Míséria da ciência e da filosofia sem o esoterismo
O fato de que não existe outra coisa senão um mundo espiritual
tira de nós a esperança e nos dá a certeza.
Kafka[1]
Há uma profunda ressonância entre magia, filosofia, ciência e arte, ressaltando sobretudo as confluências entre o Hermetismo, a filosofia da diferença e a física moderna. O Hermetismo é um saber mágico que se inspira no Egito Antigo e migra, via Alexandria, na Idade Média, para toda a Europa. A partir disso, fica evidenciado o quanto o saber esotérico é importante para o conhecimento ocidental. Existem influências comprovadas do Hermetismo sobre a ciência de Kepler (CONNOR, 2005), que foi astrólogo do imperador romano-germânico Rodolfo II, e Newton (DOBBS, 1994). No caso do segundo, a própria teoria da gravidade foi inspirada na alquimia. Newton chegou a traduzir para o inglês o texto considerado o mais importante da alquimia: “A tábua das esmeraldas” (DOBBS, 2002). Em linhas gerais, diferente do que supõe uma História da Ciência racionalista, a ciência clássica não nasce “em oposição” à magia, mas justo o contrário: a ciência clássica nasce da magia. Em seu brilhante livro Esoterism and the Academy: Rejected Knowledge in Western Culture, o historiador Wouter Hanegraaff (2012) diz em sua conclusão que, dados os atuais estudos, seria um absurdo excluir, por exemplo, Marsilio Ficino e Pico della Mirandola – dois dos grandes filósofos místicos – da História da Filosofia, assim como excluir a astrologia (que influenciou a astronomia) e a alquimia da História da Ciência.
Utilizaremos a passagem da alquimia para química como mônada das relações ao longo de esoterismo, filosofia e ciência. A alquimia tem seu início nas técnicas arcaicas mágico-ritualísticas dos curandeiros, mineiros e ferreiros, constituindo-se como saber na China, na Índia e na Mesopotâmia por volta dos anos 600 a.C. (VARGAS, 2009). No Egito, a sabedoria alquímica chegou um pouco mais tarde, com a filosofia de Plotino. O primeiro alquimista egípcio conhecido é Zózimo, do ano 300 d.C., autor dos primeiros textos notadamente alquímicos. Zózimo provavelmente foi aprendiz de Maria, a Judia, que cunhou o famoso método banho-maria, evidenciando que a alquimia tem importância para o Judaísmo, existindo vários alquimistas judeus, possivelmente os primeiros a acreditarem na transmutação dos metais. Especula-se se Moisés foi também um alquimista (PATAI, 2009).
A alquimia foi utilizada pelo analista suíço Carl Jung (1991) como símbolo do funcionamento do inconsciente. Em seu livro Psicologia e alquimia, é célebre a sua utilização na interpretação dos sonhos – considerados alquímicos por Jung – do físico Wolfgang Pauli, prêmio Nobel da Mecânica Quântica. Eles se tornaram amigos, e dessa amizade nasceu um dos conceitos mais importantes de Jung, a sincronicidade (PAULI & JUNG, 2001). No entanto, Hanegraaff (2012) ressalta que a interpretação de Jung relega a alquimia a um mero simbolismo psicológico. É importante enfatizar que a alquimia era uma prática laboratorial, inspiradora do laboratório científico de hoje em dia. A alquimia é também a principal fonte de informação do médico renascentista Paracelso (BALL, 2009), que foi professor universitário, pesquisador, autor de diversos tratados médicos relevantes, cuja obra influenciou séculos depois o advento da homeopatia.
Citar Paracelso como autor digno de nota da medicina pode parecer esdrúxulo para o leitor mais cético. Porém, o estudo mais apurado de sua obra mostra que Paracelso possuía uma mente científica, tanto quanto mágica (BALL, 2009). São estudos posteriores, como a História da Ciência de George Sarton, que criam uma ilusão de que, entre outras afirmações tendenciosas e preconceituosas, a ciência é cumulativa, progressiva e marcada pelo ceticismo, ao passo que a magia seria irracional (HANEGRAAFF, 2012). Essa invenção de uma certa magia “folclórica”, ou seja, imutável, ignora a contínua sofisticação que se observa no decorrer de vários séculos, em autores místicos como Plotino, os autores anônimos medievais que usaram o pseudônimo de Hermes Trismegistus – organizados no Corpus Hermeticus – e Isaac Newton, que acrescentaram conceitos, práticas e outros detalhes ao longo da história da magia. Na leitura desses e de vários outros autores místicos, percebe-se um avanço e um desdobramento dos conceitos da magia e que ainda continua nos dias de hoje, em obras como Psicomagia, do cineasta e escritor Alejandro Jodorowsky (2009), e Liber Null e Psiconauta, de Peter J. Carroll (2016), este último, um dos criadores da assim chamada Magia do Caos, um dos raros exemplos de articulação consistente de interpretações da Mecânica Quântica com a magia. É comum dizer que as considerações sobre o oxigênio feitas por Lavoisier – posteriores à morte de Paracelso – gerariam uma medicina “antiparacelsista”, ao mesmo tempo que fundaria a química. Nada na obra de Paracelso indica que ele renegaria o oxigênio, pelo contrário: ele se mostrava entusiasmado com novas descobertas (BALL, 2009).
Para apreendermos a importância e consistência da alquimia, convém citar a conclusão do estudo de Ana Maria Alfonso-goldfarb (2009), quando afirma que “o processo aí ocorrido foi dinâmico, a alquimia não caiu por si só – fruto de suas próprias contradições – mas pelas contradições que seu contexto causava no novo sistema de pensamento”. O que o trecho nos esclarece é que há uma mudança nas mentalidades com o Iluminismo e a Revolução Científica. O famoso episódio do sonho do químico alemão Friedrich Kekulé – em que sonhando com o Ourobourus, a figura alquímica da cobra comendo a própria cauda, lhe fornece o insight para a disposição dos átomos na molécula do benzeno – é a imagem por excelência da passagem da alquimia para química. Kekulé seria um dos pioneiros da química orgânica, cujo separatismo entre inorgânico e orgânico marca também a perda de importância de uma animismo mágico no imaginário cada vez mais científico da Europa e do mundo. Esse episódio faz parte de um longo processo de dualismo e separatismo que ocorre no pensamento. Cabe, a seguir, um resumo desse processo.
O momento decisivo do desenvolvimento humano é permanente.
Kafka
Existem celeumas internas à História debatendo se de fato houve um “matriarcalismo”. De todo modo, se partimos de um advento identificável historicamente do patriarcalismo, o uso de armas brancas, podemos situar um grande processo de separatismo inicial: a divisão social entre senhores e escravos. No Egito Antigo, no início das dinastias dos faraós (meados do Império Antigo [circa 2680 a.C. – 2190 a.C.]), toda a sociedade era moldada pelo conceito de Maat, uma deusa imanente da justiça e da verdade (NUNES CARREIRA, 1994). Acrescente a isso uma sociedade em que filosofia, religião e política eram imanentes, sobretudo referidos à figura do faraó. A deusa Maat estava no cosmos, era o cosmos. No Império Novo (circa 1550 a.C. – 1070 a.C.), há um processo de transcendentalização de Maat, que culmina com a decadência do Império e em um crescente individualismo no Egito. Nesse processo histórico, Maat deixa de ser uma deusa imanente para se submeter a um Deus único, tornando-se um mito de Estado, um “sentimento” de justiça. Esse individualismo vai se sofisticando em uma separação entre sujeito e objeto, onde há uma migração da ética imanente de Maat para o “amor ao próximo” da moral judaico-cristã.
A dimensão do “próximo” ou do “outro” só é suscitada em uma cosmovisão onde há a separação entre sujeito e objeto, ainda que “amai ao próximo como a ti mesmo” seja um convite a uma visão imanente: eu e o outro somos um só. No entanto, a passagem do Cristianismo inicial para um outro, depois de vários Concílios, para um Cristianismo cada vez mais transcendente, alterou a mensagem original: de um eu sou o outro, para um “se preocupar” com o outro, ou seja, uma informação ética degenera em regra moral. O “amar ao próximo como a ti mesmo”, em sua “versão imanente”, possui uma ressonância com a máxima dos Upanishads hindus “Tat twam asi”, que na interpretação do Advaita Vedanta seria algo como “Você é Isso”, um saber eminentemente não-dual, muito semelhante ao spinozismo, que vamos abordar adiante (OM & JOB, 2017).
Uma nova etapa do separatismo se dará na Grécia. Ásia e Egito trocavam comercialmente com a Grécia via Pérsia (MCEVILLEY, 2002). Disso resulta, por exemplo, todo o xamanismo presente em Pitágoras e seu famoso teorema, já existente antes de forma geométrica nas pirâmides do Egito. O racionalismo grego já herda a fase final do pensamento egípcio, outrora um indiferenciado de saberes que culmina em uma Grécia cuja filosofia nasce separando-se dos mitos e ritos. Há um ato político racionalista quando certa História inaugura o pensamento na Grécia. Dispensa-se, por exemplo, a existência de uma filosofia imanente à religião no Egito. Tal ato político é deveras relevante para compreendermos o que se dá na medicina e na concepção de saúde nos dias de hoje.
Parmênides inaugura essa Grécia dividida estimulando o que se tornou uma apologia à permanência, a que a filosofia ocidental vai, por assim dizer, se viciar. O platonismo exacerba o separatismo com sua exaltação do Mundo das Ideias em detrimento do mundo sensível do Simulacro, inferior. A Escolástica expande essa separação construindo um mundo separado de Deus. Descartes coloca corpo e mente enquanto Naturezas diferentes (DELEUZE, 2006). Nesse mesmo século XVII cartesiano, há uma mudança radical na concepção ontológica da linguagem. Se, até então, no imaginário “ocidental”, a palavra era imanente à coisa, a partir de meados do século XVII, a palavra se dissocia da coisa, apenas representando-a, sendo esse aspecto importante para o descrédito da bruxaria (CLARK, 2006). Kant, por sua vez, torna a Coisa em Si inacessível para a mente, o que, finalmente, vai resvalar no Positivismo, ou seja: a ciência é incapaz de chegar à realidade, apenas lida com os fenômenos (PINGUELLI ROSA, 2005). O homem moderno se sente inexoravelmente isolado do cosmos. Inventa-se uma “humanidade” destituída de seu âmbito cósmico.
Como é possível abrigar-se com o mundo, senão abrigando-se nele?
Kafka
Agora podemos entender melhor os processos que ocorreram: tanto a passagem da astrologia para a astronomia, como da alquimia para a química culminam em um ato, a saber, a exclusão da imanência da filosofia naquele saber. A astrologia promovia uma imanência entre as nossas vidas (micro) e as órbitas celestes dos astros (macro). A alquimia promovia uma imanência entre a vida (coagulada em um determinado corpo, “micro”) e os elementos (que estão e são o mundo, “macro”). Retirando-se a filosofia, que desde os egípcios era imanente aos fazeres, a astronomia se torna uma mera descrição do movimento celeste, com nada a inscrever em nossas vidas, e a química se torna uma combinação de elementos, sem nenhum significado imanente à vida, a não ser a descrição desses processos químicos do mundo. A filosofia degenera em mera opinião, posto que Kant proíbe que ela trate de fato das coisas. Quando se inventa essa humanidade destacada do cosmos, uma imensa solidão assola os ânimos da Europa. Inevitável que logo em seguida aparecesse um Freud para administrar essa solidão, reforçando-a com um aparelho psíquico individual.
Mas no próprio século XVII, já apareceria ali uma solução para todo esse separatismo. Estamos falando, claro, da filosofia de Baruch Spinoza (2008). O spinozismo é herdeiro de uma longa tradição de “perdedores”, tendo seu início em uma esquecida imanência egípcia, cujo herdeiro grego é Heráclito e seu devir impermanente, seus seguidores tardios, os Estoicos, os bruxos herméticos alquimistas, Giordano Bruno e o preceptor de Spinoza, Franciscus van den Enden (JOB, 2013).
Com Spinoza, teremos de fato uma imanência pura: uma univocidade entre Deus, Natureza e substância, uma mente imanente ao mundo e uma ontologia marcada por uma Ética: se dos maus encontros deriva-se uma baixa de potência, que gera a tristeza e a servidão, os bons encontros levam ao aumento de potência, alegria, liberdade e beatitude, ou seja, a apreensão da imanência pelo modo de expressão do homem.
Com isso, Spinoza resolve vários problemas: criador (Natureza Naturante) e criatura (Natureza Naturada) são imanentes: o homem deixa de ser separado do cosmos. A filosofia trata diretamente das coisas, emerge delas. Trata-se de toda uma busca filosófica do primeiro (imaginação) ao terceiro gênero do conhecimento (intuição), passando necessariamente pelo segundo (reflexão), problematizando ideias inadequadas rumo a ideias adequadas e, por sua vez, à beatitude, em que nos percebemos imanentes a Deus. A bruxaria talvez chegasse apenas a uma imanência pela via demoníaca, mas muitas vezes a negação da moral cristã apenas gerou um imaturo “pode-se tudo”. Essa postura seria mais intensamente midiatizada com o bruxo Aleister Crowley (2017, p. 33), cujo bordão a seguir foi mal entendido, por ser divulgado incompleto. A famosa Lei de Thelema, presente no Livro da lei, escrito em 1904 por Crowley[2], é “Faze o que tu queres, há de ser o todo da Lei. Amor é a lei, amor sob a vontade. Não há outra lei além do Faze o que tu queres.”
A Lei de Crowley pode ter semelhanças com a beatitude na Ética de Spinoza, escrita séculos antes. Porém, se o filósofo cultiva um rigor ontológico impecável, por sua vez, o texto de Crowley é confuso. Em Spinoza, as paixões devem ser governadas pelos bons encontros, colocando o homem como “senhor de suas paixões”, o que se diferencia de uma moral individual, desdobrando em uma Ética que nunca poderia ser apenas da ordem do “individual”.
O spinozismo, como o próprio Spinoza prefigurara, foi considerado uma heresia pela a Igreja, colocando o polidor de lentes em excelentes companhias históricas. A seguir, os pensadores da imanência seriam (de certa forma…) Leibniz, Hume, Nietzsche, Bergson, Deleuze, para citar os mais óbvios. Mas, para avançar em nosso argumento, é preciso tratar agora da melancolia.
O espírito primeiro se tornará livre quando deixar de ser suporte.
Kafka
A mudança em torno do imaginário acerca da melancolia é relevante para a nossa questão. A melancolia, até antes da Era Moderna, era, em linhas gerais, uma espécie de preparo para o entusiasmo (do grego enthousiasmos), algo como “inspiração divina”, “ser tomado por Deus” etc. Era uma espécie de método para sacerdotes de várias linhagens que envolvia, durante um tempo preparatório, isolamento, reflexão, abstinência sexual e de comida, para chegar a uma revelação e afins. A partir do século cartesiano, a melancolia foi ganhando cada vez mais contornos patológicos (CHAUÍ, 2000).
Aliado à patologização da melancolia, há todo o contexto do “desencantamento do mundo”, gerado pela Inquisição, pelo Iluminismo, a Revolução Científica e todo o separatismo que mencionamos aqui. Se podemos, até certo ponto, fazer parte do coro weberiano e nomear esse processo de “desencantamento do mundo”, uma ressalva deve ser feita: o que se entende por “secularização”, como perda da influência religiosa no social, é relativo. Segundo Hanegraaff (1999), houve, com o movimento Nova Era, uma mudança da institucionalização das religiões para espiritualidades privadas, com seus simbolismos individuais. Os exemplos contemporâneos abundam: Paulo Coelho, A profecia celestina, O segredo, O poder do agora etc. Em outras palavras, muitas pessoas deixam de seguir uma religião institucionalizada, mas se sentem fazendo parte de um grupo difuso de espiritualistas ao redor do planeta.
Hanegraaff (2012) também afirma que os espiritualistas da Nova Era vivem em uma realidade cientificizada, no entanto, seu sistema de crenças cria uma realidade à parte, onde o espiritual se manifesta. Entendemos que, dada uma história do “Ocidente” tão marcada por ideias transcendentais, muitos espiritualistas aloquem o espiritual em uma transcendência qualquer. A nossa operação aqui é spinozista, logo imanente, que envolve encontrar Deus – e os demônios das bruxas – neste mesmo mundo.
O desencantamento do mundo vai gerar uma cosmovisão por demais concreta. Os invisíveis tendem a ser abolidos da noção construída de realidade. A física newtoniana, por exemplo, racionaliza o invisível com o conceito de gravidade. É preciso aqui deixar claro que Newton não era newtoniano, no sentido que seu imaginário interagia harmonicamente com ciência, teologia, filosofia e alquimia, e sequer era “mecanicista”. É apenas Descartes que pode, de fato, ser considerado mecanicista, posto que sua mecânica envolvia necessariamente a relação local de partes. Já Newton, com a força de gravidade, postulava uma ação à distância ou não-local. Newton apenas publicou em vida seus textos científicos, a menor parte do total de sua obra (DOBBS, 1994). O irônico disso tudo é que essa “edição” da obra de Newton, justo o “último dos magos” – para usar o famoso discurso de Keynes (2002) –, foi um vetor considerável para o processo de racionalização iluminista de desencantamento do mundo. A Mecânica Quântica iria ainda gerar uma nova versão da presença dos invisíveis – ainda mais sutil e transformadora – para o campo científico. Cerca de meio século depois de seu surgimento, ela será agregada ao movimento Nova Era como uma justificação científica para a espiritualidade, ainda que muitas vezes com pouca ou nenhuma consistência (HANEGRAAFF, 2013).
A segunda metade do século XX presenciou a chamada “revolução farmacológica”, pela qual a psiquiatria deixava de medicar apenas a “loucura”, prescrevendo drogas para qualquer tipo de desconforto psíquico: alcoolismo, neurose adulta e infantil etc. (GRANATO, 2018). A partir da década de 1990, um novo boom ocorreria devido ao surgimento dos antidepressivos como o Prozac.
É nesse ponto que almejamos promover nossas ressonâncias: a consequência da “abolição dos invisíveis” no Iluminismo e a constituição de um mundo cada vez mais concreto, fazem com que aqueles que percebem esses invisíveis sejam considerados loucos (esquizofrênicos que escutam vozes, veem dragões etc.). E com a patologização da melancolia, o ânimo a qualquer preço – posto o imperativo da produtividade capitalista – faz com que se produza no imaginário a necessidade dos antidepressivos.
Mais um dado se faz necessário ao aliarmos o desencantamento à lógica capitalista: Silvia Federeci (2017) mostra como o processo de Inquisição, com seu feminicídio inerente, garantiu a ascensão do capitalismo nas relações de trabalho. O enfraquecimento do feminino, da intuição, dos invisíveis nos remete ao desencantamento do mundo. Claro que no processo científico há criatividade, intuição, e com isso, necessariamente, certo feminino passa por ali. No entanto, é inevitável que esse feminino esteja enfraquecido e domesticado. O “feminino domesticado” ganha sua evidência diagnóstica na virada do século XIX para o século XX, com o advento da TPM: a “bruxa” tem sua permissão social para emergir apenas nos dias que antecedem a menstruação…
É preciso apreender o contexto da segunda metade do século XX até os dias de hoje: a explosão do uso de drogas ilegais na mesma época do aumento de consumo de drogas psiquiátricas são ambos um mesmo movimento (GRANATO, 2018). Esse movimento seria o do uso de produtos químicos de várias procedências para alterar os “estados mentais”. Os “desencantados” tendem a usar drogas legais e os “encantados” da Nova Era, as ilegais, ainda que o trânsito entre ambas posições seja imenso, de acordo com a política exercida pelo usuário em seu campo social.
Essa é a nossa questão: a passagem da alquimia para a química, fractal à passagem da bruxaria para a ciência, com sua taxonomização dos saberes e da vida, desconectaram o homem do cosmos, relegando-o a uma vida infeliz. É preciso consumir de tudo, inclusive drogas de todo tipo, legais e ilegais, para suportar esse mundo e indivíduo fragmentados. É justamente nesse momento histórico que se dá a “medicalização da vida”. Diante disso, o que fazer?
Você é a tarefa. Nenhum aluno à vista.
Kafka
Foucault (2002) afirma que a imanência entre as palavras e as coisas sobreviveu na literatura. Podemos expandir essa ideia e trazer a arte para a vida. Mas são Deleuze e Guattari (1997) que vão fornecer o grande passo ontológico e clamar por um devir-mulher. Os autores defendem que todo devir é minoritário e passa necessariamente por um devir-mulher, e acrescentam que não existe algo como um “devir-homem”, posto que “homem” é majoritário. No mesmo texto, Deleuze e Guattari vão sussurrar algumas vezes em nossos ouvidos: “nós, os bruxos”, propondo uma aliança demoníaca, imanente, em detrimento de uma aliança familiar e transcendente. Essa filosofia aditiva o conceito de Henri Bergson (2009) de virtual, o atemporal que abriga os tempos coexistentes e a consciência, individual e cósmica, todos imanentes. O filósofo chega a dizer que ele entende por fantasma ou espírito quando alguém percebe o virtual alheio.
Quando referimos que Deleuze e Guattari se filiam à bruxaria, nossas estratégias ficam mais claras: vamos recuperar os invisíveis sem negar a ciência e o mundo tecnológico. Se a indústria farmacêutica transformou a medicina em algo “diabólico”, cabe agora permitir que as prescrições se tornem demoníacas, no sentido de Deleuze e Guattari.
O que o processo do Iluminismo e desencantamento do mundo realizou foi um achatamento do espectro de realidade ou, em outras palavras, uma “diminuição ontológica”. A ideia ilusória de transcendência se instala como uma ontologia da obediência: Deus transcendente, o Estado, reis, pais, chefes etc. são avatares dessa transcendência que preparam o sujeito destacado do cosmos para obedecer. Essa paixão triste tem como seus desdobramento a sedação química legal e ilegal da qual tratamos aqui.
O virtual, enquanto reinserção das forças ocultas na realidade, nos permite acessar novamente esse espectro ontológico mais amplo, construindo possíveis (JOB, 2013). Mas é preciso sofisticar nossa estratégia.
O anarquista sufi Hakim Bey (2001) propõe uma anarquia mística e ontológica. Com a sua Zona Autônoma Temporária (TAZ), ele diz que a revolução sequer deve ser desejada, e, em seu detrimento, propõe o levante. A TAZ seria qualquer espaço libertário provisório: uma festa, um piquenique, uma reunião de estudo, desde que seja livre de hierarquia, promovendo liberdade. Como vimos ao longo deste artigo, o corpo dócil que obedece às instituições – com suas aspirações transcendentes – é atravessado e governado por essas instituições, inclusive as médicas. Um espaço de liberdade convida o corpo a dançar, descoagula, para usar um termo hermético, o “indivíduo”, tornando-o consciente do fluxo a que ele pertence, de sua imanência.
A nossa resistência se dá através do modo imanente, inclusive entre ciência e bruxaria. Nossa medicina é a vida enquanto obra de arte, o cultivo da liberdade, a nomadismo festivo. Habitar o cosmos a partir da perspectiva da imanência, ao longo da Natureza e cultura, permite que nos consideremos um com o cosmos, sendo que neste cosmos estão o mar, as plantas, os animais, os automóveis, os arranha-céus, os comprimidos etc. Há muito já passou o momento dos luditas. Nossa questão é utilizar a tecnologia de modo ético, cientes da imanência entre nós e o cosmos, com tudo o que há nele. Também seria ingênuo negar qualquer medicação química, mas talvez possamos imprimir uma outa abordagem, por exemplo, na psiquiatria, em que a medicação deva ser negociada entre cliente e médico.
Cientes tanto dos invisíveis virtuais, conjuráveis no atual, como da possibilidade de transmitir essas informações ao vivo pelas redes sociais através de um smartphone, apreendemos que o esoterismo, a filosofia e a ciência habitam um continuum do pensar e intuir e cabe os próximos passos da dança cósmica fazer confluir mais intensamente as linhas vibracionais que compõe esse continuum.
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[1] Todos as epígrafes que inauguram as sessões deste artigo são de autoria de Franz Kafka (2017), oriundas do livro “Aforismos de Zürau”.