Mitos Cosmogônicos IV – O nascimento do mundo segundo o Islã*
ARTIGO /
Dando continuidade à publicação de mitos tradicionais de criação do Universo, exibimos neste número trechos da apresentação de Toufy Fahd** também proferida no encontro ocorrido em 1959, na França, onde se juntaram antropólogos, arqueólogos e historiadores.
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O CRIADOR
Em todas as suas partes, o Corão se apresenta a nós como um hino ao criador. São raras as suratas que não mencionam, sob uma forma ou outra, a transcendência do ato criador. Criar é uma prerrogativa essencial e distintiva de Alá. “Eh o quê! Exclama o Profeta, Aquele que cria é igual àqueles que não criam?” (16, 17). Nenhuma participação diminui a originalidade deste gesto divino. A tradição muçulmanacoloca a criação dos anjos no penúltimo dia da criação, sem especificar mais. Este recuo é inspirado na tradição judaica onde é dito que os anjos foram criados após o primeiro dia da criação, para que não viesse à mente de ninguém que, no momento da extensão do céu, Gabriel (Jibrâ’îl), ao Norte, e Miguel (Mikhâ’il), ao Sul, tenham ajudado o Criador. Somente Deus desdobrou os céus e firmou a terra (1s. 44, 24). O Profeta serve-se desta prerrogativa como uma arma de dois gumes na sua polêmica contra os idólatras: “Eles tomaram, fora Dele, divindades que não criam nada, e que são elas mesmas criadas.” (25, 3; 27, 60; etc.).
A onipotência de Alá é muito exaltada acerca de sua obra criadora. Ele é o mestre da vida. Ele a dá, a destrói e a dá novamente, no fim dos tempos (10, 4, 34; 27, 64; 30, II, 27). A harmonia universal decorre de sua Sabedoria eterna. O céu é uma obra de arquitetura (2, 22), harmoniosamente fabricada em sete andares (2, 29). O homem também é uma obra de arte (40, 64; etc.). A sucessão constante e regular das trevas e da luz (6, 1; 35, 13), a fixação das fases da lua, para tornar possível aos homens o cálculo dos anos e das datas (10, 5; 36, 39-40), o ornamento do firmamento pelos astros (37, 6; 41, 12; 66, 5), a predestinação das idades da vida, da concepção à infância, à adolescência e à velhice (22, 5; 40, 67), a existência dos casais (36, 36; 51-49) nos reinos vegetal (13, 3; 22, 5; 31, 3) e animal (6, 144), como no gênero humano (30, 21; 35, 11; etc.), as variedades, no reino animal, entre os répteis, os bípedes e os quadrúpedes (24-45), a repartição dos alimentos (41, 10; 6, 141s.), todos estes feitos e muitos outros revelam a preocupação com a ordem e com o equilíbrio na criação. “Eh o quê! Eles não consideram como o camelo foi criado, o céu foi elevado, as montanhas foram erguidas e a terra foi estendida?” (88, 17-20).
Estamos em plena ideologia semítica, onde a obra do Criador é essencialmente feita de ordem universal e de harmonia cósmica. Alá, é dito na surata 25, “criou todas as coisas e fixou nelas o destino (v. 2)… Não vês tu como teu Senhor fez movente a sombra? Se Ele quisera, a teria feito estável. Nós fizemos ademais do sol um guia desta sombra que trazemos para Nós progressivamente. Foi Ele que fez, para Vós, da noite um manto, do sono um repouso, e do dia uma ressurreição. Foi Ele que desacorrentou os ventos como mensageiros de Sua misericórdia. Nós fazemos descer do céu uma água pura para fazer reviver a partir dela um solo morto e dar de beber à multidão dos rebanhos e dos humanos que Nós criamos (45-49)… Foi Ele que fez confluir os dois mares; a água de um é muito doce e a do outro muito salgada; entre os dois, Ele colocou uma barreira e um sólido obstáculo. Foi Ele que, da água, criou um mortal de onde extraiu uma descendência dos dois sexos. Teu Senhor é todo-poderoso (53-54)… É Ele o Benfeitor que criou, em seis dias, o céu, a terra e tudo que há entre eles, e sentou-se sobre o Trono. Bendito seja Aquele que pôs no céu as constelações e colocou nele uma luminária e uma lua brilhante! Foi Ele também que estabeleceu a oposição do dia e da noite para quem quiser lembrar dela e estar agradecido” (59-61).
Essas considerações, feitas a partir de constatações empíricas e de ideias cosmogônicas extraídas do velho fundo semítico, voltam frequentemente no Corão e não cessam de realçar a onipotência do Criador que fez com diligência todas essas maravilhas.
A obra criadora não foi uma distração para Deus: “Nós não criamos o céu, a terra e aquilo que está entre eles, brincando” (21, 16). Entretanto, apesar da seriedade do ato criador e de suas gigantescas dimensões, Deus não experimentou nenhum cansaço.
Uma imagem, diversas vezes repetida no Corão, representa Deus tornando a subir em seu Trono, após ter concluído a criação dos céus e da terra (9, 7; 13, 2; 32, 4; 57, 4; etc.). A mesma imagem serve para denotar a passagem de Alá da primeira fase de sua obra, a criação da terra e daquilo que ela contém, à segunda fase, a dos céus (2, 29).
Este Criador, onipotente ordenador da matéria e do cosmos, ilumina, do alto de seu Trono, toda sua criação: “Alá é a luz dos céus e da terra” (24, 35a). Uma parábola vem ilustrar esta imagem: “Sua luz é similar a um nicho contendo uma lâmpada; a lâmpada está em um [globo de] vidro, o qual se parece a um astro cintilante. O óleo que nele queima – um óleo [tão puro que] iluminaria sem estar aceso – provém de uma árvore bendita, uma oliveira que não é nem oriental nem ocidental.”
A luz divina, espalhada no universo celeste e terrestre, faz saltar aos olhos do homem o milagre da ubiquidade do Criador, “cujo Trono se estende sobre os céus e a terra, que Ele conserva sem curvar-se” (2, 255). Ele é “o Senhor do Oriente e do Ocidente e daquilo que existe entre os dois” (26-28). “A Ele pertence aquilo que está nos céus, sobre a terra, entre eles e sob o solo” (20, 6). Sua Providência envolve as criaturas e todas obedecem às suas ordens, dos anjos carregadores de seu Trono (40, 7), ao céu que Elevirará, no fim dos tempos, como as páginas de um livro (21, 104; comp. 39, 67), à noite e ao dia, ao sol e à lua que, cada qual em sua órbita, cumprem o desenho do Criador (21, 33). Alá “é o criador de todas as coisas e de todas as coisas Ele é garante” (39, 62).
Este universo criado, ricamente dotado das maravilhas as mais surpreendentes e as mais variadas, revela a onipotência, a Providência e as intenções do Criador.
A CRIAÇÃO
“Diz: vós sereis realmente infiéis perante Aquele que criou a terra em dois dias? Vós O dareis, iguais, a Ele, o Senhor dos mundos? Ele colocou nela [montanhas] imóveis. Ele a benzeu. Ele repartiu nela alimentos, para aqueles que [os Lhe] pedirão, [tudo isso] somente no espaço de quatro dias. E Ele se voltou para o céu que estava em vapor. Ele lhe diz, assim como à terra: “Venham de bom grado ou à força!” E o céu e a terra respondem: “Nós viemos obedientes.” Então, Ele os (!) realizou os sete céus em dois dias e revelou o destino de cada um. E Nós ornamos, de luminárias, o céu inferior; proteção também” (41, 9-12).
Este trecho, cujos termos se encontram essencialmente nas partes polêmicas da predicação corânica visando os idólatras, pede um importante esclarecimento. De fato, a obra do Criador teria saído do nada, ou seria um ordenamento, um arranjo, por mais transcendente que seja, a partir de elementos preexistentes?
Tendo em vista a evolução do sentido das palavras e das expressões empregadas no Corão para tornar o conceito de criação, sob suas diversas formas, tornou-se, pelo menos, desconfortável responder claramente a esta pergunta. Tem-se realmente a impressão, lendo o texto corânico, que a ideia de uma criação ex nihilo é em todo lugar latente; mas os versículos mais aptos em apoiá-la não podem ser interpretados de uma maneira tão absoluta. De fato, o versículo 117 da surata 2 (“Quando Ele decide uma coisa, Ele lhe diz apenas: seja! e ela é!”), que é a expressão mais adequada ao conceito da criação a partir do nada, não se aplica particularmente à obra criadora. Da mesma forma, os atributos do versículo 24 da surata 59: “Deus é o Criador (al-Khâliq), o Discriminador (al-Bârî’) e o Formador (al-Muçawwir)” supõem todos uma obra feita sobre uma matéria preexistente. De fato, o sentido primitivo de Khalaqa é “polir, moldar.” Ele é empregado para a criação do homem a partir da argila (6, 2), da poeira (22, 5), de uma gota de esperma (16, 4; comp. 22, 5; 12-14). “Ele vos cria, no seio de suas mães, criação após criação, em três trevas” – estas “três trevas” sendo a parede abdominal, a matriz e a placenta. Khalaqa é empregado concomitantemente com sawwâ, “proporcionar” (87, 2) e substituído por çawwara, “formar” (40, 64; 64, 3).
Mesmo que “criar os céus e a terra seja mais grandioso do que criar os homens” (40, 57), não o é menos certo que os termos que exprimem a criação do universo físico supõem todos uma matéria preexistente. “Ele elevou (raƒa’a) os céus, sem pilares visíveis [para sustentá-los] e estendeu (madda) a terra e pôs nela montanhas imóveis e rios” (12, 2-3; 31, 10). “O céu, Ele disse, Nós o construímos de nossas mãos (banaynâ-hâ)… e a terra, Nós a estendemos (ƒarashnâ-hâ)” (51, 47-48). Mais concreta é ainda a afirmação seguinte: “Eh o quê! Os infiéis não viram que os céus e a terra estavam soldados juntos e que Nós os separamos.”
A noção de disjunção, ligada ao ato criador, nas cosmogonias semíticas, é ainda bem marcada no Corão através de dois atributos de Alá: “Ele é o Separador (al-Fâtir) dos céus e da terra” e Ele é “o Senhor da separação.”
Nós não insistimos mais. É bem difícil falar de uma criação ex nihilo na cosmogonia corânica. Deveria atribuir-se este fato à pobreza das velhas línguas semíticas em termos abstratos?
O fim do versículo 30 da surata 21, citado acima, nos coloca no caminho de uma solução ao problema da origem do ser: “Da água, Nós fizemos todas as coisas vivas.” Em vista da sobriedade dos textos corânicos, é à tradição islâmica que nós iremos perguntar os detalhes e as precisões necessárias para a compreensão de tal asserção.
AS COISAS CRIADAS
ANTES DOS CÉUS E DA TERRA
Nós penetramos num campo onde a fantasia é regra e as contradições múltiplas e irredutíveis. Nossa tarefa é extrair, do caos das lendas cosmogônicas da tradição muçulmana, um quadro coerente e expressivo. Para atingir esta meta, nós iremos tentar classificar e coordenar o conjunto dos dados fornecidos pelas nossas fontes.
A Tábua e a Pluma.
“Foi Ele que criou os céus e a terra, em seis dias, e seu Trono estava sobre a água.” É em torno deste versículo que se exerce a engenhosidade dos comentadores e dos tradicionalistas. O conflito a respeito da primazia, na criação, entre a água e o Trono complica-se pela introdução de um novo elemento, o Destino.
Uma tradição, sob o nome de Ibn Abbas, diz: “A primeira coisa criada por Deus foi al-Lawh al-Mahƒûz, a Tábua conservada ou secreta (Cor. 85, 22). Ele inscreveu nela aquilo que era e aquilo que será até o dia da Ressurreição. Ninguém a não ser Deus sabe aquilo que ela contém. Ela é feita de uma pérola branca.” Dão-se até suas dimensões: “Seu comprimento é aquele que separa o céu da terra e sua largura se estende entre o Oriente e o Ocidente. Ela é amarrada ao Trono, sempre pronta para colidir a testa de Isrâfîl (Rafael), o anjo mais próximo do Trono. Quando Deus quer realizar algo na sua criação, a Tábua bate na testa de Isrâfîl, que a olha e nela lê a vontade de Deus. “Alá, é dito, apaga e confirma aquilo que Ele quer e, junto Dele, é o Arquétipo da Escrita.” Então, [Isrâfîl] ordena a Jibrâ’îl (Gabriel), ou àquele dos anjos que vem após ele, executá-la.” “Deus olha em direção a esta Tábua trezentas e sessenta vezes por dia. Cada vez que Ele a olha, Ele faz viver e morrer, Ele eleva e abaixa, Ele honra e humilha, Ele cria aquilo que Ele quer e decide aquilo que Lhe parece bom.”
Para escrever sobre esta Tábua, Alá criou o Cálamo, ou a Pluma (al-qalam) a partir de uma substância preciosa cujo comprimento é de quinhentos anos de caminhada. Ela tem a ponta em fenda e a luz escorre por ela como a tinta de nossas plumas. Deus lhe disse: “Escreva!” O Cálamo estremeceu, em seguida desta ordem, ao ponto que os fragmentos de seus louvores se pareceram com os fragmentos dos raios. Ele pergunta: “O que devo escrever?” “O Destino”, Ele lhe disse.Ele pôs-se a inscrever, na Tábua, tudo aquilo que devia acontecer até o dia da Ressurreição. A Tábua se preencheu, o Cálamo secou e a felicidade de uns e a infelicidade de outros foram determinadas.
A Água.
A Tábua e o Cálamo não são mencionados em todos os textos cosmogônicos. Uma tradição dá o seguinte esquema para as primeiras coisas criadas: o Trono, a Água, e a Terra, criada a partir da Água. Mas, a opinião mais corrente é aquela que faz anteceder a criação da Água, como suporte do Trono.
Vimos que o Corão extrai da água todo ser vivo (21, 30). A tradição islâmica vai além, estendendo a origem aquática a todas as coisas, inclusive ao céu e à terra. Um texto do Midrash vem apoiar esta concepção; ele afirma que, no primeiro dia, as coisas criadas estavam em estado líquido, e que, no segundo dia, elas se coagularam.
O papel representado pela água, como elemento refratário aos deuses, nas mais velhas concepções semíticas, lhe valeu, mesmo no Islã, um lugar preeminente em relação às outras coisas criadas. Entretanto, nas religiões monoteístas, onde tudo se curva docilmente diante das ordens do Criador, a Água, bem que ainda bivalente, perdeu seu caráter nefasto que vinha de sua hostilidade aos deuses, e seu aspecto negativo e destruidor entrou na ordem cósmica e se pôs ao serviço de Deus, como instrumento de sua vingança.
É também uma tradição, levando o nome de Ibn Abbas, que nos descreve a criação da Água: após a Tábua e o Cálamo, “Deus criou uma pérola branca tendo as dimensões do céu e da terra; ela tem sete mil línguas, das quais cada uma glorifica Deus em sete mil linguagens.” Ka’b [al-Ahbâr] acrescenta: “Ela tem numerosos olhos (tão enormes que) se colocássemos nela as montanhas imóveis, elas não seriam vistas maiores do que pernilongos sobre o oceano.” E Deus a chamou; ela estremeceu ao seu chamado, (tão forte) que ela se transformou em água corrente e movediça. Toda coisa suspende, por um momento, seus louvores (ao Criador), menos a Água que não cessa de O glorificar através de seu tremor e sua agitação. É porque Deus a elegeu, em preferência às outras criaturas para ser a origem delas (Cor, 21, 30). E uma ordem foi intimada à água de não se mexer mais; ela parou, esperando um sinal de Deus. Era uma água clara, pura e sem espuma.”
O Vento.
Para conter a Água, Deus criou o vento. Um hadith deixa até entender que a criação da nuvem e do ar precedeu a da Água. Perguntou-se ao Profeta: “Onde estava o Senhor antes de criar os céus e a terra?” Ele respondeu: “Ele estava numa nuvem, entre duas camadas de ar, e ele criou seu Trono sobre a Água.” Kisâ’i (p. 2) parece colocar a criação do Vento após a do Trono: “E Deus criou o Vento e o muniu de asas inumeráveis. Ele lhe ordenou de carregar a Água; o que ele fez. Assim, o Trono estava sobre a Água e a Água sobre o Vento.” Perguntou-se a Ibn Abbas: “Sobre o que se apoiava a Água? – Sobre as costas do Vento, ele respondeu; e quando Deus quis produzir as criaturas, Ele deu ao Vento poder sobre a Água; a Água encheu-se em ondas, esguichou em espuma, mandou acima dela vapores; estes vapores ficaram elevados acima da Água e Deus os nomeou samâ’ (de samâ: “ser elevado”), céu.”
O Trono.
Acima da Água, carregada sobre as asas do Vento, flutua o Trono da Majestade divina. A teodiceia muçulmana é assombrada por esta imagem. Deus “criou os céus e a terra, em seis dias, e seu Trono estava sobre a Água.” É neste versículo que irá se exercer a sagacidade e o espírito fantasioso dos qaççâç e dos comentadores.
“O Senhor do Trono” é um dos atributos mais frequentemente dados a Alá no Corão. Ele é chamado também “o Senhor dos céus e do imenso Trono” (23, 86), “o Mestre do Trono.” Um outro termo corânico parece confundir-se com a palavra ‘Arsh designando o Trono; é o Kursî, Assento (2, 255). A tradição muçulmana tentará distingui-los. Todavia, o atributo “o Senhor dos dois Orientes e dos dois Ocidentes” (55, 7) aproximaria esses dois termos, até os confundir na concepção antiga da Montanha Sublime, habitação da Divindade, dominando o universo criado. Uma imagem do poeta Labid vem confirmar esta aproximação: Deus ajustou, em andares, sob a Sala de seu Trono, sete céus, sob o cume da Montanha. Por outro lado, uma descrição do Trono, atribuída a Umayya ben Abi-ç-Çalt, emprega, em aposição, dois termos equivalentes a ‘Arsh e Kursî: “Glorificai Deus… para a construção, a mais elevada, que Ele fez antes (de criar) os homens, ajustando seu Trono (Sarîr) acima do céu, assento (Sharja’) muito alto que não alcança o olhar dos humanos…”
Passemos à criação e à descrição deste Trono.
“E Deus criou o Trono, a partir de uma substância verde, cuja imensidão e luz são indescritíveis. Ele o colocou sobre as ondas da Água.” Uma tradição de Ka’b al-Ahbâr reporta que “o Trono (‘Arsh) possui setenta mil línguas, das quais cada uma louva Deus em diversas linguagens.”
Tha’labi (p. 19) descreve o Trono (‘Arsh) como uma das maravilhas com a qual Deus ornou o céu. “No Trono encontra-se a Representação (tamthâl) de tudo que Deus criou sobre a terra e no mar.” É assim que tem que interpretar a palavra do Todo-poderoso: “Não há nada que não esteja em nossos Tesouros” (Cor. 15, 21). A distância que separa cada um dos pilares do Trono representa o voo de um pássaro veloz durante oitenta mil anos. “O Trono reveste, cada dia, setenta mil cores. Por causa de sua luz [ofuscante], nenhuma criatura pode olhá-lo. As coisas que lá estão parecem todas juntas a um anel jogado num deserto.”
Uma tradição de Wahb ben Munabbih afirma que “em todos os Livros dos Antigos, é mencionado o Trono e o Assento. Este último, Deus o criou a partir de duas substâncias imensas.”
Ao lado de afirmações como: “O Kursî é o Trono” ou “O Kursî é (feito) da luz do Trono”, ou mesmo “O Kursî (como o Trono) é a Ciência divina”, nós achamos outras estabelecendo uma diferença substancial entre ‘Arsh e Kursî. “O Kursî, em relação ao Trono, é como uma pérola num deserto; assim como os sete céus e as sete terras e aquilo que eles contêm são, em relação ao Kursî, como um anel em uma vasta terra.”
Uma tradição, mais curiosa ainda, inspirada provavelmente nas especulações agnósticas da mística judia dos Hekhalot, nos diz: “Os céus, a terra e aquilo que eles contêm são envolvidos pelos mares e o todo é cercado pelo Haykal (templo), o qual é cercado, diz-se, pelo Kursî.” Esta tradição nos foi apresentada sob uma forma mais desenvolvida, mas obscura, patroneada por Wahb ben Munabbih, um Judeu convertido ao Islã no primeiro século da hégira: “Os céus, a terra e os mares estão no Haykal, o Haykal no Kursî, e os pés do Senhor descansam sobre este Kursî que Ele carrega (!); o Kursî se tornou como os calçados de seus pés.” Quando perguntava-se o que é o Haykal, Wahb respondeu: “Algo das extremidades dos céus, contornando as terras e os mares, como as cordas de uma tenda.” Ele foi interrogado sobre as terras (ardîn): “São, disse ele, sete terras, dispostas em sete ilhas; elas são separadas, duas a duas, por um mar; o mar cerca o todo e o Templo cerca o mar.”
Segundo Tha’labi (p. 19), o Trono repousa sobre gigantescos pilares. Mas outra tradição representa o Trono como carregado por quatro anjos “criados para tal.” Descrevem-se as dimensões e os corpos, coisa que somente Deus conhece. Afirma-se que eles são agora em número de quatro: o rosto do primeiro é à imagem da Águia, o do segundo, à imagem do Leão, o do terceiro, à imagem do Touro e o do quarto, à imagem do Homem. No dia da Ressurreição, quatro outros anjos se juntarão, segundo a fala de Deus: “Neste dia, oito (anjos) carregarão, acima deles, o Trono de vosso Senhor.”
Sabemos o destino que foi reservado para estas quatro figuras na literatura bíblica, judaica e cristã. Relata-se que o Profeta recitava estes dois versos de Umayya ben Abi-ç-Çalt, um árabe cristianizador do século VI: Deus “reteve, sob Ele, os Sarâfîl (Serafins?) puros, entre os quais não há nem fracos, nem covardes. São um Homem e um Touro; sob seu pé direito, uma Águia, e um Leão vigiante,sob o outro pé.”
Por vezes, tem-se a impressão que o Trono é carregado por apenas um só anjo. Um hadith o descreve nestes termos: “Deus tem um anjo que, com seu pé, perfura a terra inferior e ergue-se entre a terra e o céu, de tal forma que sua cabeça toca a parte baixa do Trono. Por Este que dispõe da alma de Maomé, se os pássaros fossem obrigados a voar de seu pescoço até o lóbulo de sua orelha, eles levariam setecentos anos, antes de alcançá-lo.”
Ka’b al-Ahbâr relata que este enorme Trono, ele também, foi tentado a se revoltar. Ele pensou: “Deus não criou coisa mais grandiosa do que eu!” E então, ele mexeu. Imediatamente, Deus o envolveu com uma Serpente (hayya), tendo setenta mil asas, em cada uma setenta mil penas; setenta mil rostos, em cada um setenta mil bocas e em cada boca setenta mil línguas… A Serpente abraçou com força o Trono em seu meio.”
A CRIAÇÃO DOS CÉUS
E DA TERRA
Segundo os termos da surata 2, 29 (comp. 22, 4), e aqueles, mais explícitos, da surata 41, 9-12 (ver acima, p. 242), a terra parece ter sido criada antes do céu. Mas o conjunto dos dados corânicos conduz a adotar a ordem oposta (9, 7; 32, 4; 25, 9; etc.).
A concisão do texto corânico nos obriga, aqui novamente, a extrair nossas informações detalhadas das narrativas tradicionais que fazem somente amplificar as crenças provenientes de um velho fundo, comum a todos os semitas.
Nas nossas fontes, essas duas concepções corânicas criam um mal-estar e uma hesitação constante. A maioria dos autores tratam primeiro da criação da terra, ao mesmo tempo afirmando que o céu já estava criado. Todavia, outros (como Kisâ’i, 5, 9) fazem anteceder a criação da terra, sem a menor hesitação.
Uma tradição de Ibn Abbas tenta suprimir este mal-estar: “O fato de que (por vezes) a criação da terra é mencionada antes que a do céu, (por vezes) a do céu antes da terra, (explica-se) porque Deus tinha criado a terra, com suas substâncias, sem estendê-la antes do céu; e, Ele se voltou para o céu que Ele ajustou em sete céus; depois, Ele estendeu a terra.”
Não podemos nos ater às flutuações destas opiniões contraditórias e, sem querer dar a preferência a uma ou a outra tese, nós começamos pela criação do céu.
A criação dos sete céus.
Segundo a opinião unânime dos autores, o céu foi formado em dois tempos. Em primeiro lugar, “Deus ordenou ao vapor que surgia da Água que se erguesse no ar. Então, dele, Ele criou o céu em dois dias”. O segundo tempo foi a separação (Cor. 21, 30; ver acima, p. 243) do céu e da terra e sua formação em sete céus e sete terras.
Não é necessário insistir aqui sobre a importância do número sete no mundo semítico. Uma tradição de Wahb ben Munabbih ilustra o papel deste número nas concepções árabes: “As coisas quase foram apenas sete. Os céus são sete; as terras também. As montanhas são sete; os mares também. A idade da terra é de sete mil anos; os dias da semana são sete; os planetas também. As procissões (em volta da Pedra Preta) na Ka’ba são de número sete; é do mesmo jeito para a corrida entre aç-Çafâ e al-Marwa e para o jato das pedras (em Minä). As portas do Inferno são sete; os degraus do Inferno também…”
A tradição muçulmana, que extrai geralmente na literatura judaica, conhece as substâncias das quais são formados os sete céus, o nome de cada um deles e os seres que os povoam.
Nós nos deparamos com a presença de duas descrições, uma (Kisâ’i, 9 s.) curta, a outra (Tha’labi, 16ss.) mais detalhada. Dar as duas, é impossível; escolheruma, é arriscar empobrecer a matéria. Sendo assim, destacaremos as principais características numa tabela comparativa, onde K indica os dados de Kisâ’i, e T aqueles de Tha’labi.
Entre o sétimo céu e o Trono, espaços infinitos se estendem, povoados de anjos de dimensões gigantescas. Em um lugar chamado de Marhûthâ encontra-se o exército dos Arcanjos, em dimensões maiores que os anjos, exceto o espírito (ar-Rûh). Esses espaços formam al-Hujub “os Véus”. Nós passamos por diversos detalhes fantasiosos.
Tabela descritiva dos sete céus |
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NOMES |
MATÉRIA DA QUAL ELE É FEITO E COR (C) |
HABITANTES (ANJOS) |
ANJO NOMEADO |
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I |
Barqî’ * |
Esmeralda verde (K). Água e vapor. C. ferro polido (T). |
Em forma de vacas (K). Criados de fogo e de vento (T). |
Ismâ’il (K) Ar-Ra’d. (O trovão) (T). |
II |
Faydûm (K). Qaydûm (!) (T). |
Rubi vermelho (K). C. bronze (T). |
Em forma de abutres (K). De diversas cores; entreajudas (T). |
Mikhâ’il (K). Habib (metade fogo, metade neve). (T). |
III |
Awn (K). al-Mâ’ûn (T). |
Rubi amarelo (K). C. vitríolo branco (ou verde) (T). |
Em forma de águias (K). Anjos com 2, 4, 6 asas, figuras diversas (T). |
Sa’diâ’il (K). |
IV |
Arqalûn (K). Fîlûn (T). |
Prata (K). C. prata branca (T). |
Semelhantes aos cavalos (K). Realizam diversos cultos (T). |
Çalçâ’il (K). |
V |
Ratqâ (K). al-Lâha (i)-qûn (T). |
Ouro vermelho (K). C. ouro (T). |
Semelhantes aos Houris (K)**. De joelhos, prosternados, olhar abaixado (T). |
Kalkâ’il (K). |
VI |
Rafqâ (K). ‘Arûs (T). |
Pérola branca (K). Rubi vermelho (T). |
Semelhantes às crianças (K). Al-Karûbiûn (Querubins). Exército imenso (T). |
Shamkhâ’il (K). |
VII |
Gharîba (K). ar-Raqî’ (T). |
Luz ofuscante (K). Pérola branca (T). |
À imagem dos homens (K). Inumeráveis exércitos de anjos (T). |
Zarqâ’il. |
* Outra série de nomes é dada por Tha’labi, 16: Dinâh, Diq, Raqt’, Fttûn, Taftâf, Samaâq, Ishâqâ’il.
** Cf. Cor. 52, 20. al-Hur al-‘Ayn: “Aquelas que têm o preto e o branco bem acentuados”; mulheres, sempre belas e sempre jovens, do Paraíso muçulmano.
Da topografia “ultraceleste”, dois pontos particulares retêm nossa atenção: Sidrat al-Muntahã e o Paraíso (Janna).
A Sidrat al-Muntahã (Cor. 53, 14, 16) é “uma árvore que se encontra no sétimo céu, após o Paraíso. Ela se enraíza no Paraíso; suas radículas estão sob o Kursî e seus galhos sob o ‘Arsh. Aos confins desta árvore, finda a ciência das criaturas. Cada uma de suas folhas sombreia uma nação. Ela é coberta de anjos, iguais a borboletas de ouro. Somente Deus sabe o número deles!”
Quanto ao Paraíso, as divergências são numerosas a respeito de sua localização. A concepção corrente o situa no sétimo céu. O Corão nos fornece detalhes precisos sobre a vida no Paraíso. A tradição islâmica descreve as substâncias das quais ele é formado e os bem-aventurados que vivem nele: “São homens de trinta e três anos, de cabelos curtos, sem barba, os olhos untados de khol (kuhl). Eles têm a idade de Jesus, o (belo) rosto de José, o coração de Abraão, o (comprido) tamanho de Adão, a (bela) voz de Davi e a (eloquente) língua de Maomé.” Eles levam uma existência corporal, na qual os prazeres do sexo e do paladar são sempre vivos e agudos. Eles não dormem, pois “o sono é o irmão da morte” e eles são imortais. Os tempos do paraíso são uma aurora contínua; não há nem sol, nem lua, nem noite, nem dia. Os bem-aventurados banham numa luz eterna, sabendo distinguir a sucessão das noites e dos dias somente através da descida dos Véus e da abertura das Portas.
Separados um do outro por uma distância de quinhentos anos de caminhada, e tendo cada um uma espessura equivalente a este trajeto, os sete céus se apresentam como tendas redondas sobrepostas, cujas cordas estão amarradas entre elas, até o sétimo céu, e cujas amarras estão fixadas ao Trono. Assim, o problema do equilíbrio dos céus é resolvido. Falta achar um ponto de apoio para a terra. Uma mistura de tradições antigas irá servir de alimento para a imaginação de nossos autores.
A criação das sete terras.
Segundo Kisâ’î, “quando Deus quis criar as terras, Ele ordenou ao Vento agitar a Água. Quando a Água se agitou e espumou, as ondas ergueram-se e o vapor formou-se. Deus ordenou à espuma solidificar-se; ela secou. Ele criou dela a terra, sobre a superfície da Água, em dois dias (Cor. 41, 8). E ele ordenou às ondas que parassem; ali estão as montanhas que formam o contrapeso da terra (Cor. 21, 32)”.
Sobre o que a terra se apoia? “A terra, nos diz Wahb, balançava como uma barca sobre as ondas. Deus fez descer um anjo, de uma força e de uma potência ilimitadas. Ele ordenou-o que se introduzisse sob a terra. Ele a ergueu sobre seus ombros, estendeu as mãos, uma em direção ao Oriente, a outra em direção ao Ocidente, e apanhou as extremidades Leste e Oeste da terra. Mas ele não tinha ponto de apoio para posar seus pés. Deus lhe criou um Rochedo quadrangular, de um rubi verde, contendo sete mil buracos; em cada um encontra-se um mar, do qual somente Deus conhece a imensidade. Ele ordenou ao Rochedo entrar sob os pés do anjo que nele se posaram. Mas o Rochedo não tinha ponto de apoio. Deus lhe criou um enorme Touro, de quarenta mil cabeças, de quarenta mil olhos e o tanto de narizes, de bocas, de línguas e de patas. Uma distância de cinco anos de caminhada separa suas duas patas, uma da outra; Deus ordenou-lhe penetrar sob o Rochedo. Ele o carregou sobre as costas e sobre os chifres. O nome deste Touro é ar-Rayyân. Mas ele também, não tinha ponto de apoio para posar suas patas. Deus lhe criou uma imensa Baleia (Hût). Ninguém ousa olhá-la, em razão de sua enormidade e do grande número de seus olhos. Ela é tão imensa que se todas as águas dos mares se reunissem em uma de suas narinas, o todo seria comparável a um grão de mostarda em uma terra deserta. Deus lhe ordenou servir de pedestal ao Touro. O nome desta Baleia é al-Bahmût. Ela repousa sobre a Água; sob a Água, o Ar; sob o Ar, as trevas de todas as terras. Assim, todas as terras repousam sobre as costas do Anjo, o Anjo sobre o Rochedo, o Rochedo sobre o Touro, o Touro sobre a Baleia, a Baleia sobre a Água, a Água sobre o Ar, e o Ar sobre as Trevas. Aqui param os limites da ciência das criaturas.”
Esta superestrutura gigante depende de um simples movimento da Baleia. Uma lenda previu o mal e achou o remédio. Iblis – o diabo –, ela nos diz, serpeou até a Baleia e sugeriu-lhe sacudir sua carga pesada e livrar-se dela. A baleia concebeu fazê-lo; mas Deus lhe enviou imediatamente um pequeno bicho que entrou numa narina e penetrou até o cérebro da baleia. O grande peixe gemeu (e implorou) a Deus, que permitiu o pequeno bicho de sair. Mas, ele permanece frente à Baleia, ameaçando entrar, cada vez que esta última é tentada a se mover.
Por outro lado, o equilíbrio da terra é condicionado pelas montanhas que, como pesos pesados (rawasi: Cor. 13, 3; 21, 31), erguem-se de todo lugar e pesam sobre as extremidades da terra.
A maior de todas é a famosa montanha Qâf. “Ela é feita de uma esmeralda verde que dá ao céu sua cor azulada.” Ela contorna toda a terra e as outras montanhas lhe servem de artérias. Quando Deus quer sacudir uma terra, Ele lhe ordena mexer a artéria correspondente a esta terra. Atrás dela, situam-se as montanhas de neve e de granizo. Sem este cinto de neve e de granizo, o fogo do Inferno queimaria o mundo.
Para além de Qâf, sete mares se sucedem, cada um cercando o outro. Nossos mares são apenas golfos em relação a estes oceanos. Criaturas inumeráveis vivem neles.
O paralelismo dos sete céus e dos sete mares leva ao das sete terras. Como para os céus, nós agrupamos, numa tabela comparativa, os dados de Tha’labi (8-10) e de Kisâ’i (6-7) que mais fazem pensar a uma descrição dos degraus do Inferno.
Tabela descritiva das sete terras |
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NOMES |
DESTINAÇÃO E CONTEÚDO |
HABITANTES |
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I |
Nossa Terra (T) *. ar-Ramka (K). |
Embaixo, encontra-se o Vento Estéril. Amarrada por 70 mil cordas, seguradas cada uma pelo tanto de anjos. Lugar de destruição de ‘Ad **. |
al-Bû(aw)sham. Um abutre lhes é nomeado (K). |
II |
Khalda (K). |
Morada do Vento (T). Todo tipo de torturas para os danados (K). |
al-‘Amîs. Comem a própria carne e bebem o próprio sangue. |
III |
‘Arqa (K). |
Escorpiões como mulas, com rabos como lanças, contendo enormes quantidades de veneno (K). |
al-Fîs; alimentam-se da gordura que cobre o estômago e das mamas (K). Criaturas com rosto de homens, boca de cães, mãos de homens, patas de vacas, orelhas de cabras, pelos de carneiros. Nunca desobedecem a Deus. Nossa noite é seu dia e vice-versa (T). |
IV |
al-Harbâ (K). |
Pedras de enxofre, alimentando o fogo do Inferno, preparadas para os danados (Cor. 2, 24) (T). Serpentes dos danados, como montanhas; seus dentes como altas palmeiras (K). |
al-Ji(a)lla; nem olhos, nem pés, nem mãos; asas como aquelas dos qatâ (pássaros semelhantes aos pombos). Morrem só de velhice (K). |
V |
Malthâ (K). |
Escorpiões e serpentes dos danados (T). Cf. III e IV. Pedras de enxofre no pescoço dos infiéis (K). Cf. IV e Cor. 14, 50. |
al-Hajla; inumeráveis, devoram-se uns aos outros (K). |
VI |
Sijjîn (TK). Cf. Cor. 83, 7. |
Registros, atos e maus espíritos dos danados (TK). |
al-Qutat; como pássaros. Adoram Deus como se é devido (K). |
VII |
‘Ajîba (K). |
Morada de Iblis (TK). Seu ninho é cercado de venenos e de frio glacial; seus exércitos o defendem contra os Djins rebeldes (T). |
al-Hutûm. Pretos e anões; mandíbulas de bestas ferozes. Destruirão Yâjûj e Mâjûj *** (K). |
* Tha’labi, II, dá os seguintes nomes às sete terras: Adîmâ, Basftâ, Thaqilâ, Batîhâ, Mutathâqila, Mâsiha, Tharâ.
** Povo mítico da antiga Arábia.
*** Dois povos apocalípticos (Gogue e Magogue da Bíblia).
Além da sétima terra, situa-se o Fogo. Os mares formam uma barricada entre ele e as criaturas. O calor do sol e a canícula do verão são uma fração mínima dele. O Fogo se queixou a Deus dizendo: “Eu me devoro eu mesmo.” Desde então, foi-lhe permitido expirar uma vez no verão, e inspirar uma vez no inverno. São estes aqui os momentos do calor mais sufocante e do frio mais mordaz.
Este Fogo é o do Inferno. Duas entidades criadas nele se religam: As-Sirât, a Via, uma ponte acima do Inferno, na qual passam os mortos. Aquele que é destinado ao Paraíso atravessa-a; aquele que é destinado ao Inferno precipita-se nele; Al-Mizân, a Balança, que, como uma balança comum, é formada por dois pratos do tamanho da terra: um é feito de trevas, o outro de luz. Sua barra horizontal se estende entre o Oriente e o Ocidente. Ela é suspensa ao Trono e a uma língua e a um grito. Ela anuncia: “Tal é bem feliz, tal é infeliz.”
Os Ornamentos da terra e do firmamento.
“Alá, disse o Profeta, foi Ele que criou os céus e a terra e fez descer a água do céu, para produzir frutos para vosso alimento. Foi Ele que pôs a vosso serviço a nau, para vogar no mar sob sua ordem. Ele também vos trouxe os rios. Foi Ele também que pôs a vosso serviço o sol e a lua” (Cor. 14, 32 s.).
O mais importante dom divino feito para a terra é incontestavelmente a água. Através das suratas do Corão repercute, em mais de um lugar, esta fala de Deus: “Nós fizemos descer do céu uma água pura (12, 48).” É um ornamento para a terra, ao mesmo tempo que uma condição de fertilidade, de verdura e de frescor. “Foi um deus, com Alá, que criou os céus e a terra e fez descer a chuva do céu, pela qual nós fizemos crescer jardins muito belos, dos quais vós não saberíeis fazer crescer as árvores?”.
A água é um dos signos mais significativos da onipotência divina que “extrai o vivo do morto e o morto do vivo e que faz reviver a terra após sua morte” (30, 19, 24; 36, 33-36).
Os mais bonitos ornamentos do firmamento são o sol, a lua, os planetas e as estrelas. “Nós ornamos o céu inferior através dos astros” (Cor. 37, 6). A tradição explica, como segue, este versículo: “os astros são de duas espécies: uns estão suspensos como lampadários nas mesquitas; os outros estão cravados (no firmamento) como a pedra no anel. Apesar de sua elevada quantidade, nenhum astro se parece ao outro. Alguns completam que não há nenhuma criatura, sob o Trono, que não tenha um astro à sua imagem.”
Os astros não são apenas um ornamento para o céu, mas também uma proteção, uma defesa contra os demônios rebeldes que tentam escutar às portas do céu (Cor. 37, 7-8; 41, 12; 67, 5). As estrelas cadentes são lançadas contra tais demônios.
Mas o sol e a lua são as maiores maravilhas do céu inferior. Numerosas são as lendas a seu respeito. Não nos é evidentemente possível examiná-las todas.
O Corão e a tradição tratam estas duas luminárias de um modo que marca bem a influência de Alá sobre estes dois astros que eram seus rivais. Os termos corânicos sakhkhara e da’aba (13, 2; 14, 33), que expressam a tarefa designada ao sol e à lua, implicam uma ideia de servilismo e de submissão. Eles vogam, cada um em sua órbita, respeitando as normas estabelecidas por Deus (Cor. 21, 33; 36, 40).
A tradição é muito mais explícita a este respeito. A criação do sol é demonstrada pela prioridade das trevas sobre a luz. Uma opinião de Ibn Abbas recua sua criação, assim como a da lua, a das estrelas e dos anjos, à Sexta-feira, último dia da criação.
O poder de Deus sobre o sol e a lua é ainda expresso numa imagem corânica que não deixa de surpreender: “Nós fizemos dois Signos da noite e do dia; e Nós apagamos o Signo da noite e Nós tornamos visível o Signo do dia” (17, 12). Os comentadorescompletam: “Aquilo que vós vedes na lua parecendo linhas são apenas os rastros do apagamento.”
Deus criou, em seguida, uma carruagem para o sol e outra para a lua. A do sol é feita da luz do ‘Ash. Ela tem trezentos e sessenta alças; em cada uma está suspenso um anjo. A da lua é feita da luz do Kursî; ela tem o mesmo número de alças, nas quais se engancham o mesmo número de anjos.
E Deus formou, para eles, os Nascentes e os Poentes, nas extremidades da terra e dos céus. São cento e oitenta fontes, no Ocidente, feitas de um lodo preto, segundo a fala do Corão: “Ele (Dhû-l-Qarnayn) achou [o sol] pondo-se em uma fonte enlameada” (18, 84); e cento e oitenta fontes, no Oriente, do mesmo lodo. Essas fontes fervem como uma marmita no seu mais alto ponto de ebulição. Assim, cada manhã, o sol nasce de um novo ponto, e, cada noite, ele se põe num novo ponto.
Para atenuar o calor do sol e o poder de fascínio da lua, Deus criou um mar, sob o céu inferior, medindo três parasangas. Ele é formado por “ondas retidas”, mantendo-se no alto pela ordem de Deus. Não cai delas nenhuma gota. Ao passo que a água de todos os mares é estagnante, a deste mar é corrente, na velocidade de uma flecha e muito horizontal, tal uma corda esticada entre o Oriente e o Ocidente. Nas profundezas deste mar, movem-se, na velocidade das mós de um moinho, o sol, a lua e os cinco planetas. Se o sol aparecesse fora deste mar, ele queimaria todas as coisas sobre a terra, até os rochedos; e se a lua aparecesse fora deste mar, as pessoas da terra ficariam a tal ponto fascinadas que a adorariam no lugar de Deus, exceto os eleitos, que Ele protegerá.
Os eclipses do sol e da lua são provas que Deus inflige a esses dois astros e aos homens, de uma só vez. Estes fenômenos se produzem da seguinte maneira: o sol (ou a lua) cai do alto de sua carruagem no fundo do mar que forma sua órbita. Se Deus quiser agravar o signo e intimidar suas criaturas, o sol cai inteiramente; não sobra nada dele sobre a carruagem. É então o eclipse total. Se Deus quiser advertir, através de signos menos graves, cai dele a metade, ou o terço, ou os dois terços; a outra parte fica na carruagem. Para recolocá-lo no lugar, os anjos se dividem em dois grupos: um puxa o sol em direção à carruagem, o outro puxa a carruagem em direção ao sol.
No fim dos tempos, o sol e a lua virão trementes se prosternar, frente ao Trono, e suplicarão a Deus levar em conta sua submissão e sua assiduidade ao seu serviço e não castigá-los com aqueles que os adoraram: “Nós não, eles dirão, chamamos ninguém para nosso culto e nós não desviamos ninguém do vosso.” E Deus acreditará neles e os reintegrará à luz de seu Trono.
A CRIAÇÃO DOS SERES ESPIRITUAIS
E VIVOS
Depois da criação do cosmos visível e invisível, Deus povoou os céus e as terras. Sobre as diversas etapas do ato criador, temos muito poucos dados.
As tradições divergem quanto à ordem de criação dos seres espirituais e dos seres vivos. Um hadith relata que o Profeta, questionado pelos Judeus sobre a criação dos céus e da terra, deu a seguinte ordem: “Deus criou a terra, domingo e segunda-feira; as montanhas e aquilo que elas contêm de útil, terça-feira; as árvores, a água, as cidades, os lugares habitados, a ruína, quarta-feira; o céu, quinta-feira; as estrelas, o sol, a lua, os anjos, sexta-feira. Nas três últimas horas deste dia, Ele criou, na primeira, os termos da vida de todo ser vivo (Cor. 35, II), na segunda, a calamidade contra tudo aquilo que é útil aos homens, e, na terceira, Adão, que Ele fez habitar o Paraíso, ordenou a Iblis que se prosternasse perante ele e o tirou de lá na última hora… E Ele voltou a subir no Trono.”
O mesmo hadith é diferentemente relatado pelo mesmo intermediário, ‘Ikrama, referindo-se a Ibn Abbas (ibid., 21): domingo, a terra; segunda-feira, Adão; terça-feira, as montanhas, a água, etc.; quarta-feira, os alimentos; quinta-feira, os céus; Sexta-feira, Deus criou, em duas horas, a noite e o dia.
Outro tipo de tradição (Abu Huraira) nos dá a seguinte ordem: sábado, o solo; domingo, as montanhas; segunda-feira, as árvores; terça-feira, o desagradável; quarta-feira, a luz; quinta-feira, os animais; sexta-feira, Deus criou Adão, a última criatura, na última hora deste dia.
É inútil nos estendermos mais sobre essas tradições inconciliáveis. O que é certo é que, no Corão, como na Bíblia, a obra do Criador foi concluída em seis dias (11, 7; 25, 59; 50, 38; etc.). A única outra precisão, fornecida pelo Corão, é que a terra foi criada em dois dias, e que as montanhas e os alimentos foram criados em dois outros dias (41, 9-10; cf. supra, p. 242).
A criação dos espíritos.
Sobre a criação dos espíritos, nós dispomos de poucos detalhes. O Corão afirma que antes do homem, Deus criou os djins, de um fogo muito ardente (15, 27; 55, 15). Nada é dito sobre a natureza dos anjos dos quais é muitas vezes assunto no Corão. Deus os fez “mensageiros tendo duas, três e quatro asas” (35, i). A tradição conclui que eles foram feitos de luz. “Deus, nos disse, fez suas criaturas de quatro elementos: os anjos de luz, os demônios de fogo, os animais de água e os homens de argila. Assim, Ele designou a obediência aos anjos e aos animais, feitos de luz e de água, e colocou a desobediência nos demônios e nos homens, feitos de argila e de fogo.”
Antes da criação do homem, os anjos habitavam os céus e os djins povoavam a terra. Mas uma lenda, que é apenas o desenvolvimento da narrativa corânica da decisão de Deus de criar o homem (2, 30), apresenta as seguintes sucessões na habitação da terra: “Deus criou, sobre a terra, seres, e Ele lhes disse: “Eu tenho a intenção de estabelecer um vigário sobre a terra, o que vós fareis?” Eles responderam: “Nós lhe recusaremos submissão e obediência.” Então, Deus mandou fogo que os queimou. Depois, Ele criou os djins e os fez habitar a terra. Eles adoraram Deus muito tempo. Mas veio um momento onde eles desobedeceram, mataram um profeta, chamado José, e derramaram o sangue. Então, Ele lhes mandou um exército de anjos, dirigido por Iblis, chamado então ‘Azâzîl: eles os expulsaram da terra e os acantonaram nas ilhas dos mares. Desde então, Iblis e seus companheiros habitaram a terra. O culto (de Deus) tornou-se fácil para Iblis e todos eles amaram morar nela. Foi aí que Deus lhes disse: “Eu me proponho estabelecer, sobre a terra, um vigário. – Colocarás nela, eles Lhe disseram, alguém que introduzirá a corrupção e derramará o sangue, enquanto nós não cessamos de Te glorificar e de Te santificar ?” Deus lhes respondeu: “Eu sei aquilo que vós não sabeis.”
A criação do homem.
Um longo lapso de tempo decorreu-se entre a criação da terra e a de Adão. “A terra, relata uma lenda, disse a Adão quando ele foi criado: “Ó Adão, tu vens a mim agora que eu perdi minha novidade e minha juventude.”
A decisão de Deus de criar o homem suscitou um certo temor entre os anjos, e principalmente a recusa de Iblis em obedecer a Deus. Nós vimos, acima, a reflexão dos anjos (Cor. 2, 28); eles temiam as infrações do homem. Entretanto, sob a ordem de Deus, eles se prosternaram perante ele (Cor. 38, 73). Servindo-se de uma tradição de Midrash, o Profeta mostra como Deus devolveu o prestígio do homem aos olhos dos anjos: “Deus ensinou a Adão todos os nomes, Ele fez desfilar perante os anjos (os seres assim chamados) e disse (aos anjos): “Fazei-Me saber os nomes destes seres, se vós sois verídicos! – Glória a Ti, eles responderam, nós sabemos apenas aquilo que Tu nos ensinou. Tu, Tu és o Onisciente, o Sábio. – Ô Adão, retomou Deus, faça-os conhecer o nome destes seres!” Quando Adão os avisou disto, Deus disse: “Não vos disse que Eu conheço o incognoscível dos céus e da terra e que Eu conheço bem aquilo que vós exteriorizais e aquilo que vós guardais em segredo?”
Iblis não se deixou intimidar: “Eu me prosternaria perante aquele que Tu criastes de argila?” E ele prossegue: “O que Te parece? Este ser que Tu honras mais do que a mim, se Tu me concederes um prazo até o Dia da Ressurreição, domarei toda sua posteridade, exceto um número pequeno.” Alá respondeu: “Parta! Àqueles de sua posteridade que te seguirão, o inferno será sua ampla recompensa.”
Às apreensões dos anjos e ao desprezo ameaçador de Iblis, a tradição soma os pressentimentos dos seres vivos. “Vendo Adão caminhar, postura ereta, enquanto nenhum animal sobre a terra tinha ainda caminhado como ele, a águia veio ao mar e disse ao peixe: “Eu vi um ser caminhando sobre dois pés e possuindo mãos, com as quais ele ataca violentamente; ele tem, em cada mão, cinco dedos.” O peixe respondeu: “Tu me descreves aí um ser que não te deixará (tranquilo) no ar e que não me deixará (tranquilo) no fundo do mar.”
A própria terra se recusou a fornecer a matéria-prima para a criação deste ser. Nem Gabriel, nem Miguel conseguiram lhe arrancar o punhado de argila, necessário para sua formação. Foi preciso que Deus enviasse o anjo da morte para realizar seus propósitos.
A respeito das modalidades da criação do homem, o Corão insiste apenas na matéria da qual ele foi modelado. O homem, anteriormente, não era nada (19, 67; 76, 1); Alá o formou de argila (6, 2), de uma argila pastosa (15, 26), como aquela do oleiro (55, 14), mas escolhida (23, 12 : sulâda) e fina (22, 5; 30, 20; 35, 11 : turâb). As fases seguintes deste ato são longamente descritas: “Nós criamos o homem de uma substância argilosa. Nós o fizemos por ejaculação, num receptáculo sólido, e fizemos da ejaculação, aderência. Nós fizemos da aderência, massa flácida. Nós fizemos da massa flácida, ossatura e Nós revestimos a ossatura de carne. Depois, Nós constituímos uma segunda criação (23, 12-14).”
Esta segunda criação visaria o fenômeno da geração, sobre o qual os textos corânicos voltam tantas vezes. O homem foi criado da água (35, 54), de uma água vil (32, 7), de uma gota de esperma (16, 4; 22, 5; 36, 77; etc.), de uma aderência (96, 2 : ‘alaq).
Tanto o Corão insiste sobre a humilde origem do corpo humano, tanto ele passa rapidamente sobre a origem da vida. Deus disse aos anjos: “Eu vou criar um mortal de argila; quando o tiver harmoniosamente modelado e que nele tiver insuflado meu Espírito (rûh), caí perante ele prosternados!” (38,71 s.; comp. 32, 9).
A estes sóbrios dados corânicos sobre a criação do homem, a tradição acrescenta numerosos detalhes folclóricos, dos quais nós destacamos só os mais característicos.
A poeira da terra, da qual o homem foi formado, foi pega dos quatro cantos da terra, de sua superfície, de sua camada úmida e pastosa, de seu solo vermelho, preto e branco, de suas planícies e de seus planaltos. É porque, na posteridade de Adão, há o bom e o mau, o belo e o feio: donde também a diversidades de seus rostos e de suas cores. Esta argila foi trabalhada em água amarga, doce e salgada, donde a diversidade dos temperamentos. Os Profetas e principalmente Maomé foram formados de uma argila branca extraída do coração da terra e trabalhada numa água paradisíaca.
Desta argila, assim trabalhada, e tornada dócil e colante, após quarenta anos de fabricação, e dessecada, durante quarenta outros anos, Deus modelou um corpo que ele deixou exposto, à passagem dos anjos, durante quarenta anos.
Outra tradição procura ser mais precisa e mais especificamente árabe: “Deus, ela diz, criou a cabeça de Adão e sua testa do solo da Ka’ba, seu peito e suas costas daquele do Templo de Jerusalém, suas coxas daquele do Iêmen, suas pernas daquele do Egito, seus pés daquele do Hijâz, sua mão direita da terra do Oriente e sua mão esquerda da terra do Ocidente. E Ele o estendeu à porta do Paraíso. Os anjos, que passavam em grupos, admiravam sua bela forma e seu longo tamanho, ainda mais que eles não haviam visto anteriormente coisa semelhante. Passando por ali, Iblis o viu e disse: “É para um propósito qualquer que tu foste criado!” E, batendo-o com a mão, ele constatou que este estava oco; ele entrou nele pela boca e saiu do lado oposto. Então, disse aos anjos que estavam com ele: “É um ser esvaziado, ele não durará e não resistirá muito tempo.” Neste instante, ele decidiu transgredir a ordem de Deus.
Nesta argila dessecada, Alá mandou um espírito (rûh) do seu lado, sobre um planalto do Paraíso. O espírito, achando a entrada estreita, e o corpo escuro, recusou-se a entrar nele. Deus o ordenou de entrar apesar dele e de sair apesar dele. O espírito foi insuflado em Adão pelo nariz; ele virava na sua cabeça, por causa do pouco espaço de que dispunha. O espírito da vida circulou nele; então, ele abriu os olhos; sua língua foi desatada; suas orelhas escutaram e ele espirrou. Ele disse então: “Glória a Deus!” Deus lhe respondeu: “Que teu Senhor tenha piedade de ti!” Assim, a primeira fala de Adão foi a proclamação da unicidade de Deus e a publicação de seus louvores. Então, os anjos entenderam que Deus criou Adão somente por uma grande causa. E o espírito continuou a circular no seu corpo; Adão o olhava (avançar); ali onde ele alcançava, formava-se carne, sangue e cabelos. E acrescenta-se que antes de o pé ser constituído, Adão quis se levantar; o que exprime a palavra do Corão (17, 12): “O homem sempre foi impaciente.”
Quando Adão pôs-se em pé, imenso era seu tamanho. “Sua testa tocava o céu – é daí, acrescentam os autores, que provém a calvície! – os anjos estavam sem jeito e o temiam. Eles se queixaram dele a Deus que lhe enviou Jibrîl (Gabriel); Ele exerceu pressão nele e abaixou seu tamanho até sessenta côvados.” O Profeta dizia: “Vosso pai Adão era tão alto quanto a palmeira a mais elevada; ele media sessenta côvados. Ele era revestido de unha; este ornamento lhe foi tirado pouco antes da queda; resta-lhe um testemunho na ponta dos dedos.”
A criação de Eva.
Quanto à criação de Eva, o Corão não diz nada; ignora até o seu nome. A tradição só faz desenvolver o tema bíblico.
Abandonado e sem companhia, Adão passeava no Paraíso. Deus fez descer o sono sobre ele, apanhou a mais curta de suas costelas e com ela formou Hawwâ’, sem que Adão percebesse, nem sofresse. Se Adão tivesse sofrido, nunca nenhum homem se debruçaria sobre uma mulher. E Deus a vestiu com a roupa do Paraíso, adornou-a de toda espécie de ornamentos e fê-la sentar-se ao lado da cabeça de Adão. Quando este último acordou, ele a achou sentada ao lado de sua cabeça. Os anjos, querendo experimentar a ciência de Adão, perguntaram-lhe: “O que é isto Adão? – Uma mulher, ele lhes disse. – Como ela se chama? – Hawwâ’ – Tu disseste a verdade, replicam os anjos, mas por que ela se chama assim? – Porque ela foi criada a partir de uma coisa viva (hayy).” Os anjos retomaram: “Por que Deus a criou?” Adão respondeu: “para que ela descanse ao meu lado e que eu descanse ao lado dela.” Donde a palavra do Corão (30, 21): “Entre estes Signos, é ter criado para vós esposas, extraídas de vós mesmo, para que vós repouseis ao lado delas, e ter posto entre vós afeto e mansuetude.”
Nós acrescentamos a esta descrição duas constatações empíricas da tradição. O Profeta teria dito: “A mulher foi criada de uma costela curva: querer endireitá-la, é quebrá-la. Para gozar dela, é melhor deixá-la tal qual.” Com a idade, diz-se, o homem torna-se cada vez mais belo, porque ele foi criado do limo da terra, que de dia em dia torna-se mais sólido e mais belo; mas, a mulher, mais sua idade avança, mais ela torna-se feia, porque ela foi criada de carne; e a carne se corrompe progressivamente com o tempo.
A criação dos sentidos e da inteligência.
A insistência do Corão sobre a criação da parte física e animal do homem não lhe faz totalmente perder de vista o aspecto sensitivo e intelectual do ser humano. Uma afirmação, mais de uma vez repetida, marca este lado da obra do Criador. “Foi Ele (Alá) que constituiu para vós a audição, a visão e as vísceras” (23, 78; 32, 9; 67, 23). “Não lhe demos dois olhos, uma língua, dois lábios?” (90, 8s.).
Uma tradição, relatada por Kisâ’î (p. 8), coloca a criação do intelecto (‘aql) já bem antes da criação do homem e do próprio céu, logo após a criação da terra. Deus lhe disse: “Venha!” e ele veio: “Parta!” e ele partiu. Deus então disse: “Pela Minha Onipotência e Minha Majestade, eu não criei ser que não fosse mais caro que tu! Através de ti, Eu tomo e, através de ti, Eu dou; através de ti, Eu recompenso e, através de ti, Eu castigo”.
Outra opinião coloca a criação do ‘Aql antes de tudo: “A primeira coisa criada foi o Intelecto.” Esta ideia não acha fundamento direto no Corão. Ela é de fato inspirada da literatura sapiencial do Antigo Testamento e principalmente das especulações da hagadá, muito desenvolvidas, na Hochma.
A filosofia árabe do século X de nossa era se apossa deste termo (‘aql) para o revestir das prerrogativas do “Nós” neoplatônico.
Eis como al-FARABI (ob. 950), o primeiro grande filósofo árabe, descreve-nos o processo da criação, segundo sua teoria do Fayd (Emanação).
Após ter classificado as coisas em necessárias ou possíveis, ele prossegue: Em toda eternidade, Deus conheceu-se a Si mesmo; Ele emanou necessariamente, mas deliberada e voluntariamente, um Primeiro Intelecto (‘aql) Simples. Dele próprio, este primeiro Intelecto é Possível; sua Necessidade vem do Primeiro. Ele se conhece a si próprio e conhece o Primeiro. Da necessidade que lhe vem do Primeiro e da Ciência que ele tem de Si, produz-se um Segundo Intelecto. Da possibilidade que lhe volta de si próprio e da ciência que ele tem de si próprio, produz-se a Esfera Superior, com sua matéria e sua alma.
A emanação prossegue pela produção, conjuntamente, de um Intelecto e de uma Esfera. É assim que, do Segundo Intelecto, produz-se um Terceiro e a Esfera das Estrelas fixas; do Terceiro Intelecto, um Quarto e a Esfera de Saturno; do Quarto Intelecto, um Quinto e a Esfera de Júpiter; do Quinto Intelecto, um Sexto e a Esfera de Marte; do Sexto Intelecto, um Sétimo e a Esfera do Sol; do Sétimo Intelecto, um Oitavo e a Esfera de Vênus; do Oitavo Intelecto, um Nono e a Esfera de Mercúrio; do Nono Intelecto, um Décimo e a Esfera da Lua. Este último é o Intelecto Agente.
Os Intelectos Separados, assim como as Esferas Celestes, são diferentes, entre eles, quanto à espécie; sua matéria diferencia-se daquela dos quatro Elementos Fundamentais. Suas Almas são movidas por um movimento circular, levadas por um vivo desejo em direção às Inteligências puras e em direção à Causa Primeira, objeto do afeto e do amor do Todo.
E os Intelectos Separados e as Almas das Esferas são os Anjos de Deus.
Tudo que existe sob a Lua compõe-se de uma matéria prima e de uma forma, necessariamente inseparáveis. As duas recebem a existência do Intelecto Agente. A matéria-prima é uma só em todos os corpos; ela deve sua disposição absoluta, em receber as diversas formas, ao movimento circular, comum às Esferas; e ela deve sua disposição relativa, em receber uma forma de preferência a outra, à divergência dos movimentos das Esferas e à sucessão das relações diversas sobre ela.
Quanto às formas, elas diferenciam-se entre si; elas emanam do Intelecto Agente, quando se realiza na matéria-prima, a disposição requisitada para isto. É da sucessão das formas que provêm a mudança e a corrupção.
Aquilo que se constitui primeiro são os quatro Elementos: a Água, o Ar, o Fogo e a Terra. Destes quatro Elementos compõem-se as quatro Espécies Fundamentais: o Mineral, o Vegetal, o Animal e o Humano.
Neste sistema, a criação do homem é reduzida a sua mais simples expressão. De fato, o homem é composto de um corpo e de uma alma, que emana do Intelecto Agente, quando o corpo está disposto a recebê-la. A alma não existiu antes do corpo e não passa de um corpo a outro. Ela é uma, mas dispõe de várias faculdades: a faculdade vegetal (assimilação, crescimento, geração), a faculdade animal (fonte da percepção sensitiva e da moção voluntária), a faculdade racional (que apreende as generalidades e determina a ação).
O essencial desta teoria dos Dez Intelectos encontra-se em AVICENNE (ob. 985) que, explicando-a, trouxe algumas modificações:
Pensando-se em Si próprio, Deus produz o Primeiro Intelecto. Deste último, uma tripla possessão acontece: sendo possível por si e necessário por Deus, pensando o Primeiro, ele está na origem de um Segundo Intelecto; pensando-se em si mesmo, como necessário, ele está na origem da Primeira Esfera; enfim, pensando-se possível por si, ele dá lugar ao corpo desta Esfera. E a emanação prossegue como em al-Farabi.
Mas, os Irmãos da Pureza (Ikhwân aç-Çafâ’), membros de uma associação secreta, com objetivo político e de tendência eclética, fundada no século IV da hégira, em Basra, tentaram simplificar este sistema para alcançar um auditório maior; eles introduziram nele elementos neoplatônicos e pitagoristas.
Eis, segundo eles, como realizou-se a criação por via de emanação:
Por uma necessidade inerente à sua Sabedoria, Deus fez emanar o Intelecto Agente. É uma substância simples e espiritual, uma luz pura, de uma extrema perfeição, contendo a forma de todas as coisas, tais figuram, no pensamento do conhecedor, as formas das coisas conhecidas. Do Intelecto Agente, emanou a alma universal (Intelecto Paciente). É uma substância espiritual e simples que recebe as formas e as virtudes do Intelecto Agente, como recebe o aluno (o ensino) de seu mestre. Da alma universal, emanou a matéria-prima. É uma substância simples e espiritual que recebe da Alma universal as formas e as figuras. Foi assim que a matéria-prima recebeu da Alma universal o comprimento, a largura e a profundidade; ela tornou-se um corpo absoluto. A emanação parou com a existência do corpo, em razão da espessura de sua substância e de seu distanciamento da Causa Primeira.
E, a Alma universal debruçou-se sobre o corpo absoluto, deu-lhe a forma esférica, moveu-o de um movimento orbicular e organizou as Esferas, umas dentro das outras, começando pela Esfera periférica até a extremidade do centro da terra. O conjunto forma onze Esferas.
A Alma universal continuou sua obra formando os quatro Elementos: a Água, o Ar, a Terra e o Fogo. As esferas rodaram ao redor dos Elementos e se misturaram umas às outras; resultaram-se disto as Espécies Fundamentais: o mineral, o vegetal, o animal e o humano.
A Alma universal é o Espírito do Cosmos; ela circula em todos os corpos, desde a Esfera periférica até a extremidade do centro da terra, tal a luz do sol em todas as parcelas do ar. Suas faculdades que regem as coisas existentes são aquilo que chamamos as almas particulares ou as forças naturais. É delas que provém a alma humana.
A Alma universal existiu, um grande lapso de tempo, antes de se religar ao corpo, submetido às dimensões. Ela continua ligada ao corpo universal, para emanar suas virtudes nele e para fornecer à matéria acabamento e perfeição. No fim dos séculos, a Alma universal retornará ao seu universo espiritual; então, o universo corporal será arruinado, porque o Primeiro Motor atingirá um dia o objetivo que ele esperou do movimento. Este último cessará e então acontecerá a grande Ressurreição.
Quanto à relação de Deus com as coisas existentes, é a relação do um com os outros números; ele figura em todos e com todos, sem mistura nem combinação. A relação do Intelecto Agente com as coisas existentes é a relação do 2 com os outros números. A relação da Alma universal a estas mesmas coisas é a relação do 3 com os outros números. Enfim, a relação da matéria-prima com as coisas existentes é aquela do 4 com os outros números. E como na origem de todos os números encontram-se os números 1, 2, 3, 4, assim Deus, o Intelecto Agente, a Alma universal e a Matéria-prima são a origem de todas as coisas existentes.
A CRIAÇÃO DO SANTUÁRIO
Nós não podemos concluir este estudo, que arrisca ultrapassar os limites prescritos, sem mencionar uma crença cosmogônica, largamente difundida no Islã primitivo, relativa à origem da Ka’ba, lugar sagrado da piedade muçulmana.
Segundo Ibn Abbas, enquanto que o Trono estava sobre a Água e antes da criação dos céus e da terra, Alá mandou um ligeiro vento que agitou a Água e fez aparecer uma ilhota arredondada, no lugar mesmo da Ka’ba, semelhante a uma cúpula. Depois, Deus estendeu a terra sob esta ilhota; ela balançava sobre a Água, até que Deus a imobilizou através das montanhas. A primeira montanha que foi erguida foi Abû Qubaîs. É porque Meca foi chamada a mãe das cidades das cidades (Umm al-Qurã). Acrescenta-se que a Ka’ba foi criada dois mil anos antes da terra, e que suas fundações atingem a sétima terra.
Este santuário celeste, chamado de Durah, foi criado para o uso dos anjos. Ele é chamado também de a Casa Visitada (Cor. 52, 4 : al-bayt-al-Ma’mûr). Cada dia e cada noite, setenta mil anjos passam por ele, sem nunca mais voltar (pp. 5 e 7 s.).
Expulso do Paraíso, Adão não ouvia mais as rezas dos anjos na Casa Visitada. Ele se queixou a Deus, que o mandou fundar um santuário, igual àquele do céu. As distâncias desmaiaram-se sob seus passos gigantes; ele atravessou terras e mares e alcançou Meca.
Ajudado pelos anjos, ele construiu a Casa Sagrada (Cor. 5, 2 a e b : al-bayt-al-Harâm, ou al-Masjid al-Harâm), feita das cinco montanhas: o Líbano, o Monte das Oliveiras, o Monte Sinai, o Judi e Hira (comp. p. 30). Então, a Ka’ba emergiu sobre a superfície da terra (p. 7).
Este santuário terrestre é construído logo acima de seu protótipo, a Casa Visitada. “Se esta última caísse, poderia atingir somente ele.” Uma tradição, atribuída ao Profeta, diz: “Esta casa (a Ka’ba) é o quinto de uma série de quinze santuários (sobrepostos), dos quais sete se encontram no céu, até o Trono, e sete na terra, até a terra inferior. O mais elevado desses santuários é a Casa Visitada, que se encontra abaixo do Trono. Cada um desses santuários é rodeado de um Cercado Sagrado (Haram), como a Ka’ba. Se um deles caísse, eles desabariam uns sobre os outros, até a terra inferior. Cada santuário tem seus fiéis que o visitam como visita-se a Ka’ba (p. 6).”
Outra tradição fala mais de uma Tenda. Para Adão, duramente cansado e distante do Paraíso, Deus mandou, em forma de consolo, uma Tenda do Paraíso que ele ergueu na Meca, no lugar da Ka’ba atual. Era uma Tenda feita de rubi vermelho do Paraíso, ornada de três lâmpadas, em ouro do Paraíso, dando uma luz do Paraíso. Com ela, desceu a Pedra Preta que era então um rubi branco, extraído das fundações do Paraíso. A Pedra servia de assento para Adão. A Tenda era vigiada pelos anjos; nenhum dos habitantes da terra de então (os djins e os demônios) tinha o direito de olhá-la, nem mesmo Eva; “porque, diz-se, a aquele que olha alguma coisa do Paraíso, o Paraíso é dado.” Na morte de Adão, a Tenda foi elevada ao céu.
CONCLUSÃO
Do santuário, até o Trono, flutuando sobre a Água primordial, passando pelo universo espiritual, humano e físico, a cosmogonia islâmica é feita somente de variações sobre um tema único que entoam, mais de uma vez por dia, milhares de vozes, do alto de vários milhares de minaretes, surgidos de todos os pontos do globo: “Alá é maior. Não há outro Deus a não ser Ele. Maomé é seu Profeta!”.
Uma visão perfeita deste espetáculo grandioso da criação, surgida do Pensamento e da Ação de Alá, foi atribuída, segundo a tradição, a seu Profeta de predileção quando de sua Ascensão (Mi’râj) até o além do sétimo céu. Purificado, cheio de sabedoria e de fé, montado sobre o Buraq, conduzido pelo anjo Gabriel, Maomé atravessa os sete céus, visitando-os um a um e entretendo-se com os principais Profetas, seus irmãos, que os habitam. Depois de Adão, Jesus e João (Batista), José, Idris, Aarão, que o saudaram afetuosamente, ele é recebido por Moisés e por Abraão, que lhe prodigalizam conselhos de sabedoria, para ele e para sua nação.
Algumas tradições completam a narrativa desta Ascensão ao céu com uma Descida aos Infernos, onde o Profeta, conduzido por Malik, guardião destes lugares, vê seus inimigos e os horríveis tormentos dos danados.
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* Trecho adaptado do texto La Naissance du Monde selon Israel, em La Naissance du Monde, de Anne Marie Esnoul et al. – Éditions du Seuil, França,1959.
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**Toufy Fahd foi um historiador francês.