Modos de Observar a Natureza
Em 1962 aconteceu na Alemanha um seminário entre literatos que veio a ser conhecido pelo nome “Poética e Hermenêutica” do qual o filósofo Hans Blumenberg era um dos coordenadores. A ideia principal consistia em criar um espaço de análise interdisciplinar e de reflexão fundamental para o estudo da literatura. Um tal tipo de encontro aconteceu em vários outros lugares, com diferentes atores sobre diferentes aspectos do saber, com uma mesma diretriz: colocar junto atores de diversas áreas do saber e do fazer que foram por diversas razões entendidas como distintas, sem conexão e sem interface. CosmoseContexto tem realizado diversas reuniões onde cientistas – principalmente físicos e cosmólogos – se encontram com filósofos, antropólogos, psicólogos, artistas. A referência àquela reunião de 1962 se dá ao verificarmos que naquela reunião, Blumenberg e seus companheiros dialogam sobre o conceito de realidade na obra de arte. Aqui, nesse nosso Simpósio, estaremos examinando diferentes modos de entender a realidade sob diferentes olhares.
1.
Um cientista—astrônomo ou cosmólogo – ao tentar compreender racionalmente as observações supraterrestres, começa por estender o bem sucedido método cientifico ao universo. Nessa tentativa, ele se depara de imediato com um problema: temos condição de observar o universo em sua totalidade? Essa totalidade de objetos nos céus (estrelas, galáxias, aglomerado de galáxias…) não estão ao nosso alcance experimental. Ou seja, não podemos usar o método convencional da atividade cientifica associada à realização de experimentos. A Cosmologia se organiza a partir de observações de processos dos quais não temos nenhum controle, nem interferência.
Essa particularidade, levou alguns cientistas a considerar a ação da cosmologia como sendo bastante limitada, inibindo seu papel como uma atividade típica de uma investigação cientifica, uma ação convencional no interior da ciência.
Graças a uma combinação complexa entre teoria e observação começou-se nas últimas décadas do século 20 a sustentação da ideia segundo a qual o universo é um sistema dinâmico, possuindo uma geometria que não é estática. Consequentemente, foi possível atribuir uma dependência temporal a seu volume espacial total.
A partir dessa certeza instalou-se a questão: essa dinâmica cósmica afetaria a extrapolação das leis físicas obtidas por experimentos realizados na Terra?
Como a responsável pela dinâmica de evolução do universo é a gravitação, é razoável entender que essa variação poderia depender do modo pelo qual uma dada forma de matéria/energia interage com a gravitação.
É bem verdade que essa não é a única possibilidade. Por exemplo, na década dos anos 30 especulou-se na possível dependência temporal da constante de interação gravitacional, a chamada constante de Newton. No entanto, essa proposta, por coerência com a teoria da relatividade especial, resultou numa nova teoria da gravitação. Ou seja, nada mais seria do que interferência gravitacional no processo de dependência da interação.
Um outro modo de gerar dependência se instituiu nos processos nucleares associados à interação fraca (ou de Fermi). Aqui, essa dependência é um pouco mais sutil e concerne a característica principal dessa interação de violação da paridade. Nesse caso, essa violação dependeria do tempo cósmico, fazendo novamente interferir o processo dinâmico do universo, controlado pela gravitação.
Vários outros exemplos apontam na direção de que é a gravitação a responsável por essa eventual variação das leis físicas.
Embora essa dependência não tenha consequências nas leis físicas na Terra, algumas de suas propriedades estariam dependentes daquele processo evolucional.
Mais ainda, algumas questões incompreendidas ao usarmos leis físicas terrestres, passam a ser entendidas a partir dessa dependência. Um exemplo notável foi obtido pelo cientista russo Andrey Sakharov, ao sugerir que o desequilíbrio entre a quantidade de matéria e antimatéria existente no universo está associado à interação gravitacional.
Outra propriedade notável foi encontrada pelo matemático Kurt Gödel ao mostrar que na teoria da relatividade geral, a questão da causalidade local não se identifica com a causalidade global.
2.
Ao olhar os céus e catalogar centenas de bilhões de galáxias, os cientistas foram levados a sugerir uma relação intima entre nós e a dinâmica do cosmos. Isso pode ser entendido ao considerarmos que um universo totalmente homogêneo, sem nenhuma distinção entre suas partes não permitiria a existência de estrelas estáveis e planetas a seu redor que possibilitariam a eclosão da vida.
Essa homogeneidade é a característica fundamental do modelo cosmológico padrão que o cientista russo Alexander Friedmann descobriu nas primeiras décadas do século 20. Mais tarde, mostrou-se que pequenas perturbações poderiam ocorrer nesse cenário e evoluir de tal modo a gerar configurações estáveis que deram origem a estrelas, galáxias e enfim, planetas.
3.
Do que estamos analisando, podemos inferir que se está estruturando um modo de conciliar questões locais e questões globais, sem que haja uma dependência absoluta de uma sobre outra. Naturalmente, levados por um pragmatismo convencional, os cientistas estão se aproximando da visão construída pelo matemático francês Albert Lautmann.
Segundo ele, há uma solidariedade entre as partes dessa totalidade que chamamos universo, de tal modo a permitir que uma configuração estável possa existir por um tempo suficientemente longo, capaz de produzir as condições necessárias para que estejamos aqui. Os cientistas com tendências mais positivistas, costumam chamar essa característica que Lautmann chama de solidariedade, pelo termo mais impessoal de “coerência”.
Em verdade, é o mesmo modo de tratar os fenômenos físicos atribuindo “propriedades” aos corpos. Por exemplo, uma partícula carregada é capaz de ser influenciada por um campo elétrico porque essa partícula possui uma propriedade especial, chamada “carga elétrica”.
Esse termo não aprofunda nosso conhecimento do fenômeno, mas permite distinguir as partículas que possuem essa propriedade daquelas que não a possuem. Procurar entender porque existe essa dualidade possível sai do escopo usual dos físicos, embora algumas tentativas tenham sido examinadas. No entanto, ao considerarmos essa “propriedade” sob o aspecto cosmológico, várias alternativas de compreensão aparecem, todas elas fazendo apelo à metacosmologia, isto é, à possibilidade de examinar diferentes configurações do universo.
4.
Uma questão semântica: Natureza é o Universo?
Este universo?
Ou todos os compossíveis, estudados na metacosmologia?
Vamos esclarecer: metacosmologia não é uma prática cientifica fora dos padrões convencionais. Ela usa as mesmas práticas convencionais da ciência. O que a distingue da cosmologia e da física é sua proposta de examinar questões que sempre foram consideradas fora do escopo da ciência.
Por exemplo, para o físico de partículas elementares, a massa da partícula nêutron – um componente dos átomos — é um “dado da natureza”; que não requer uma explicação ulterior de seu especifico valor. A metacosmologia vai um passo além e pergunta o que aconteceria em um universo onde esse valor fosse outro. Seria ele mais ou menos estável? Haveria condições de constituir átomos como os que conhecemos? Qual o espectro de variação que seria permitido sem que uma estrutura desse universo apresentasse características bastante diferentes?
Essa é uma questão típica da metacosmologia, que relativiza as propriedades desse universo, introduzindo cenários onde os participantes desse nosso mundo adquiririam características distintas das que conhecemos. Isso pode se dar em um cenário de ciclos – como sugeria Richard Tolmann—onde a estabilidade de cada ciclo dependeria dessas propriedades especificas dos corpos, das substâncias presentes.
5.
Vamos, provisoriamente, considerar natureza esse único universo a que chamamos ”nosso mundo”.
Tradicionalmente, não se considera influência do universo (em sua totalidade) sobre os processos físicos que observamos em nosso cotidiano. Podemos tratar esses processos como locais, que não dependem das propriedades globais do cosmos. São fenômenos que podem ser explicados por considerações estritamente locais.
Na outra direção, desde sempre os cientistas consideraram que o que acontece na Terra é um bom exemplo para entender o que acontece no cosmos. Mais até: tradicionalmente se organizou o cosmos a partir de observações locais, na Terra e em sua vizinhança. Essa atitude, que comentamos acima, levou à afirmação “do local para o global”.
Ao considerarmos o processo dual desse, isto é, imaginar que as características locais dependem das condições globais, devemos perguntar: como se estrutura isso que chamamos “propriedades globais”, ou dito de outro modo, qual é a característica global do universo?
A organização da ciência que responderia a essa questão se estrutura em torno da parte da matemática chamada topologia. Infelizmente, contrariamente à geometria do mundo que encontrou sua descrição, origem e propriedades a partir da interação gravitacional (na teoria da relatividade geral), não temos hoje nenhuma forma de associar as origens da topologia a processos descritos na física em seu estado atual.
6.
Um universo dinâmico provoca questões pouco usuais. Por exemplo, ao ultrapassar o modelo simplista “big bang” que se criou a partir da solução encontrada por Friedmann às equações da relatividade geral, se produziu a descrição do fenômeno de “bouncing” no qual, antecedendo a atual fase de expansão do volume espacial do universo, teria havido uma fase de colapso gravitacional onde o volume diminuiria com o passar do tempo, teria atingido um valor mínimo (diferente de zero) e iniciado a atual fase expansionista.
Esse processo permite atualizar a proposta simplista de Tolmann que, na década de 1930, propôs a existência de ciclos (de expansão e colapso) do universo.
Nesse cenário, uma vez mais se coloca a questão: o que é “natureza”? Essa totalidade de ciclos ou somente esse particular que vivemos?
Contra o argumento segundo o qual não existe evidência observacional da existência desses ciclos, poderia se argumentar que a ciência em alguns momentos se antecipa à observação. No caso em questão se coloca a pergunta: se a TRG descreve corretamente a gravitação não se deve levar adiante, sem limite, suas previsões?
A resposta seria sim, desde que tenhamos a possibilidade de – pelo menos em princípio – poder descrever esses acontecimentos (ainda não observados) na esperança de que consigamos produzir um método eficiente e factível de realização dessas observações.
No caso da singularidade cósmica do modelo de Friedmann, o próprio Einstein apoiava a ideia de modificação de suas equações. No entanto, isso resultou não ser indispensável, pois processos que inibem a singularidade podem estar associados a mecanismos de interação matéria-gravitação.
É importante notar que essa sequência cíclica do universo –que constitui uma só estrutura – está sendo representada por um tempo cósmico único, um sistema de coordenadas gaussiano que faz parte das hipóteses de Einstein-Friedmann para descrever a geometria do mundo.
Ademais, diferentes perturbações locais permitiriam quebrar a homogeneidade espacial admitida nos modelos do tipo Friedmann. Se essas perturbações se alterassem de um ciclo para outro, poderia correr a situação na qual nessa sequência, o caráter homogêneo se perderia. No entanto, como esse processo possui uma sequência anterior ao nosso universo, deveria haver um processo que inibisse altas doses de inomogeneidade aparecer. Não conhecemos o mecanismo que faria esse amortecimento.
7.
Por fim, uma vez mais voltamos à questão, o que é isso que chamamos natureza? Diferentes atores produzem diferentes definições. Aqui, estamos pondo em evidência a dificuldade em aceitar a definição simplista de que natureza se identifica com o universo. Ao considerarmos os possíveis ciclos do universo que a cosmologia está expondo, somos levados questionar se natureza é somente essa fase de universo em expansão que observamos. Ou devemos ampliar o conceito de natureza para poder trabalhar e compreender esses infinitos ciclos?
8.
Vamos abandonar aqui esse cosmólogo e deixar falar o poeta.
Quando à noite, isolado em uma pequena cidade rural –afastados do cotidiano confuso e barulhento da cidade lá longe –o céu nos traz uma visão maravilhosa, refletimos sobre como interpretar essa totalidade de centenas de bilhões de pequeníssimas-gigantescas estrelas, pensamos no universo em que vivemos (e naqueles outros que não temos acesso) e olhamos nossa companheira ao lado mergulhada em seus-nossos sonhos, esquecemos as questões que nos fazem sobre esse cosmos inacabado, volátil e imenso.
A alma do cosmólogo se revela ingênua demais para responder, e até mesmo para compreender tudo isso. Ela se rebela e impõem outro modo de observar a natureza. Não questiona sua definição, não reflete sobre aparências fluidas e volúveis, não indaga ao outro o que ele vê e conhece. Nesse momento, ele e o cosmos se interrogam e refletem um sobre o outro. Se aproximam, se fundem. Quem é que observa ou é observado?
O cosmólogo se deixa invadir por um sentimento proibido. O establishement já foi deixado de lado. Não tem mais o direito de se interpor entre ele e o cosmos. Está-se livre para pensar.
Lentamente, como quem não quer despertar temor, medo ou inveja, ele se prepara a ir além, procurando se alçar, pois a universalidade da gravitação não o atinge, não o retém.
Nesse momento, que só acontece no abandono da cidade, além da sociedade organizada, na ausência do outro, ele se estrutura de um modo novo, diferente, impessoal.
Ao invés de observar a natureza, o cosmólogo, reivindicando sua alma infantil, decide que não pode mais participar dessa rotina local-global, que os físicos construíram, e se deixa encantar por Lautmann e sua coerência matemática, pois escolheu se identificar com a natureza e se dissolver no cosmos.
A solidariedade cósmica, descrita pelo matemático, foi assim, totalmente introjetada.