da agência será um analisador que visa explicitar o processo pelo qual uma certa concepção de mundo se torna razoável ou deixa de sê-lo. Porque até um certo momento o desvario, o ato disruptivo, sem sentido, incontrolável ou violento podia ser explicado recorrendo à imagética da possessão? Que processos históricos se articularam para que no século XX esses atos se tornassem presa de toda uma outra máquina de razoabilidade? Como um referencial religioso e mágico que explicava o agenciamento pelo domínio do corpo por um espírito outro, é ultrapassado por um referencial médico-psicológico que situa o agenciamento outro como uma operação de um “aparelho psíquico”? Mesmos fatos, mudança das atribuições? Mesma realidade outra teoria? Ou a percepção do agenciamento não poderia ser tomado como a própria matéria do que se constitui como “realidade”?
Tomar a psicanálise como disciplina que se lançou a responder as questões do século XIX não a desqualifica. É uma espécie de vanguarda de influência duradoura e cujas formulações conceituais irão produzir impactos culturais para além dos efeitos do tratamento específico de um indivíduo. Se a psiquiatria é a disciplina que deverá fornecer ao mundo civilizado uma explicação e um tratamento para o homem sem razão, na justa medida e a partir do momento em que a razão define o homem, será necessário multiplicar em negativo tudo que este homem de razão não é, isto é, especializar o campo, nomear as entidades, fazê-las falar, fazê-las revelarem suas verdadeiras correspondências, seja recorrendo a um substrato físico, anatômico, o corpo, seja dando corpo a uma série de instâncias psíquicas, que poderão explicar um certo modo de funcionamento, uma certa sintomatologia de origem mental. Naturalização dos transtornos mentais para ocupar a desnaturalização do demoníaco. Ao estado laico francês, no código das leis, o juiz não poderá recorrer ao modelo do agenciamento demoníaco como figura de causa do que julga. É preciso um verdadeiro exorcismo das concepções de mundo, que já não podem considerar oficialmente razoável os agentes de sobrenatureza. Será preciso forjar toda uma nova paisagem com força de ontologia que possa fazer papel de causa em um mundo sem espíritos, desencantado, na pena de Weber. Mas é quase como se o encantamento se transfigurasse numa espécie de avesso do mundo sensível, um aparato de interioridade (cognitivo, sensorial, afetivo etc.) que acaba por se transformar na causa do mundo, no modo como o mundo se apresenta como experiência, por fim, conclui-se, o único mundo que temos…esta forja do psicológico na tensão entre um dentro e um fora é o novo mito que poderá propor uma nova genética, não mais do corpo, mas do nascimento de um sujeito. Será preciso explicar como este corpo se encanta a ponto de virar o próprio lócus, a própria gênese do agente.
De certo modo a gênese desse sujeito é literária, é por um efeito de linguagem, no mínimo, que é possível alguém supor que seja um eu, que trace e vicie um percurso no mundo, um arcabouço de tempo e espaço que se conforma como uma unidade, como um certo efeito de memória, de sensação de presença, um repertório de inflexões, um léxico de frases feitas, plagiadas e inéditas que volta e meia pode induzir alguém a se dizer eu. Esse efeito eu, para frasear no modo mais deslizante possível o que será construído no século XX como uma espécie de substância, uma substância com uma dimensão de profundidade dentro. Mas será somente quando as disciplinas substanciam o eu que será possível multiplicar os agenciamentos sem espírito? Um corpo e vários eus? Uma natureza e várias culturas? Um corpo e vários Issos, disso que só ganha nome depois e que não existe antes de se apresentar, portanto, inumeráveis, e, portanto, infindáveis. A literatura do século XIX vai encantar a interioridade ao dar acesso às consciências dos leitores uma consciência da consciência de si dos personagens. Seja através da própria perspectiva narrativa limitada do personagem, seja através de um narrador onisciente, que mesmo potencialmente tudo sabendo, só pode desencadear seu futuro no ritmo do enunciado. Tolstói, Dostoiévski ou Proust prescrevem o que é ser, demonstram narrativamente o que poderia ser uma existência psicológica de fato, ou o que é existir como fato psicológico. Seria muito arriscado dizer que existe uma relação de proporção inversa entre o desencantamento do mundo e a constituição de um locus agenciativo interiorizado? O romance é o reverso da magia? Seria possível supor alguma correspondência entre o declínio do prestígio e da eficácia de todo um saber teológico e mágico que povoava o mundo de relações com o advento de uma proliferação de novos conceitos que desenhariam toda uma complexa cartografia de uma “realidade interior”? O mágico virou psíquico, os deuses viraram doenças, diria Jung, sendo sempre menos psicológico do que se espera. A alquimia na verdade era o relato de um processo interior? Ou a interioridade é o próprio processo de desacreditar do poder da alquimia?
Desacreditar a verticalidade do reino para alastrar a horizontalidade do estado
A constituição deste eu interior como valor social e fonte de agência é um processo que dificilmente poderia ser separado de fatores políticos (como a constituição das identidades nacionais), demográficos (a expansão da vida nas cidades e a hegemonia da família nuclear), econômicas (a constituição de uma classe média liberal e consumidora, influente no comportamento), legais e sociais. Para fins de análise adotamos um ponto de vista antropológico, comparativo, etnográfico, que não pressupõe o sujeito psicológico como intrínseco ao gênero humano nem como uma destinação final de um processo de desenvolvimento. Sua emergência é um fenômeno social historicamente localizável, circunscrito geograficamente e que não deve ser tratado como um valor em si, o que guarda grandes dificuldades. Esta tentativa de neutralizar o alcance pervasivo do conceito é importante, pistas diversas indicam que esta modalidade de concepção da agência não é tão hegemônica nas últimas décadas do século XX. O modelo das bio-identidades ou também chamada cultura somática parece se revestir deste mesmo encantamento que supomos pouco a pouco ter arrebatado o século XIX na direção da emergência deste sujeito psicológico. As apostas migram para o corpo, a atual fonte que supostamente fornecerá as respostas que a retórica subjetivante e mentalista parece não ter conseguido fornecer ao longo do século XX. Esta transformação é concomitante à dissolução de um humanismo totalizante, que tem correspondências com o sujeito psicológico no nível individual e com o estado nacional em um nível macropolítico. A retórica da cultura somática é concomitante com a dissolução do eu no corpo e a dissolução do estado nas corporações transnacionais, que tem como marco o fim do mundo bipolar da guerra fria e a emergência da nova ordem mundial.
Para constituir um sujeito psicológico interiorizado foi necessário a superação do modelo de submissão feudal, monárquico ou escravocrata (sob a égide da palavra “liberdade”). Concomitantemente horizontalizar o direito e supor uma “igualdade” baseada na ideia de autonomia e soberania do indivíduo e do estado, e na medida em que este modelo macro político mostra suas falências o valor alocado no psíquico parece migrar para um outro ponto. Justamente porque parâmetros como autonomia e responsabilidade se tornam cada vez mais impraticáveis no mundo do capital transnacional. Na emergente cultura somática novas configurações da intencionalidade serão postas em cena.
O conceito de cultura somática revela que a possibilidade de atribuir a fonte da agência ao corpo não tem uma relação intrínseca com a verdade dos fatos, ainda que para ter o efeito desejado, se apresente assim. Nunca existiu uma teoria totalizante do psíquico e seus possíveis agenciamentos na era do sujeito psicológico, algo que pudesse explicar ponto a ponto todas as causas e consequências etc. Também não se faz necessária uma teoria completa da causalidade física, cerebral, genética, somática, para que ela entre em operação como discurso. Não há um impedimento de que essas modalidades de atribuição da agência proliferem e ganhem reconhecimento. O ponto de ancoragem da análise é a narrativa, é como reconhecemos os modelos de causalidade em que os agenciamentos ganham presença. A emergência do sujeito psicológico como fenômeno social, nesse sentido, é tão prescritiva quanto uma narrativa de si baseada na cultura somática, ou as versões holistas em que aos indivíduos restaria pouco espaço de manobra, ou “escolha”. A análise destas modalidades de narração se baseia no mapeamento das formulações sobre agenciamento e teorias da causalidade que constroem as sólidas contingências do que podemos chamar razoabilidade ou senso comum.[1]
Max Weber na Ética protestante e o espírito do capitalismo defende que no interior de uma concepção de mundo são transmitidos diversos modos de fazer, práticas ou valores que podem ser influentes mesmo quando esta visão de mundo já não tem a mesma centralidade explícita. A ética religiosa forneceria um arcabouço fundamental da vida social, as formas razoáveis de sofrer, suas diferentes causas e as práticas que estariam implicadas em seu alívio, em sua superação. A soterologia é a teoria do sofrimento, por uma aproximação etimológica, poderíamos falar de uma teoria do páthos, na medida em que ambas portam essa dimensão de passividade, de ser objeto de uma força. Diferentes soteriologias mapeiam diferentemente a causalidade do sofrimento, ou, aplicando a teoria da atribuição da agência de Alfred Gell, cada modelo sotereológico implica um modelo de causalidade. Os sofrimentos, mesmo quando sentidos individualmente, não podem ser uma invenção individual, ele deve se desenvolver segundo uma trama ou uma narrativa mais ou menos típica, porque senão seria inclusive muito difícil reconhecer o sofrimento como signo. Ele supõe um código, para que possa ser reconhecível, e mesmo para que possa existir como experiência individual e fenômeno social. Explicar o sofrimento tendo como causa a ação de demônios ou o castigo de deus é muito diferente de explica-lo através da culpa inconsciente ou da constituição de uma estrutura psicótica. Narrativas que fazem referência a conceitos muito diferentes, engancham soluções diferentes e, precisam de mundos diferentes para que ganhem uma dimensão de ancoragem do sentido ou mesmo de ancoragem como verdade, como experiência no mundo. As terapêuticas ou as transcendências são ofertadas (e só podem ter eficácia) após os termos das causalidades estarem estabelecidos. Não adianta fornecer saídas para o que não é percebido. Como fenômeno social, a psiquiatria, a psicologia/psicanálise seriam parte do processo amplo de estabelecer uma ciência do sofrimento, uma espécie de soterologia sem cosmologia, como se isso fosse possível. Na psicanálise a descrição dos mecanismos de constituição das estruturas (ou individuação da soteriologia do sujeito psicológico) vão sendo esboçadas do final do século XIX até 1914 por Freud. Neurose histérica (escritos sobre histeria 1890), perversão (Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, 1905), neurose obsessiva (Notas sobre um caso de neurose obsessiva ou homem dos ratos, 1909) e a psicose (Caso Schreber, 1911). Todos estes conceitos estão em trabalho nesse período, ainda vão ganhar novas conotações a partir de incrementos por parte do próprio Freud, além de ganharem leituras específicas a partir das diversas correntes psicanalíticas que irão proliferar, especialmente na segunda metade do século XX. Os conteúdos ainda vão se multiplicar, mas as formas estão lançadas. Soterologias ou modelos de sofrimento neuróticos e psicóticos, a grande divisão que irá motivar a produção psicanalítica e influenciar a psiquiatria, pelo menos até o advento do DSM-III em 1980.
1840-1914 Individuar as formas para um novo horizonte de agenciamentos possíveis
A história da psiquiatria nem sempre foi muito rigorosa e baseada em métodos historiográficos. Desde os anos 1960/70 esforços diversos irão profissionalizar o campo, seja através de uma crítica exterior (Foucault, Goffman, Castel), na criação da antropologia médica (Zola, Conrad) ou em novas leituras da história da medicina/psiquiatria (Foucault, Porter, Berrios, Healy, Lantéri-Laura, Quétel). A ampla literatura crítica sobre a construção do DSM-III, é sinal desta tendência no campo da psiquiatria (Minard, Horwitz &Wakefield, Jerusalinsky, Bentall, Greenberg, Kirk & Kutchins, Demazeux, Watters).
A segunda metade do século XIX é um período de muitas transformações com a proliferação de toda uma nova nomenclatura na psiquiatria. Novas teorias e novas razões para o que era necessário dar uma razão. Enumerar cronologicamente suas “descobertas” leva à armadilha de reproduzir, ao contar a história, uma versão finalista e tautológica do processo histórico, endossando a retórica dos próprios praticantes. Premissas “evolucionistas” e leituras finalistas nos assombram cotidianamente, a constituição desse saber/poder ao longo do século XIX não é tão encantado nem vetorizado quanto a reprodução deste discurso nativo faria crer. Primeiro, através de Foucault, compreendemos que a psiquiatria não é uma entidade autônoma que decide voluntariamente e independentemente seus rumos, seus temas de investigação, ou “ao que deveria responder”. A ideia de que a clínica guia a episteme romantiza o processo de construção do conhecimento supondo que ele é apenas um processo de descoberta, de revelação de uma verdade oculta. O inconsciente sempre esteve aí, a sexualidade infantil sempre esteve aí…foi necessário apenas descobri-los… como se eles fossem entidades naturais, uma nova espécie de animal que encontramos na floresta. A constituição do saber psiquiátrico, seus diagnósticos, tratamentos e dispositivos de ação e reclusão só são compreensíveis quando compreendemos o contexto histórico em que eles são forjados. Este aparato vem colonizar o espaço mágico-teológico, desacreditando qualquer experiência que não possa ser explicada pelas ciências naturais e ao mesmo tempo remetendo à interioridade a própria ideia de força, de causa, criando uma espécie de corrida para compreender a verdade que se oculta no interior de cada indivíduo. A psiquiatria deverá fornecer explicações para o desvario, o que não é desejado socialmente, uma explicação para o mal. Uma ciência que possa explicar as razões ocultas destes tormentos, e que explicando acaba por também se encarregar da vida destes indivíduos. Ela fornece além de um lugar social, uma geografia e uma arquitetura que poderão enclausurar todos estes feiticeiros desastrados que apresentaram seus desvios no espaço público: o século XIX é conhecido como o século dos manicômios. A fabricação dos conceitos e a constituição dos espaços exclusivos não são fenômenos separados, a descrição do pathos é o que permite e justifica o processo histórico de exclusão (Pessoti, 1996; Quétel, 2014) [2]
Em Leitura das perversões Lantéri-Laura explora este processo de proliferação de conceitos e classificações que irá desembocar na estruturação do conceito de personalidade. Esta percepção social de que existe um lugar inacessível, complexo e perigoso faz par com o próprio prestígio de quem se lança a explorar este território interior. Assim como com a magia, em relação ao psíquico, parece haver uma mistura ambígua de ceticismo desqualificante e temor respeitoso. De qualquer modo, um dos efeitos da interiorização e da construção social da loucura como efeito de processos interiores é o vislumbre de um risco, de uma certa vertigem ao se contemplar a dimensão psicológica. Nos textos é visível que a questão da sexualidade (perversa) e da periculosidade acompanham e motivam o processo de classificação. Kraft-Ebing e Havelock Ellis fornecem as descrições clínicas e classificações psiquiátricas mais perenes e influentes nesse campo. A teoria da degenerescência (Morel, Magnan), a teoria da personalidade criminosa (Lombroso), os argumentos racialistas baseados na eugenia também tiveram papéis importantes nesse período, na articulação entre norma moral social e transtorno mental ou outras doenças. Todas tentando articular uma compreensão moderna sobre a causa do sofrimento, ainda que para o nosso olhar distanciado sejam facilmente identificáveis as heranças de uma moral religiosa na teoria da degenerescência, por exemplo.[3]
Mas é na análise de um relatório de Dupré (1912), que ele esclarece o processo da passagem da descrição dos comportamentos perversos para o conceito de personalidade perversa. Parafraseando Freud, poderíamos dizer, a teoria da personalidade é a nossa mitologia. O que vai permitir explicar uma série de coisas sem necessariamente passar ela mesmo por uma explicação, exatamente porque o que faz supor a personalidade perversa reificada é o comportamento perverso, em um jogo tautológico que em alguns momentos transforma essas disciplinas numa espécie de jogo de palavras, onde se fala o que todos já supõem numa linguagem especializada. As ciências do homem (humanas?) serão interrogadas a fornecer novas razoabilidades da causa, um novo senso-comum que transfira os invisíveis e suas intencionalidades do mundo para a cabeça. A um mundo desanimado, em que os humanos supostamente detêm o monopólio da alma, corresponderá o psíquico, multiplicado de presenças. O que precisa ser eliminado nesse discurso emergente das ciências humanas? Deus pela ciência em geral, mas no caso da psiquiatria, os demônios e toda sua parafernália, todo um arcabouço imagético que forneceu modelos de causalidade durante séculos. O demoníaco e o psicológico visam um mesmo território e nesta tomada de poder, a psiquiatria primeiramente individualizou (o demônio não é um outro ente), e ao mesmo tempo, e nisso a psicanálise foi exímia, manteve sua dimensão de alteridade, mas interior, psíquica. Os demônios passam a ser psicológicos, possessão passa a ser dissociação, a alteridade é uma vivência psicológica derivada da própria esquize do sujeito e não da existência de um outro literal. Para o demoníaco ganhar este status psicológico será necessário forjar todo um aparato conceitual para explicar, no caso a caso, os mesmos fenômenos, mas a partir de um novo horizonte de causalidades agenciativas. Parece ter havido uma ordem nesse processo, conjugando a máquina psiquiátrica e a máquina psicanalítica.
Num primeiro momento foi necessário individuar os fenômenos, forjar uma classificação (aliás, várias), dar nomes e inventariar os causos, as coleções de vinhetas clínicas, o catecismo da psiquiatria segundo Lantéri-Laura. De 1840 a 1914 a psiquiatria fará este exercício exaustivamente, proliferando nomes próprios, juntando palavras gregas e latinas para seguir o padrão de uma nomenclatura científica como concebida à época. No segundo momento, com as formas mais ou menos individuadas, tratava-se de fornecer uma teoria das forças, como as diferentes energias se uniam, se chocavam, se reprimiam e se manifestavam – e assim explicar as formas individuadas do patológico, explicar o sintoma em suas variadas manifestações. “Descrever” nesse contexto de solidificação de um novo paradigma é um processo de criação (é preciso dizer o que é sintoma), e se por um lado a psiquiatria criou/descreveu inúmeras novas “entidades” patológicas, por outro, quem revolucionou o campo em seu aspecto formal foi Freud. Não pela invenção de algum conceito psicanalítico, mas pela invenção de um novo gênero literário, o caso clínico. Invenção muito subestimada, arrolada no rol das curiosidades da biografia de Freud, em contraste com a teoria psicanalítica em si, alvo de muitos estudos, comentários e reavaliações.
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud articula o naturalismo do sexual (via Darwin) com uma teoria do desenvolvimento psíquico, criando as bases do que será desenvolvido como as diferentes estruturações psíquicas. Foucault apresenta Freud como aquele que respondeu ao que o século XIX se indagava e não como o descobridor da sexualidade infantil (Foucault, 2001). O “pequeno masturbador” era uma figura central das preocupações físico-morais da época. Freud transformou a sexualidade na explicação do sintoma psicopatológico adulto, pelas formações, fixações (libidinais), pelo modo como o drama edípico se desenrola. O complexo de Édipo e os modos dessa interdição desembocam na estruturação psíquica: neurose, psicose, perversão. Teoria da estrutura, Teoria da personalidade, forja-se uma nova causalidade, uma nova imagética do agenciamento baseada na psicologização. Esta continuidade narrativa em que o infantil explica o adulto só pode ser construída a partir do caso clínico como novo gênero, por isso sua centralidade em termos formais. Até então na psiquiatria o caso era só a ilustração da teoria, um modo de apresentar na prática a manifestação do sintoma através de um comportamento. Nos casos escritos por Freud é toda a biografia que se apresenta como uma espécie de anteparo da história sintomática. O romance familiar atualiza uma causalidade narrativa que articula o próprio narrar com o édipo como mito fundador e ancoragem da forma de operacionalização psíquica do sujeito. No método biográfico a construção do sentido do sintoma se dá pela análise da relação entre história e fantasia, revelando o patológico. Nesse sentido a ideia de estrutura tem um alcance bem mais amplo do que o que se circunscreve ou se expressa patologicamente. Mesmo o funcionamento cotidiano, não explicitamente sintomático, porta e é expressão de uma determinada estruturação. Textos como Psicopatologia da vida cotidiana ou Os chistes e sua relação com o inconsciente, acabam por demonstrar que o psíquico não está circunscrito a um domínio especializado, é antes a condição da apreensão de qualquer percepção. O que reforça um empuxo à ideia de algo profundo, oculto, fugidio, mercurial, que se transfigura e que tem um especialista.
Para cada conjunto de sintomas um diagnóstico, para cada diagnóstico uma personalidade, que é a base e a fonte de expressão do próprio sintoma. Ninguém é normal porque tudo é psíquico, portanto, nada escapa à esquize, o inconsciente como conceito que irá derrubar a unidade da consciência, mas não a unidade psíquica do homem (Kant), porque a psicanálise nesse sentido, se emancipa da medicina para virar uma teoria do Homem, uma Antropologia. Não é medicamente que o homem é cindido, é Antropologicamente, é a condição humana. Discussão bastante atual sobre a inflação dos diagnósticos, cuja munição psicanalítica geralmente é fornecida pelo “Mal-estar na civilização”. O DSM como modelo teria patologizado a própria condição humana ao ter suposto, como negativo, um homem sem inconsciente, e, portanto, sem sintoma, a princípio. O grande mérito da psicanálise é não ter uma teoria da normalidade, porque pode psicologizar tudo sem patologizar tudo, ou mesmo que o faça não se torna relevante porque é o comum. O modelo do DSM, por operar a partir de uma ideia vaga de normalidade acaba por patologizar quase tudo sem psicologizar nada. Se todo mal-estar é páthos…nada deixará de ser medicalizado.
Como Lantéri-Laura bem explica: primeiro é necessário explicar o mal sem recorrer à teologia, explica-lo psiquiatricamente, sem recorrer à demonologia e sua iconologia. Depois de forjar e classificar o repertório dos comportamentos, construir a fôrma individual do que poderá ser identificado como fonte ou causa do comportamento, a ideia de personalidade, na análise de Lantéri-Laura, a personalidade perversa. Mas o mesmo também serve para as outras figuras que surgirão nestas novas tipologias, tratava-se de explicar o mecanismo de forças envolvidas nas personalidades neuróticas (obsessivas e histéricas), perversas e psicóticas. Enfim, alteridades interiorizadas, demonologia desontologizada, diferentes estilos de manifestação sintomática explicados por diferentes configurações/constituições do aparato, que se reifica como personalidade.
A síntese do 1900: hipnose e sonho como expressão do psíquico
A relação entre magia e psicanálise não é uma novidade para a psicanálise em particular nem para a medicina em geral. Mas há uma diferença entre o modo como a magia aparece como a contraposição necessária para a constituição da disciplina e uma teorização mais tardia que irá encontrar mais pontos em comum do que a psicanálise ou a medicina desejariam.[4]
Tanto Freud quanto Jung tinham seus antropólogos cativos, James Frazer (1854-1941) é a fonte de Freud, O ramo dourado e sua vasta coleção de causos mágicos, práticas rituais traduz o estilo da chamada antropologia de gabinete, que já ia se tornando ultrapassada pela invenção de Boas (o sentido é dado pelo contexto/Cultura) e um pouco depois pela codificação da etnografia através de Malinowski. Os relatos do campo de exploradores, missionários, soldados, agentes governamentais imperiais certamente carregavam sérios desvios etnocêntricos, reforçando o que na época se chamava “mentalidade primitiva”, que era o atributo mental das “sociedades primitivas”. O antropólogo de plantão de Jung era Lévy-Bruhl, com ênfase no conceito de “participation mystique”, o que Jung associava ao conceito de “abaissment du niveau mental”, de um grande e esquecido teórico da época, Pierre Janet (1859-1947). Este conceito antropológico era usado quase como um conceito clínico, que descrevia um estado mental de mistura e indiferenciação psíquica e de onde se derivavam uma série de experiências dissociativas, levando à emergência do que Jung chamaria de imagens do inconsciente. Além deste uso clínico de conceitos antropológicos que visavam explicar as práticas mágicas, Jung cada vez mais deliberadamente buscou em três ramos “irracionais” e “pré-científicos” da tradição ocidental, fundamentar sua técnica: a mitologia, a alquimia e o gnosticismo em geral. Aí vemos a ênfase iluminista de Freud, e a crescente ênfase romântica de Jung. Descartes-Voltaire-Darwin-Frazer-Freud; Paracelso-Goethe-Rousseau-Lévy-Bruhl-Otto-Jung.
Desde o primeiro encontro entre os dois o fantasma da magia se apresenta: na conversa de 14 horas na casa de Freud, em certo momento Jung anuncia que algo irá acontecer e uma estante desaba na frente dos dois. Na conturbada ruptura de 1912-13, com a publicação de Jung do livro Símbolos e transformações da libido, com a consequente ruptura pela posição firme de Freud em relação à sexualidade como fonte energética do aparelho psíquico. Pelas notas que Freud foi acrescentando após 1913, destituindo Jung, como em Sobre o narcisismo, nos Três ensaios e na história do movimento psicanalítico. Fico com a impressão que Jung talvez tenha vindo a se tornar tudo o que Freud mais temia. Este esforço revela a insistência de Freud em manter a fronteira do psicológico sem dar brecha aos antigos mandatários do terreno, religião e magia. Uma herança ocultista aparece na hipnose, pela herança de Mesmer e a teoria do magnetismo animal. Freud irá receber o método já mais purificado e apropriado pela medicina da época. As experiências mediúnicas, que inclusive foi objeto de um importante estudo de Jung nos 1900. A teosofia e diversas confrarias, adoradores do sol, enfim… a magia está no ar. Fora toda a fascinação dos autores alemães pela antiguidade grega e romana. Era um cenário de muitas misturas e que Freud marcou uma posição muito rígida, que teve um importante efeito de diferenciação. Neste momento sexualidade significa cientificidade. A sexualidade como fonte energética mantinha a psicanálise associada à teoria darwiniana, alocando o sexual como um aspecto do processo evolutivo. A sexualidade humana e sua expressão psíquica seriam modulações específicas (e algo desnaturalizadas) de um regime mais geral que seria a Teoria da evolução das espécies. Por outro lado, o princípio de conservação se ligaria ao princípio de realidade, também dando um estatuto à formação do eu dentro da história natural proposta pelas premissas darwinistas.
Um marco do processo de modernização, ou purificação segundo Stengers, da psicanálise, é o abandono por parte de Freud, do chamado método catártico ou a hipnose. Os argumentos em prol da necessidade da associação livre, da elaboração dos conteúdos que chegam à consciência, do manejo da transferência comungam do objetivo de promover um reposicionamento subjetivo, ou mudança de atitude, nas palavras de Jung. Isso marca a passagem de um método baseado em uma premissa de aplicação de uma técnica sobre um indivíduo, para a ideia de que o tratamento opera através da atualização do inconsciente na relação transferencial. É a lição das histéricas. É a própria ascensão da dimensão sujeito como condição de qualquer transformação, o que acaba por influenciar o método. É como se Freud tivesse, nesse momento, descoberto o que ele tratava, porque até então este objeto parecia estar misturado ao objeto da magia. A hipnose é um dos grandes regimes de contrabando da magia na medicina e não é por acaso que os grandes especialistas como Charcot (1825-1893) em Paris e Liebeault (1823-1904) e Bernheim (1840-19191) em Nancy a estão usando para tratar doenças mentais, e atraindo um grande público. A própria hipnose passou também por um processo de purificação que visava distanciá-la de Mesmer e especialmente explica-la em termos psicológicos, desqualificando o magnetismo animal, mágica demais para a segunda metade do século XIX. O tema da influência ou “influência à distância” é o que deve ser decifrado, com respostas variadas no campo da magia, da religião, psiquiatria e psicanálise. Freud primeiramente se apropria do método e depois o revela como menos moderno porque, na verdade, menos psicológico, qual seria o sentido de apresentar a verdade do sujeito a ele mesmo como se ela fosse um fato objetivo verificável e possível de extrair, através da hipnose? Esta operação não se assemelha à tantas práticas mágicas? A astrologia, a leitura de cartas, os métodos divinatórios não operam a partir da oferta de revelar algo íntimo como se fosse objetivo? Ao mesmo tempo que a psicologização da psicanálise irá banir a hipnose, continuará tendo que administrar, teorizar e controlar sua herança selvagem, o mais mágico dos conceitos psicanalíticos, a transferência. Curiosamente é um conceito que Jung desconsidera inicialmente e depois o apreende através da alquimia. A própria psicanálise terá sempre muitas dificuldades com o conceito na prática clínica, reconhecendo que em relação à transferência existem dimensões que nem sempre são teorizáveis ou racionalizáveis. A transferência ainda que não consiga domesticar toda potência mágica implicada nas imagens dos processos de cura, busca circunscrever a influência como um processo psíquico, inconsciente e não efeito de agências exteriores. Temos então o primeiro passo da purificação: da hipnose à transferência.[5]
Em 1900 Freud publica um livro sobre sonhos… não tinha algo mais mágico para escolher? O sonho também tem uma história antiga no terreno da magia e o próprio Freud passa uma parte importante do livro mostrando diferentes concepções sobre o tema. O sonho como método divinatório, como método premonitório, como uma forma de comunicação com os mortos, como um método de cura, como praticado pelas sacerdotisas de Apolo em Delfos, que sonhavam à noite e contavam o sonho ao paciente pela manhã. O sonho como epifania, como um encontro com a divindade ou outros seres “de outros planos”. Uma tradição antiga de registros de métodos de abordagem dos sonhos e nunca sua dimensão individual foi enfatizada. Ainda que o sonho possa ter implicações pessoais para o sonhador, ele apontava para relações com outras agências exteriores ao psíquico. A psicologização do sonho faz com que ele se desvincule do mundo, só podendo ser compreendido na sua relação com o sonhador, com sua biografia ou com sua fantasia. São muitas apreensões e manejos dos sonhos dentro das várias psicanálises. Mas chama a atenção essa coincidência de interesses tão fundamental. Com a psicanálise o que o sonho agencia é de outra ordem, sempre relacionada à realidade psíquica do sujeito, é nestes termos que deve ser analisado e neste campo que deverá produzir suas consequências. O sonho não fala do mundo, o sonho não fala do outro, no máximo o sonho é a versão de outro ou de mundo que o sonhador tem. Os sonhos não são revelações, não é influenciado por agentes “de outros planos”, não é a divindade se comunicado, não é epifania nem processo de cura por uma influência exterior…o sonho só fala do próprio sujeito. Mas nessa dimensão psicologizante parece que tudo só fala do sujeito, o que nos remete a uma característica fundamental deste modelo: uma solidão ontológica em que tudo parece ser apenas espelhamentos, reflexos. O modelo psicologizante é o fundamento da individualização, criando uma fronteira bem marcada com o mundo. Talvez fique mais claro porque o sofrimento nesses contextos se apresenta pela via do desamparo (inclusive apresentado como ontológico) e do isolamento. É uma das vias de explicação da epidemia de depressão por um viés sociológico (Ehrenberg, 2004).
Na obra de Freud e nas correntes psicanalíticas posteriores a militância anti-religiosa foi muito presente. O futuro de uma ilusão tenta desconstruir, na melhor tradição iluminista, Voltairiana, as ilusões da vivência religiosa. A transducção neurose obsessiva – ritual religioso é genial, a demonstração de que as religiões são formações neuróticas obsessivas coletivas que visam não reconhecer o desamparo de um mundo sem deus. Através de seus rituais encenam esta negação e se protegem de um saber que ao mesmo tempo em que parece incomensurável seria a possibilidade de crescer e assumir responsabilidade sobre o mundo e o destino. Inversamente serve de modelo para a religião individual do neurótico, que ritualiza no sintoma a expiação da verdade (do desejo) que não poderá reconhecer. Sem entrar no mérito, estamos falando de um terreno comum entre o psíquico e o religioso.
Após esta fundação: transferência substitui a hipnose, inconsciente explica o onírico e a sexualidade infantil implica na constituição da personalidade adulta (1890-1905), observamos uma virada em relação à temas mais sociológicos na psicanálise nascente, por volta de 1908.
Freud, Jung, Abraham, Rank…começando a tatear elementos de uma teoria da cultura ou mesmo rascunhos de uma Antropologia, que em Freud terá seus grandes marcos em Totem e Tabu e Mal-estar na civilização. Há uma cronologia nesse processo que talvez nos permita mais um palpite de nossa hipótese.
Primeiramente foi necessário expandir e encantar o território da interioridade ressignificando uma série de fenômenos como efeitos dos mecanismos ou do teatro psíquico (sonhos, dissociações histéricas, sintomas conversivos, rituais obsessivos, vivências delirantes e alucinatórias, comportamentos cruéis ou sexualmente fora da norma), longo processo que a psiquiatria se ocupou na segunda metade do século XIX fornecendo novos nomes e novas causas, sempre a partir de uma dimensão individual e com algum grau de psicologização. A psicanálise seria, nessa perspectiva, a culminância deste processo, que nos 1900 vai começar a fornecer os elementos (teoria do aparelho psíquico e mecanismo de formação dos sintomas, inicialmente) para uma compreensão aprofundada das causas, no regime do indivíduo psicologizado. Depois de minimamente estabilizada a razoabilidade das causas nos agenciamentos psíquicos, com forte acento individualizante, restaria explicar a relação disso com o mundo social. Primeiro divide, depois se ocupa de explicar a relação do dividido. Parece importante para o processo só partir para a dimensão sociológica depois de garantir uma certa estabilidade da versão psicologizada de indivíduo…porque talvez se a agência não tivesse sido ancorada no psíquico, isso que é tomado como individual talvez pudesse se dissolver em outros discursos mais sociologizantes.
No campo das ciências humanas também e concomitantemente se fundava a sociologia, precisando se separar da filosofia e da psicologia por um lado e já imediatamente elegendo a religião e a magia como objetos privilegiados de estudo. Weber e Durkheim como dois dos fundadores da disciplina, são reconhecidos pelos seus estudos nesse campo. A magia, de certa forma, é o nome que a antropologia dá para uma grande diversidade de práticas e noções sincronicamente distribuídas, que encenam os mesmos tipos de problema que a nossa concepção psicologizada de sujeito. Ambas advogam de uma certa ideia de causa, e estão disponíveis no senso comum. Como Mauss aponta: a magia é o nosso primeiro fórum de construção de relações de causalidade. A psiquiatria, como ramo da ciência, irá se contrapor e reivindicar o monopólio da causalidade, em termos psíquicos.
A magia tem toda uma riqueza de imagens de agenciamento que são muito anteriores ao processo histórico de psicologização. O sujeito psicológico é o efeito de uma certa torção da magia como interioridade? As leis da magia, seus regimes de operação são contrabandeados para explicar o funcionamento psicológico? A metáfora e a metonímia que Mauss usa para distinguir a magia por semelhança e por contiguidade, são as mesmas figuras que Freud utilizou para explicar a formação do sonho/sintoma: condensação e deslocamento. Por outro lado, na demonologia também existem especializações, como demônios sexuais, os íncubus e súcubos, por exemplo. Na conversão das forças haveria correspondências entre os dramas da influência demonológica em suas especificidades e os dramas psicológicos (Jung diria que sim)? A psicologização herda suas leis e suas operações? Não sei responder uma pergunta como essa, mas essa afirmação é muito capciosa porque há um momento anterior, que é a condição para o próprio contrabando, a ideia de que há uma separação entre psique e mundo, realidade psíquica e realidade exterior, sujeito e objeto. Para de fato entender o que é um mundo em que a magia é crível, é preciso supor psique e mundo não separados. Focalizar o conteúdo das operações e suas semelhanças nos distrai justamente do ponto nodal da ruptura moderna, que é supor essa separação. Só assim o sonho pode não ter relação com o mundo, as representações não têm nenhuma relação intrínseca com os representados, ou as palavras com as coisas. Um mundo desnaturalizado e convencional, desencantado em seus mecanismos previsíveis, alheio à vontade, fantasia, sentimento ou pensamento, agora tomados como atributos, como “funções” psíquicas, individuais e ao mesmo tempo universais (unidade psíquica do homem). Concluímos que a psicologia não pode admitir a magia porque ela exige o monopólio de um território, são teorias da agência concorrentes, que incidem sobre um mesmo espaço conceitual, a partir de premissas muito diferentes. Se a magia existe na realidade então o psíquico já não é mais uma coisa em si, mas o próprio operador disso no mundo. A divisão entre o dentro e o fora perde seu status de função fundadora[6]. Curiosamente esta constatação nos remete ao debate contemporâneo sobre a relação corpo e mente, que muitas vezes supõe uma conexão entre duas entidades reificadas sem sequer vislumbrar que parte da solução (dissolução?) do problema estaria em justamente reconsiderar a psicologização e seus estatutos de agenciamento. Seria muito estranho supor encontrar a “chave desta relação” mantendo o modelo do sujeito psicológico intacto ou o conceito de corpo como expressão da natureza.
No campo psiquiátrico e psicanalítico o nome que se dá a este fenômeno de perda do referencial comum da divisão entre dentro e fora e suas relações de agenciamento é loucura, ou psicose. Neste sentido a psicose é o sobrenatural psicologizado ou a psicologia literalizada, dependendo da perspectiva. Não se trata de “duas dimensões de um mesmo fenômeno” são discursos excludentes que disputam a “definição de situação”. Quando alguém relata que seus pensamentos foram colocados em sua cabeça ou são transmitidos de fora, que seus afetos são feitos ou que sua vontade é controlada por uma entidade exterior, rapidamente são identificados como sintomas passivos da psicose. Ninguém pode “fazer” pensamentos, afetos ou ações, a não ser o próprio sujeito, não reconhecer isso é chegar na fronteira da realidade (e o nome desta borda é loucura).
Os filmes de terror são palcos maravilhosos desta tensão moderna, explicitam os “mecanismos inconscientes” e ao mesmo tempo re-encantam o mundo. O bebê de Rosemary, de Roman Polanski, exemplifica: até o final nos é feita a oferta da causalidade psicológica, com um elemento que faz bagunçar toda a divisão, o tanus, a droga, material e psíquica ao mesmo tempo. Mas no final, despatologizando tudo, descobrimos que era tudo verdade, Rosemary realmente ficou grávida de um demônio. É uma vertigem.
Conclusão
A vizinhança próxima da magia exige que a psicanálise e a psiquiatria construam fronteiras bem demarcadas, e o modo inicial de fazê-las foi recorrendo aos modelos de cientificidade vigentes na época. Este empuxo à diferenciação talvez tenha produzido um alinhamento ao modelo médico mais intenso do que se imaginaria inicialmente. Este empuxo soturno induziu uma técnica mais endurecida e talvez uma maior adesão ao modelo médico ao invés de um modelo literário, Freud reconhecia este conflito em sua obra.[7] Ao vislumbrar a década de 1950, temos a impressão que a psicanálise aparece no pós-guerra como um saber instituído, mais próxima da ética médica e muito inserida na tradição psiquiátrica. Os conceitos de personalidade e estrutura de alguma forma ajudaram e são a expressão clínica e conceitual deste processo de institucionalização que se solidifica através da reificação dos conceitos e da aceitação da psicanálise pela psiquiatria. Esta técnica que gradativamente adere ao modelo instituído talvez tenha feito papéis muito menos subversivos do que no 1900, possivelmente reificando, como um saber instituinte, o senso comum da época.[8]
Nessa hipótese o processo histórico de descrição de si através da referência à uma agência interiorizada e psicológica teve seu processo de formação ao longo do século XIX, culminou no 1900 com as bases estabelecidas do que será o conceito de personalidade ou estrutura, ainda com amplos desenvolvimentos psicopatológicos ao longo do século XX (Jung, Klein, Winnicott, Lacan, Mahler, Green, Bowlby, Bion, Kernberg, Bergeret etc.). Processo que pode estar sendo eclipsado por uma nova transfiguração, denominada pelo nome genérico de “cultura somática”. O que talvez os herdeiros desta tradição psicologizada mais sintam falta no novo paradigma somático é a dimensão literária, na cultura somática narrar vai virar outra coisa. As linguagens parecem muito diferentes e a impressão constante é que muitas coisas ficam de fora da descrição, ou talvez as coisas mais importantes. Assim vamos desenhando todo um novo quadro do mundo apoiados numa percepção de um déficit, seja no plano macro, político-institucional, econômico, em tantas teorizações decadentistas que desde os anos 1980 fazem enorme sucesso, inclusive usando a psiquiatria e a psicanálise como ferramenta analítica. Seja no plano clínico individual, em que a impotência de cuidar acaba sendo projetada como característica do sintoma, como nos casos das novas patologias, que fruto de novas formas de subjetivação, expressam esta cultura somática em sintomas que envolvem o corpo diretamente: transtornos alimentares, auto-mutilação, suicídio, álcool e drogas, fobias e ataques de pânico com sintomas físicos agudos, somatizações, compulsões, umpulsividade e atuações de várias ordens. Não é só que o sofrimento destes novos sujeitos está se manifestando mais e mais através do corpo, é que outro corpo começou a circular no mundo.
Considero importante deixar claro que esta tentativa de mostrar semelhanças e ao mesmo tempo as disputas do campo entre magia e psicanálise/psiquiatria não visa endossar a sua mistura. Surpreendentemente, acabo por concluir, que quem melhor encarna a dimensão mágica da psicanálise ou da psiquiatria é justamente o psicanalista ou o psiquiatra mais convicto de suas próprias premissas, e que tem profundo horror por práticas híbridas, as terapêuticas várias que conjugam dimensões psicológicas e “saberes ancestrais” ou práticas místicas.
Este processo de interiorização produziu o indivíduo em sua modalidade psicológica e junto, através dos ideais de autonomia, liberdade e auto-determinação, uma série de responsabilidades que até então não estavam sob a alçada da interioridade/individualidade. A antropologia já tinha uma tradição sólida nos estudos de parentesco, sobre a variação social da formação de aliança, ou do processo matrimonial. Como se determina a aliança? Há uma prescrição social, típica de sociedades holistas, em que a posição/estatuto se sobrepõe ao indivíduo. O drama das novelas do século XIX é justamente o conflito entre estas determinações coletivas em contraste com a premissa do sentimento, a interioridade como motivo suficiente para a consumação da aliança (curiosamente menos racional…). A novela é a construção social da interioridade e da ideologia da interioridade na medida em que aponta a possibilidade e a legitimidade de fazer aliança tendo o sentimento como fiador. Na medida em que a interioridade não é tomada como explicação agenciativa o processo de formação de parentesco (a dobradiça entre a natureza e a cultura segundo Lévi-Strauss, articulando o sexual e o social no mesmo golpe) não precisa estar referido a um “sentimento individual”. Ao mesmo tempo o casamento e todos os seus dramas ficam sob a responsabilidade do indivíduo que escolhe. Seria a mesma experiência de responsabilização na perspectiva do sujeito no modelo holista? Seriam sobrecargas ao indivíduo?
Outra dimensão que é tomada como individual irrefletidamente, e que, portanto, não supomos que possa ser um excesso para o indivíduo no processo de responsabilização, é o humor. Foi a partir da experiência de estar em uma missa de sétimo dia conduzida muito alegremente, porque era após a quaresma, que me ocorreu essa ideia. Seria possível uma modulação socialmente determinada do humor? Se esta modulação é uma responsabilidade individual, dependente das práticas, relações, hábitos e escolhas de um sujeito, o horizonte das terapêuticas se configura de uma forma. Se o humor é modulado por uma sazonalidade fornecida e determinada socialmente, um outro horizonte de dramas se descortina. Seria excessivo os indivíduos serem responsabilizados pelo seu próprio humor? Curioso que o modelo serotoninérgico da depressão, se levado às últimas consequências, desresponsabiliza completamente o sujeito de seus estados de humor, além de desconsiderar o contexto em que ocorre a variação. O reducionismo biológico e o modelo do diagnóstico operacional como forma legitimada de descrição a partir do DSM-III, acabam endossando essa des-psicologização, remetendo ao corpo, a causa do transtorno.
Estas reflexões partem da leitura de Marcel Mauss, “a noção de eu” e “a expressão obrigatória dos sentimentos” e em ambos nos faz estranhar o familiar. Sempre tive a impressão de que existe uma psicologia não psicologizada embutida na obra de Mauss. Tanto no livro sobre a magia quanto no ensaio sobre a dádiva podemos vislumbrar uma teoria das relações que articula indivíduo e sociedade sem lançar mão de transcendências interiorizadas. Precisamos lê-lo.
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[1] Tanto na teoria da agência de Alfred Gell (2018), quanto na psiquiatria fenomenológica (Minkowski, Blankenburg, Stanghellini) o conceito de senso comum é fundamental para compreender o que seria o contexto dos possíveis e dos impossíveis numa determinada apreensão do mundo. A fragmentação da relação ou a perda do senso comum e “perda do contato vital com a realidade” são marcos fundamentais da experiência da loucura (Esquizofrenia mais especificamente) e ajuda a compreender uma série de manifestações sintomáticas que não são aleatórias, mas estão em relação com este processo.
[2] Quétel detalha o processo da exclusão manicomial na França do século XIX. Apresenta dados sobre o crescente número de internados e a construção de novos hospitais, sua arquitetura e sua geografia de exclusão.
Data | Número de internados | % da população total |
1690 | Cerca de 1.500 | 0,007 |
1789 | Cerca de 5.000 | 0.019 |
1834 | Cerca de 10.000 | 0,033 |
1851 | 21.353 | 0,059 |
1871 | 37.717 | 0,104 |
1883 | 50.418 | 0,13 |
Fonte: Quétel, 42:2014
[3] Lantéri-Laura enumera alguns novos conceitos da psiquiatria no período: Ulrichs cunha o termo “uranismo” para descrever a homossexualidade, a partir de Afrodite Urânia (1869), Westphal usa o conceito de inversão sexual na psiquiatria alemã (1870). Laségue cunha o termo exibicionismo (1877), Kraft-Ebing publica Psicopatia sexualis (1886), popularizando os conceitos de sadismo e masoquismo na psiquiatria, ambos de origem literária. Havelock-Ellis publica uma coleção de casos de perversão sexual (1877), que revisado em 1923 será influente ao longo do século XX. Lantéri-Laura, 30:1994. Sobre a teoria da degenerescência ver SERPA JR, O. D. Mal estar na natureza: um estudo crítico sobre o reducionismo biológico em psiquiatria. Rio De Janeiro: te Corá editora, 1998.
[4] A prática clínica do etnopsiquiatra francês Tobie Nathan é um referencial importante. NATHAN, T.; STENGERS, I. Médecins et Sorciers. Paris: Le Seuil, 2004.
[5] Curiosamente, após enfatizar a dimensão psicológica, a psiquiatria passa a supor que na base do processo psicótico estaria um processo de objetivação da própria interioridade ou pensamento, que Clerambault denominaria “automatismo mental”. É justamente a não aderência a este regime agenciativo que se transforma em critério do páthos, já que se descola do que se tornou ali senso-comum. É como se a psicanálise e a psiquiatria fornecessem um aparador teórico da visão de mundo emergente, reforçando-a. No modelo da biccameral mind, proposto por Jaynes, há um processo inverso, em que faria parte da história natural humana, essa comunicação ou esta objetivçao de aspectos do psíquico como agentes independentes, “vozes”. Czermack, M.; Jesuíno, A. Fenômenos Elementares e automatismo mental. Rio de Janeiro: Tempo freudiano, 2009. Jaynes, J. The origins of consciousness in the breack down of the biccameral mind. New York: mariner, 1990.
[6] Esta argumentação está alinhada com a chamada antropologia simétrica, que tem em Jamais fomos modernos, de Bruno Latour, a inspiração para várias destas análises.
[7] Teorização feita por James Hillman em Ficções que curam. Cita uma entrevista de Freud a Giovanni Papini em 1934. “Todos pensam (…) que sustento o caráter científico de meu trabalho e que meu principal objetivo reside em curar doenças mentais. Trata-se de um erro terrível que prevalece há anos e que não consigo corrigir. Sou cientista por necessidade, não por vocação. Por natureza, sou realmente um artista…E disso há uma prova irrefutável: em todos os países nos quais a psicanálise penetrou, ela é mais bem compreendida e aplicada por escritores e artistas do que por médicos. Meus livros, de fato, se parecem mais com trabalhos da imaginação do que com tratados de patologia…Eu consegui vencer meu destino de forma indireta e realizei meu sonho: permanecer um homem de letras, embora, na aparência, ainda seja um médico.” Freud apud Hillman, 12:2010.
[8] A psicanálise francesa substitui o darwinismo pela linguística estrutural como pilar de cientificidade no século XX. Ainda que possa ser problemática a afirmação de que a teoria estrutural seria uma “teoria da personalidade”, para os fins desta análise a tomamos como uma teoria do agenciamento, e que, recursivamente, os próprios agentes usam para razoabilizar suas ações.