Mecânica quântica e realidade
1. – Introdução
Os desafios conceituais da mecânica quântica foram abordados a partir de duas perspectivas gerais. Uma delas é uma postura instrumentalista, que concebe a teoria como uma mera ferramenta de cálculo para fazer previsões. A outra adota uma posição realista e tenta elucidar como seria a realidade se a mecânica quântica fosse verdadeira. Este artigo está estruturado nesta segunda posição ontológica: seu propósito é descrever a realidade quântica, o que faremos com base na recente Interpretação Modal-Hamiltoniana (Lombardi e Castagnino 2008; Ardenghi, Castagnino e Lombardi 2009; Lombardi, Castagnino e Ardenghi 2010; Ardenghi e Lombardi 2011), segundo a qual o domínio a que se refere a mecânica quântica não relativista está povoado de propriedades. A aspiração subjacente deste trabalho é formular uma solução “global” para os principais problemas conceituais da teoria, de modo que possam ser adequadamente tratados em termos de uma ontologia única (da Costa, Lombardi e Lastiri 2012).
2. – Interpretação modal-hamiltoniana da mecânica quântica
A ideia principal das interpretações modais é que os estados quânticos descrevem o possível em lugar do real: “o estado delimita o que pode e o que não pode ocorrer e quão provável é – delimita a possibilidade, a impossibilidade e a probabilidade de ocorrência – mas não diz o que é que efetivamente ocorre” (van Fraassen 1991, p. 279). Sobre a base da ideia original de van Fraassen (1972, 1974), muitos autores apresentaram interpretações realistas que podem ser consideradas como membros da “família modal”, já que todas elas coincidem nos seguintes aspectos (ver Dieks e Vermaas 1998, Lombardi e Dieks 2012):
– A interpretação se baseia no formalismo padrão da mecânica quântica.
– A interpretação é realista, isto é, pretende descrever como seria a realidade se a mecânica quântica fosse verdadeira.
– O estado quântico, que evolui de acordo com a equação de Schrödinger, descreve propriedades possíveis, com suas correspondentes probabilidades.
– Uma medição quântica é uma interação física ordinária: não há colapso.
– O estado quântico se refere a um sistema único, não a um conjunto de sistemas.
A característica central que distingue as distintas interpretações modais entre si é a regra de designação de valores atuais: cada membro da família propõe sua própria regra para selecionar o contexto privilegiado, isto é, o conjunto dos observáveis que adquirem um valor atual definido sem violar as restrições impostas pela contextualidade quântica (Kochen e Specker 1967).
A Interpretação Modal-Hamiltoniana (IMH) designa ao elemento hamiltoniano do sistema um papel central, tanto na definição dos sistemas quânticos como na identificação do contexto privilegiado:
Def. 1: Um sistema quântico S é representado por um conjunto O de observáveis, tendo o hamiltoniano H pertence a O como membro destacado.
Qualquer sistema quântico pode ser dividido de muitas maneiras; contudo, nem todas as divisões geram partes que sejam, em si, sistemas quânticos (Harshman e Wickramasekara 2007):
Def. 2: Um sistema quântico S é composto quando pode ser dividido em dois sistemas quânticos S1 e S2 de forma tal que cada subsistema tenha seu próprio conjunto de observáveis e que não haja interação entre eles. Se o sistema não é composto, ele é elementar.
Posto que a contextualidade quântica impede a designação de valores atuais definidos a todos os observáveis de um sistema quântico em um certo estado, o segundo passo é identificar o contexto privilegiado.
Regra de atualização: Dado um sistema quântico elementar S, os observáveis com valor atual são o seu hamiltoniano H e todos os observáveis que comutam com H e têm, pelo menos, as mesmas simetrias que este.
Esta regra implica que qualquer observável que tenha menos simetrias que o hamiltoniano não pode adquirir um valor atual, já que tal atualização romperia a simetria do sistema de modo arbitrário.
Posto que o grupo de simetria da mecânica quântica é o grupo de Galileu, a aplicação de uma transformação de Galileu a um sistema quântico não introduz nenhuma modificação na situação física, apenas expressa uma mudança na perspectiva a partir da qual se descreve o sistema. Por outro lado, de um ponto de vista realista, o fato de que certos observáveis adquirem valor atual é um fato objetivo. Portanto, o contexto privilegiado deve ser invariante de Galileu: o conjunto dos observáveis que adquirem valor atual não deve mudar como resultado de uma mera mudança de perspectiva descritiva. No caso da IMH, a regra de atualização depende do hamiltoniano, que não é invariante com todas as transformações de Galileu (não é invariante frente ao boost). No entanto, podemos provar que, quando se considera a definição de sistema quântico elementar e composto (Def. 2), a regra admite uma formulação invariante de Galileu (ver Ardenghi, Castagnino e Lombardi 2009; Lombardi, Castagnino e Ardenghi 2010):
Regra de atualização invariante de Galileu: Dado um sistema quântico elementar S, os observáveis que adquirem valor atual são aqueles representados pelos operadores de Casimir, do grupo de Galileu.
Visto que os observáveis invariantes de Galileu são sempre funções dos operadores de Casimir do grupo de Galileu, qualquer interpretação realista que pretenda preservar a objetividade da atualização não pode se encontrar muito longe da IMH.
3. – Os itens básicos da realidade quântica: propriedades
3.1) Diferentes categorias de propriedades
A suposição de uma realidade composta de objetos e propriedades está implícita no discurso cotidiano dos físicos. Ancorados na linguagem comum de sujeitos e predicados, falam sobre elétrons com determinado momento, ou fótons com determinada polarização, como se existisse um “algo” subjacente ao qual as propriedades estivessem “aderidas”. Por outro lado, no formalismo ortodoxo da mecânica quântica, os estados, representados por vetores do espaço de Hilbert, “rotulam” sistemas quânticos; os observáveis se “aplicam” aos estados e são concebidos como representações das propriedades do sistema. Neste formalismo, os estados são fundamentais do ponto de vista lógico; os observáveis são logicamente posteriores porque estão representados por operadores que atuam sobre esses vetores previamente definidos. Esta prioridade lógica concorda com a prioridade ontológica que tradicionalmente se designa aos objetos sobre as propriedades.
A IMH, pelo contrário, parte de um enfoque algébrico, onde os elementos básicos são os observáveis; os estados são logicamente posteriores, já que estão representados por funcionais sobre o conjunto dos observáveis. Se esta prioridade lógica dos observáveis sobre os estados se transfere ao real, as propriedades se convertem nos itens básicos da realidade. Contudo, torna-se necessário distinguir diferentes categorias de propriedades:
- Propriedades-tipo, como, por exemplo, a energia.
- Instâncias de propriedades-tipo, representadas por observáveis (operadores autoagregados). Por exemplo, a energia deste sistema particular S, representada pelo observável H.
- Propriedades-caso possíveis de cada instância de uma propriedade-tipo, representadas pelos autovalores do observável correspondente. Seguindo no mesmo exemplo, são os valores possíveis da energia deste sistema S, representados pelos autovalores de H.
- Propriedade-caso atual de cada instância de uma propriedade-tipo, a qual não possui uma representação própria no formalismo. Continuando no exemplo anterior, é o valor que efetivamente adquire a energia neste sistema particular S.
Dada essa distinção, fica claro que, entre todas as propriedades-caso possíveis de uma instância de propriedade-tipo, não se pode atualizar mais de uma: no nosso exemplo, um sistema particular não pode ter simultaneamente, de um modo efetivo, dois ou mais valores diferentes de energia. Entretanto, também sabemos pelo teorema de Kochen e Specker (1967) que em um mesmo sistema, nem todas as instâncias de propriedades-tipo podem possuir uma propriedade-caso atual (nem todos os observáveis do sistema podem adquirir um valor definido). Portanto, dada uma instância de uma propriedade-tipo, entre todas as suas propriedades-caso possíveis, no máximo uma delas se converte em uma propriedade-caso atual. Quando isso ocorre, dizemos que a instância da propriedade-tipo se atualiza.
3.2) Indistinguibilidade entre propriedades
Posto que, segundo a IMH, os itens básicos da realidade quântica são propriedades, a estratégia consistirá em derivar a indistinguibilidade entre sistemas quânticos da indistinguibilidade entre propriedades. No âmbito clássico, duas instâncias da propriedade-tipo temperatura, por exemplo, a temperatura do objeto A e a temperatura do objeto B, são indistinguíveis se suas respectivas propriedades-caso atuais estão representadas por um mesmo valor, digamos, 37°C: embora falemos de duas instâncias da temperatura, temperatura-de-A e temperatura-de-B, não existe diferença alguma entre a temperatura-de-A e a temperatura-de-B se ambas adquirem o valor de 37°C. No caso quântico, por outro lado, as instâncias de propriedades-tipo nem sempre possuem uma propriedade-caso atual, porém sempre possuem propriedades-caso possíveis; consequentemente, a indistinguibilidade entre tais instâncias se define em termos de suas propriedades-caso possíveis:
Def. 3: Duas instâncias de uma mesma propriedade-tipo são indistinguíveis, isto é, só numericamente diferentes, se suas respectivas propriedades-caso estão representadas pelo mesmo valor. Portanto, a indistinguibilidade é uma relação de equivalência.
Segundo o Princípio de Identidade dos Indiscerníveis de Leibniz, se dois objetos possuem as mesmas propriedades – são indistinguíveis -, na verdade não são dois, mas sim um único objeto (para uma discussão sobre este princípio no contexto da física, ver French e Krause 2006). A indistinguibilidade quântica, interpretada como uma relação entre objetos quânticos – partículas -, deu lugar a múltiplas discussões, visto que constitui um sério desafio a tal princípio (ver, por exemplo, Redhead e Teller 1992, French 1998, Teller 1998, Butterfield 1993). De acordo com a Def. 3, fica claro que as instâncias indistinguíveis de qualquer propriedade-tipo não satisfazem o Princípio de Leibniz. Contudo, isso ocorre não porque o princípio seja falso nesse caso, mas sim porque não se aplica: o princípio se aplica a objetos, enquanto que aqui estamos considerando itens pertencentes à categoria de propriedade.
4. – Itens não básicos na realidade quântica: feixes de propriedades
4.1) Sistemas quânticos como feixes de instâncias
Se as propriedades são os itens básicos da realidade, os objetos devem ser definidos em termos delas. Esta ideia não é nova: diversas posições empiristas ao longo da história adotaram a ideia de que os objetos não são mais que feixes de propriedades; as propriedades, enquanto itens básicos, têm prioridade ontológica sobre os objetos. Mais precisamente, segundo a versão tradicional desta ideia, um objeto é um feixe de propriedades-caso atuais, seguindo a premissa de que todas as instâncias das propriedades-tipo correspondentes a esse objeto são determinadas em termos de uma propriedade-caso atual. Por exemplo, uma bola de bilhar em particular é concebida como a convergência de um determinado valor de posição, uma forma definida, digamos, redonda, uma cor definida, por exemplo, branco, etc.
No âmbito quântico, por outro lado, a contextualidade expressada pelo teorema de Kochen e Specker impede que todas as instâncias de propriedades-tipo correspondentes a um sistema quântico possam adquirir simultaneamente uma propriedade-caso atual. Por outro lado, devido à natureza não determinista da mecânica quântica, inclusive para as instâncias de propriedades-tipo que se atualizam, a propriedade-caso possível particular que se converte em atual não está determinada. Por esses motivos, a versão da ideia do feixe não funciona no caso quântico. Portanto, parece razoável conceber um sistema quântico como um feixe de instâncias de propriedades-tipo ao invés de como um feixe de propriedades-caso atuais. Essa leitura tem a vantagem de ser imune ao desafio representado pelo teorema de Kochen e Specker, já que este teorema não impõe restrições sobre as propriedades-tipo, mas somente sobre as propriedades-caso atuais.
4.2) Feixes atômicos
Matematicamente, o grupo de Galileu tem representações irredutíveis, onde os operadores de Casimir do grupo, massa M, energia interna W e spin ao quadrado S2, são múltiplos da identidade: M = mI, W = wI e S2 = s(s + 1)I. Como consequência, cada representação irredutível está etiquetada por um triplo (m, w, s).
Na física, se pressupõe que cada representação irredutível do grupo de Galileu representa um tipo de partícula elementar caracterizada por seu valor de massa, seu valor de energia interna e seu valor de spin. A partir da perspectiva do feixe, o correlato ontológico do conceito físico de partícula elementar é o conceito de feixe atômico, como um feixe que sempre inclui uma e não mais que uma instância das propriedades-tipo massa, energia interna e quadrado do spin. Portanto, um feixe atômico está matematicamente representado por operadores de Casimir que são múltiplos da identidade e, por isso, possuem um único autovalor. Ontologicamente, isso significa que cada uma das instâncias da propriedade-tipo correspondente tem uma única propriedade-caso possível. De acordo com a Regra de Atualização, portanto, em um feixe atômico as instâncias das propriedades-tipo massa, energia interna e spin sempre se atualizam, isto é, adquirem uma propriedade-caso atual. Porém, dado que todas elas possuem uma única propriedade-caso possível, esta é a propriedade-caso que se converte em atual. Isso coincide com a tradicional premissa física segundo a qual as partículas elementares sempre têm valores definidos de massa, de energia interna e de spin.
4.3) Feixes atômicos indistinguíveis
Embora os físicos, em sua linguagem cotidiana, falem da “indistinguibilidade entre partículas”, na nossa proposta interpretativa não existem partículas elementares como objetos básicos da realidade, somente propriedades que se organizam em feixes. Portanto, a indistinguibilidade entre feixes atômicos é “herdada” da indistinguibilidade entre suas respectivas instâncias: dois feixes atômicos são indistinguíveis quando suas respectivas instâncias de propriedades-tipo são indistinguíveis.
A indistinguibilidade entre dois feixes atômicos expressa a indistinguibilidade física entre as partículas elementares correspondentes e coincide com o fato físico de que todas as partículas elementares do mesmo tipo – isto é, com o mesmo valor de massa, energia interna e spin – são indistinguíveis.
5. – Estatística quântica
5.1) Agregados de feixes atômicos indistinguíveis
Quando o interesse se foca na estatística quântica de partículas elementares, é necessário considerar agregados de feixes atômicos. Em um conjunto de objetos, por exemplo, bolas de bilhar ou grãos de areia, os objetos componentes podem se reidentificar no conjunto, já que preservam sua identidade enquanto objetos. Ao contrário, um conjunto de feixes é um novo feixe de instâncias de propriedades-tipo, onde os feixes componentes perdem sua identidade precisamente porque não são objetos: já não se pode reidentificar cada um dos feixes componentes quando suas instâncias se integram e se combinam no novo feixe. Por outro lado, no caso de um conjunto de feixes atômicos indistinguíveis, a operação de agregação deve ser comutativa, justamente devido à tal indistinguibilidade: se representamos com a operação de agregação, o feixe h^C resultante da agregação de dois feixes atômicos h^A e h^B deve ser o mesmo, sem importar a ordem em que são combinados, h^A * h^B = h^B * h^A = h^C.
Essa conclusão, que se deriva da interpretação proposta em termos de propriedades e feixes de propriedades, tem uma consequência imediata no plano matemático. Consideremos os feixes atômicos h^A e h^B , representados pelos conjuntos de observáveis (operadores autoadjuntos) O^A e O^B, respectivamente. As instâncias de propriedades-tipo do feixe resultantes da agregação são representadas por observáveis na forma
Entretanto, visto que a operação de agregação de feixes atômicos é comutativa, os observáveis
seja verdadeiro. Em outras palavras, as instâncias de propriedades-tipo pertencentes ao feixe h^C são representadas por observáveis que são simétricos com relação à permutação entre h^A e h^B . Tomando o caso mais simples, onde
e considerando os componentes dos observáveis
então
Resumindo até aqui: a indistinguibilidade entre instâncias de uma propriedade-tipo conduz à indistinguibilidade entre feixes. Devido a sua indistinguibilidade, quando dois feixes atômicos indistinguíveis se combinam em uma agregação, a operação de agregação comuta, e é essa comutatividade que conduz à simetria do feixe resultante da agregação: os observáveis, que representam instâncias pertencentes ao novo feixe, são simétricos com relação à permutação dos índices correspondentes aos observáveis provenientes dos feixes componentes.
5.2) Estados de conjuntos de feixes indistinguíveis
Na discussão sobre as “partículas idênticas”, os argumentos estão usualmente ligados ao formalismo dos espaços de Hilbert, cujos vetores são as entidades matemáticas básicas que representam os estados das partículas indistinguíveis. Em geral, o problema se apresenta em termos de considerar a distribuição de duas partículas, 1 e 2, em dois estados, |a> e |b>, e a pergunta é: quantas combinações (conformações) são possíveis para obter o estado do sistema composto? A estatística de Maxwell-Volts Manh nos brinda com a resposta clássica, segundo a qual existem quatro combinações possíveis: a partícula 1 no estado |a> e a partícula 2 no estado |b> é uma combinação diferente da partícula 1 no estado |b> e a partícula 2 no estado |a>. Quando a situação é concebida nesses termos, o problema consiste em explicar por que uma permutação das partículas não conduz a uma conformação diferente na estatística quântica. A perspectiva modal-hamiltoniana de conceber os sistemas quânticos como feixes de instâncias de propriedades-tipo, com base no formalismo algébrico, conduz a uma leitura diferente do problema desde o começo.
Consideremos a agregação de dois feixes atômicos indistinguíveis. Como assinalamos, os observáveis que representam as instâncias da agregação são simétricos com relação à permutação dos feixes componentes. Por sua vez, sabemos que qualquer operador pode ser decomposto em uma parte simétrica e uma parte antissimétrica. No caso particular do operador de estado
pode ser expresso como
não produz nenhum efeito em sua aplicação aos observáveis representados por operadores simétricos e, portanto, é supérflua: somente a parte simétrica
possui significado físico. Isso significa que os estados de agregação de feixes atômicos indistinguíveis se comportam como se estivessem representados por operadores simétricos.
No caso particular dos estados puros, o operador simétrico
pode ser expresso em termos de um vetor de estado simétrico,
ou em termos de um vetor de estado antissimétrico,
Portanto, a simetria ou antissimetria dos vetores que representam estados puros de conjuntos de “partículas elementares” não são o resultado de uma simetrização ou antissimetrização ad hoc, nem da adoção de uma teoria de conjuntos que define uma relação de indistinguibilidade –diferente da identidade – entre indivíduos (da Costa, French e Krause 1992, da Costa e Krause 1994, 1997, 1999). Elas se devem a razões ontológicas: as propriedades de simetria dos estados são consequência da simetria dos observáveis do agregado, a qual, por sua vez, é consequência da imagem que proporciona a interpretação dos itens básicos da realidade e o modo como se organizam.
Resumindo, a partir da perspectiva que nos oferece a IMH, o problema da estatística das “partículas” indistinguíveis não pode ser formulado nos mesmos termos em que se entende a estatística clássica, isto é, perguntando como duas partículas podem ser distribuídas em dois estados. Com esta nova perspectiva, a partir do conjunto de dois feixes atômicos indistinguíveis, não existem dois feixes, mas sim um único feixe com uma simetria interna que se manifesta na simetria de seus elementos.
6. – Conclusões e perspectivas
No contexto da IMH, falar de entidades individuais, como elétrons ou fótons, e suas interações pode se manter somente em um sentido metafórico. Com efeito, no marco quântico, até mesmo o número de partículas está representado por um observável N, que se encontra sujeito às mesmas restrições teóricas que qualquer outro observável do sistema. Isso conduz, especialmente na teoria quântica de campos, à possibilidade de estados que são superposições de diferentes números de partículas (ver Butterfield 1993). Esse fato, enigmático a partir de uma realidade povoada por objetos, não é surpreendente quando concebido a partir desta perspectiva da IMH, segundo a qual um sistema quântico não é um objeto no sentido tradicional, mas sim um feixe de instâncias de propriedades-tipo. A imagem de um número definido de partículas é apenas uma imagem contextual, cuja validade se restringe aos casos em que o observável N pertence ao contexto privilegiado. Nesses casos, podemos metaforicamente reter a ideia de um sistema composto por partículas individuais. Porém, nas demais situações, a ideia torna-se completamente inadequada, inclusive no sentido metafórico.
Com base nisso, a IMH se afasta dos argumentos comumente envolvidos no debate sobre “partículas idênticas” em um sentido relevante. Na proposta de uma estrutura para o domínio referido pela mecânica quântica, o ponto de partida não é o problema particular da indistinguibilidade entre dois ou mais sistemas (“partículas”), mas sim o propósito de proporcionar uma interpretação compatível com as restrições impostas pelo teorema de Kochen e Specker: o problema da contextualidade que resulta desse teorema, visto que se apresenta em um sistema único, é logicamente anterior a qualquer problema que envolva mais de um sistema. Por essa razão, consideramos que a solução para o problema da indistinguibilidade deve derivar de uma resposta adequada ao problema da contextualidade, como uma de suas consequências.
Como enfatizamos, o problema da contextualidade é o que nos conduziu a descartar a ideia de um feixe de propriedades-caso atuais e a conceber os sistemas quânticos como feixes de instâncias de propriedades-tipo. Essa visão traz a vantagem de ser imune ao desafio representado pelo teorema de Kochen e Specker, já que este teorema não impõe restrições às propriedades-tipo. Porém, isso leva a aceitar que os sistemas quânticos não são objetos individuais; são, estritamente, feixes, e não há princípio que lhes permita serem incluídos dentro da categoria de objeto. Portanto, o Princípio da Identidade dos Indiscerníveis, de Leibniz, não se aplica a eles; dois sistemas quânticos concebidos como feixes podem coincidir em todas as suas propriedades e, no entanto, continuarem sendo dois sistemas, apenas numericamente diferentes.
No contexto dessa imagem, então, a indistinguibilidade não surge como consequência de uma restrição sobre os estados quânticos (simetrização ou antissimetrização), nem devido à adoção de uma teoria de conjuntos não tradicional. A indistinguibilidade se torna uma consequência da estrutura da realidade, resultado de uma simetria interna do feixe obtido a partir da agregação de dois feixes atômicos indistinguíveis. Ainda mais: a imagem de uma realidade povoada por feixes também modifica a compreensão do problema da não separabilidade. Uma vez que se aceita que os feixes-sistemas originais perdem sua identidade no sistema composto, a não separabilidade não pode ser concebida como uma consequência das correlações entre duas partículas individuais em diferentes posições espaciais, devendo ser entendida em termos das correlações entre as propriedades-caso possíveis de um único feixe não individual.
Obviamente, esta proposta não está encerrada em absoluto, pois abre ainda todo um campo de novas perguntas lógico-ontológicas. Sabemos que qualquer sistema de lógica implica uma ontologia. De fato, nossa imagem ontológica não parece adequadamente capturada por nenhuma teoria formal cujos símbolos elementares sejam variáveis individuais que se referem a objetos, enumeráveis ou não. Isso nos lembra da visão de Brouwer, segundo a qual a lógica está subordinada à matemática: na perspectiva intuicionista, a matemática é fundamental, pois surge da intuição da sucessão no tempo; a lógica depende da matemática na medida que é uma codificação da atividade construtiva dos matemáticos. A situação no intuicionismo pode servir para entendermos, por analogia, o caso da ontologia proposta aqui: a ontologia modal-hamiltoniana é fundamental, não depende de um sistema lógico. Pelo contrário, a lógica apropriada deve ser selecionada a posteriori, com base em sua capacidade de expressar a estrutura dessa ontologia específica. Em particular, uma ontologia povoada por feixes de instâncias de propriedades-tipo requer uma “lógica de predicados” no sentido do “cálculo de relações” proposto por Tarski (1941), onde as variáveis de indivíduo estão ausentes. É claro que o desenvolvimento de tal sistema de lógica está muito além do alcance do presente artigo, mas é tarefa que merece ser considerada num trabalho futuro.
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Newton A. C. da Costa é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
Olimpia Lombardi pesquisadora do CONICET, Universidad de Buenos Aires, Argentina.
Mariano Lastiri pesquisador do CONICET, Universidad Nacional de Tres de Febrero, Buenos Aires, Argentina.
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