Mudanças nas Artes e sensibilidade na virada para o século XX
Resumo:
Neste trabalho, propomos uma investigação nas vanguardas artísticas européias deste período, tanto a partir de um viés sensível quanto objetivo para entendermos melhor como foram possíveis tantas mudanças num espaço de tempo tão curto e em tantos campos. Questionaremos as consequências de fatos como Revolução Industrial, a revolução burguesa e o Imperialismo sobre o corpo e as sensações. Como os deslocamentos – da vida rural para a urbana e no aumento do número de viajantes – e a experiência com a operação de máquinas (carros, fotografia, cinema) influenciam mudanças radicais na capacidade de observação e na dinâmica temporal da percepção do mundo. Além disso, a vivência da modernidade em 1900 permite que artistas amplifiquem discussões sobre teorias estéticas que tiveram início no século XIX em manifestos publicados em revistas e jornais. O espírito de ruptura surge em produções artísticas diversas, como a música atonal, o Cubismo e a pintura abstrata: as chamadas vanguardas.
I Cubismo e semântica
Falar das artes na virada para o novecentos demanda muita precisão. São tantas incríveis manifestações que poderíamos passar a vida nos debruçando sobre esta época. Para escolher sobre o que abordar especificamente neste evento, consideramos, de início, a expectativa dos cientistas em relacionar a relatividade das leis físicas àquele que é o mais influente dos movimentos artísticos da primeira metade do século: o cubismo.
No entanto, devemos lembrar que todo ismo nasce de uma tentativa de simplificação, de comunicação com o grande público. Com o cubismo não seria diferente. Esta aproximação precisa ser vista com cuidado, pois não podemos usar a arte como ilustração de teorias prontas. O historiador da arte Alberto Tassinari desdobrou belamente esta questão em uma conferência proferida em 1o de setembro de 2005 no Seminário Einstein para Além de seu Tempo, organizado pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST)[1]. Tassinari enfatiza o dado do tempo, e que arte tem suas próprias teorias, produzidas não só nos discursos, mas nas obras mesmas. Não custa lembrar que a arte, como manifestação moderna, funda seu próprio campo de questões e de crítica, ainda que em comunhão com os demais aspectos da existência. A autonomização dos campos de conhecimento –algo de extrema importância para a arte, que sempre teve que servir a variadas funções – é, portanto, um fenômeno desta época, cujas consequências positivas e negativas estão sendo postas em questão atualmente: a própria permeabilidade dos saberes.
No caso, os escritos sobre o cubismo começam com Albert Gleizes e Jean Metzinger escrevendo um livro – Du Cubisme – por ocasião do Salão de Outono de 1910, quando eles assumiram a alcunha de cubistas para se diferenciarem dos impressionistas e fauvistas. Assim, decidem enfatizar a novidade da perspectiva móvel, tendo em mente Poincaré e o sentido de tempo bergsoniano.
Contudo, o procedimento Cubista não consiste apenas em representar o mundo através de formas geométricas, apesar de Cézanne ter escrito algo semelhante, e esta fala ser bastante citada de maneira descontextualizada. Ainda assim, o Cubismo deve muito à sua obra, tanto pelo uso de temas, procedimentos e materiais cotidianos (a natureza morta e os banhistas; a observação direta) e pela intuição da simultaneidade ao observar a potência imanente da natureza. E, por natureza, teriam valores equivalentes, ao pertencerem a uma mesma unidade, sua esposa e a xícara de café; uma maçã e uma montanha.
Vamos apontar agora aquelas que seriam as consequências mais radicais do cubismo ao longo do século XX. A explicitação da convencionalidade do signo: a construção de valores em função dos sistemas e estruturas semânticas em que os elementos estão inseridos, aproximam o cubismo de Picasso e Braque mais das discussões da linguística, da Gestalt e de noções de tempo discutidas por filósofos, cineastas, escritores. Acabando por abalar um universo de questões subjetivas, culturais, ou seja, rechaçando ideias newtonianas de espaço e tempo absolutos dentro, contudo, da própria experiência cotidiana (newtoniana), e não em situações elaboradas na questões propostas pela física de Einstein. Mesmo numa obra de ficção científica, que simula condições não-newtonianas, o que está em jogo são como aquelas experiências funcionam metaforicamente em nosso modo de vida, exercitado na linguagem.
Como bem argumenta Giulio Carlo Argan[2] sobre os objetos dos quadros de Picasso e Braque: “[…] São tipos formais, módulos; prestam-se a indicar que os objetos da realidade são como as letras alfabéticas, signos que, em si, nada significam, mas que são combinados de várias maneiras para significar alguma coisa (no caso dos objetos, o espaço).”
II O Cubismo e as Vanguardas Históricas
Vimos, no cubismo analítico surgido no diálogo entre Picasso e Braque, algo além do questionamento do esquema frontal renascentista em favor da percepção corporal, orgânica, do espaço. Com o cubismo sintético (a partir de 1913) e o método da colagem, os procedimentos de construção da Forma pictórica revelam-se livres, plenamente autorais. O potencial analítico da estrutura pictórica foi compreendida como uma transformação radical sobre o próprio fazer artístico, provocando novos procedimentos e operando com a importância simbólica de um ideal revolucionário, de inventividade: a liberação final das normas acadêmicas associadas à crise da cultura europeia. Numa época de grandes transformações políticas, o que os artistas faziam e defendiam por escrito em seus manifestos visava ir além do meio da arte: serem modelos para a sociedade.
Para pensarmos mais profundamente as mudanças na sensibilidade nos europeus, é importante mencionarmos a influência da Estética e da Teoria da Arte para essa tomada de consciência dos artistas. Outro ponto importante a se destacar é o historicismo romântico (a consciência da História) difundido na literatura e até mesmo no ecletismo arquitetônico que fariam o século dezenove findar profundamente antropocêntrico.
Portanto, assumimos aqui que a consequência mais radical do Cubismo não está no grande número de pintores que seguiram essa rubrica como um estilo, mas a inspiração para todos os demais movimentos de vanguarda, que assumiram outras formas propositivas, como o De Stijl e o Suprematismo, acrescidos de um engajamento com ideias utópicas e revolucionárias de sociedade.
Sabemos que a atitude dos artistas já vinha sendo trabalhar em grupos e publicar suas propostas em formas de manifestos em revistas e jornais, e recentemente vem ocorrendo uma revisão da leitura norte americana do pós guerra e, em especial, do primeiro diretor do MoMA de Nova York (Alfred Barr) e do grande critico Clement Greenberg, que enfatizaram a autonomia de suas linguagens sob o conceito de “abstração” e relativizaram as associações políticas desses movimentos em nome de uma apreciação mais formal e causalista das vanguardas, baseada numa grande lógica progressista (dita “Hegeliana”), encadeando uma causalidade que culminaria na grande pintura norte americana do pós guerra. Ou seja, o Cubismo de Picasso e Braque (ou melhor, o diálogo estabelecido entre eles a partir de 1906), ao contrário do que é largamente difundido nos meios de comunicação, não se reduz à leitura meramente formal de uma representação do mundo através de formas geométricas e arestas vivas. Nem mesmo à ideia da multivisão de perspectivas, como se desdobrássemos temporalmente as visadas de uma escultura. Pinturas e esculturas do futurista italiano Umberto Boccioni se aproximam mais desta ideia de cinetismo e desdobramento temporal aprendidos com a fotografia sequencial e o cinema, bem como a pintura de Marcel Duchamp “Nu descendo uma escada” feita sobre uma fotografia tirada com luz estroboscópica.
É importante ressaltar que já existem representantes latino americanos, como o artista Abraham Palatnik, dentre os artistas que direcionaram essas ideias de autonomia e abstração (até então, uma influência das grandes aventuras do ritmo explorados na música de câmara) à investigação do cinetismo no cinema e com máquinas sem o constrangimento do uso de novas tecnologias. Um exemplo é a obra “Modulador de Luz e Espaço” (1930), do húngaro Lásló Moholy-Nagy. Nesta que é uma das primeiras esculturas cinéticas, há interesse pela luz percebida sob uma nova sensibilidade, tecnológica.
Essa abordagem mecânica do fenômeno da radiação luminosa já havia aparecido em pintores pós impressionistas como Georges Seurat. No início do século, no Orfismo de Sonia e Robert Delaunay usa-se a inspiração da luz percebida nos objetos para produzir, ao invés de imagens, telas que promovem uma experiência luminosa direta. Só que agora, com a influência da idéia de dinamismo futurista, a forma se fragmenta ainda mais. Nestas pinturas, já não faz mais sentido o uso da geometria até que então eles chegam ao ponto de se dedicarem exclusivamente aos discos cósmicos palpitantes: puras formas dinâmicas que eles nomearam “ritmos”.
Tantas transformações ocorridas nas artes européias desde meados do século XIX podem ser vistas como reações ao artificialismo acadêmico que notoriamente estava fazendo diminuir a “fagulha criativa” dos artistas europeus. Especialmente do Norte da Europa, vemos em diversos artistas visuais (Klee, Kandinsky e os “Expressionistas” em geral), a aproximação da idéia de ritmo visual e de “composição abstrata” com a música de vanguarda, especialmente a obra de Schönberg e Stravinsky divulgadas nas experimentações do Ballet Russes.
III Crise da Cultura Europeia, Alteridades e Novas Didáticas os países do Norte e Leste da Europa
É fundamental reconhecermos que, desde o século XVI, ao entrarem em contato com a produção material – as artes ditas menores – do mundo todo, os europeus vinham tomando conhecimento de outros modelos de sociedade, contribuindo para a elaboração de perspectivas utópicas e revolucionárias. Não podemos esquecer que a Revolução Russa – que amplificou o caráter internacionalista/universal dos ideais da Revolução Francesa e das independências das colônias americanas – teve grande contribuição dos artistas, ao menos em seus primeiros anos.
O cubismo torna-se referência de liberdade formal, não apenas pela evidenciação de seus procedimentos e pela leitura funcionalista da estrutura plástica, mas também por ter apontado essa liberdade de criação na arte da talha africana. Inspiraram Picasso as máscaras africanas e polinésias do museu do homem, e a peça “ritualística” Ubu Rei, de Alfred Jarry. Ou seja, desde meados do século XIX, os artistas tinham buscado referenciais plásticos não europeus, não clássicos: Gaugin, ao viajar para o Taiti; gravuras japonesas e a cor em Van Gogh (a Japonaiserie); a arte Naïf para Rousseau; a investigação de usuários do sistema de saúde mental por Géricault.
Logo, outro referencial plástico nessas alternativas de vanguarda são as ditas “artes aplicadas” do mundo inteiro e de várias épocas. Tal influência, evidentes nas obras dos Fauvistas e Expressionistas, foram pesquisadas e reunidas no Almanaque de 1912 do grupo Blaue Reiter (Cavaleiro Azul) de Munique: uma compilação de obras de várias partes do mundo e de arte popular e Naïf europeias, acompanhada de textos teóricos que desdobram a proposta anterior de prioridade dada à expressão (versus valor iconográfico classicista) já defendido por Fauvistas e Expressionistas.
Isso nos leva a uma reavaliação das consequências da Revolução Industrial e do imperialismo europeu e a exposição dos artistas do ocidente a novas formas e ideias do mundo inteiro. Especialmente as máscaras e esculturas africanas e a arte gráfica japonesa foram compreendidas para além do exotismo das formas já explorado na decoração Art Nouveau e na moda e colecionado em museus etnográficos. A estrutura espacial e as cores das gravuras de Hiroshige literalmente iniciaram os ocidentais na aventura da arte gráfica, onde os meios expressivos têm valor próprio, não apenas corroboram uma estrutura ilusionista.
Nos países de tradição nórdica, essa aquisição de consciência dos procedimentos artísticos levou os artistas a valorizarem a sua própria tradição de arte gráfica, reavaliando, por exemplo, a obra de Dürer como uma alternativa interna ao Renascimento. Um exemplo espantoso foi a escolha de uma xilogravura de Lionel Feininger para ser usada como cartaz do manifesto de convocação de estudantes para a recém inaugurada Bauhaus (1919). A catedral tem algo de cubista, mas refletindo-se melhor sobre a escolha desta obra no conteúdo do manifesto: a identificação popular das guildas medievais na Alemanha, não apenas pela apreciação regional da técnica, bem como da imagem da resplendorosa catedral, remetendo-se à época idílica em que toda a comunidade se mobilizava em torno de uma expressão comunal e anônima.
À medida que os artistas passam a se interessar por obras antes consideradas decorativas e a estudar atentamente inúmeras outras formas plásticas “não clássicas”, a produção do mundo inteiro torna-se significante. Esse engajamento dos artistas na contribuição por uma nova sociedade conduziu o debate para a escola de artes. Lembremos que, com o surgimento da fotografia, a pintura havia se liberado de uma função estritamente naturalista. Neste momento, a manifestação contra a imposição de formas clássicas e a ideologia Estética do “Belo Universal” aparece não só nas obras e manifestos dos artistas, como estes se propuseram a contribuir diretamente com a elaboração de formas reprodutíveis pelas máquinas. Um dos objetivos da Bauhaus foi criar um padrão (standard) que beneficiasse todos os cidadãos de forma democrática e igualitária.
No século XIX, já haviam ocorrido experiências laboratoriais de ensino e trânsito criativo entre artes aplicadas e belas artes na Grã Bretanha e Alemanha, como movimento Arts and Crafts. Mas no início do século XX, muitos artistas não só praticam uma criação pessoal de cunho expressivo, como manifestam essas ideias em livros e práticas didáticas (como o influente “Do Espiritual na Arte”, de 1910). Na Bauhaus e na Vkhutemas, a crítica aos procedimentos acadêmicos ocorre especialmente no primeiro ano de ensino, o chamado “curso preparatório”, onde a expressão artística é abordada de maneira direta, as formas sendo consequência da manipulação dos materiais, e não uma projeção neoplatônica de iconografias religiosas ou neoclássicas.
III E o 1900 no Brasil?
Neste trabalho, procuramos apresentar a consolidação da ideia de arte como pesquisa autônoma, quando o sistema das artes burguês se estabelece com a proliferação de museus e do comércio das artes adequados ao novo estilo de vida nas cidades em oposição ao modelo de arte subvencionada pelo Estado; o aparecimento dos meios de reprodução mecânica e a mudança do estatuto representacional das artes na Europa.
No nosso país, inúmeras foram as manifestações de engajamento às mudanças do mundo. A literatura, a música, e as artes plásticas já vinham elaborando mitos nacionalistas e provocando o debate sobre a ideia de identidade nacional em função de mudanças políticas importantes: a transposição da sede do império português em 1808 (que suplantou o referencial barroco pelo modelo iconográfico de estado absolutista Francês); o processo de Independência; a construção de ideia Romântica de Estado-Nação como justificativa para participação na Guerra do Paraguai; e a tentativa de manutenção do vasto território após a Instauração da República.
Nas primeiras décadas do século XX, os artistas sentiam o espírito das vanguardas europeias de maneira geral, resumidas num espírito crítico, irônico e destrutivo tendendo ao dadaísmo, nomeadas como “futurismos”. Na semana de 1922, Villa Lobos, por exemplo, conjuga a pesquisa de ritmos brasileiros de grande apelo popular, com o espírito de inventividade formal de primeira grandeza. Ou seja, por aqui, a crítica ao artificialismo das regras se manifestava em escândalos jornalísticos, nas artes gráficas das charges e publicidades, das novas formas de se vestir, à liberação dos costumes, sob influência midiática do cinema e das revistas. Uma transformação mais específica do início do século e que só fez crescer exponencialmente foi a passagem para o modo de vida urbano e suas consequências nos ambientes domésticos e do trabalho. À medida em que o estilo liberal burguês que havia transformado a Paris no século XIX vai se impondo, à princípio, nas capitais, a reavaliação das paisagens por onde transitamos e o dinamismo com que levamos nossas vidas, vão também surgindo artistas que questionam a adoção irrefletida a essas mudanças.
As últimas imigrações, por exemplo, a italiana, estabeleceram outro patamar aos debates já existentes e com a disposição pessoal de grupos de artistas locais com ideais diversos, como o pensamento anarquista no teatro de Oswald de Andrade – que a nossa sociedade só será capaz de absorver décadas depois nas remontagens do teatro Oficina. A arquitetura vinha se mostrando um campo cosmopolita, sendo a obra do grande urbanista Lucio Costa apenas um exemplo de como a construção desenvolveu seu potencial artístico e teórico no Brasil.
Para finalizar esta apresentação, farei uma projeção de valor dado atualmente à arte da performance, apresentamos a irreverente obra do engenheiro Flávio de Carvalho. Autor de uma arquitetura profundamente inventiva e expressiva, ele atua nos mais diversos campos. Promove o espaço de discussão e apresentação de vanguarda em São Paulo, o “Clube dos Artistas Modernos” e os “Salões de Maio”; monta o Teatro da Experiência e a peça “O Bailado do Deus Morto”; em especial, realiza a performance “Experiência no. 2”, quando caminha em sentido contrário a uma procissão de Corpus Christi, usando um traje masculino “tropical” composto por camisa e saia de pregas chamado “New Look”. Por sua inovadora consciência do valor experimental do trabalho artístico e o potencial da performance como ação plástica já na década de 1930, Flávio de Carvalho merece nossos aplausos. Salve sua contribuição a uma idéia de arte imaterial, não comercializável! Esta permanece significativa até os dias de hoje por apontar um sentido de ação pública, capaz de fazer frente ao estatuto de arte liberal/burguês: apenas uma de muitos obras que assumiram o espírito cosmopolita, corajoso e original das vanguardas.
[1] Cujo conteúdo foi publicado na revista Novos Estudos CEBRAP NO. 75 DE JULHO DE 2006 (http://www.scielo.br/pdf/nec/n75/a11n75.pdf ).
[2] ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1992. P. 430.