Manifesto Cósmico
Jamais, jamais concluir uma paz com o dogma
(Hegel)
Somente quando colocamos a Cosmologia na frente de nossas intenções de dialogar com a natureza, aceitando seu efeito desestabilizador do pensamento tradicional da física, eliminando assim o nevoeiro que envolve o discurso formal da ciência fixado pelas práticas que configuraram a sociedade, é possível enxergar com clareza as consequências da aceitação de que a verdadeira ciência fundamental é histórica. É compreender o alcance revolucionário dessa historicidade que trataremos.
Parte I: A questão
- Até aqui a ciência tem tido sucesso na construção de uma estrutura formal capaz de produzir tecnologias geradoras de transformações do cotidiano da sociedade. Em particular esse projeto permitiu pensar a construção de estruturas globais como consequências formais de processos locais. Uma versão sofisticada, mas igualmente idealista, assegurou na prática a convicção de que o todo se produz a partir de suas partes e de algumas circunstâncias específicas. Foi graças a essa ilusão que a ideia de unificação dos processos físicos instalou-se na sociedade dos físicos como um eldorado a ser conquistado. Não como um simples fator simplificador, mas como uma etapa indispensável para a compreensão dos fenômenos observáveis.
- Quando no exercício prático de suas atividades o cientista se restringe a uma conversa com seus pares, a ciência progride como esquema conservador. Somente quando ela é levada a dialogar com a natureza seu espírito revolucionário aparece. (Para aqueles que não convivem com a prática cotidiana do fazer ciência, essa sentença parece incoerente, pois não deveria ser sempre assim a prática científica? No entanto, a estrutura política da organização científica exige um afastamento de fato daquela prática.)
- Existe uma crença generalizada segundo a qual uma ideia hegemônica quando aparece no interior de uma dada ciência deve ser entendida como uma verdade, provisória certamente, mas como uma certeza que transcende a simples opinião e que é típica dessa atividade de investigação da natureza exercida pelos cientistas. No entanto, nem sempre é assim. Podemos apontar exemplos em várias áreas. Um caso típico encontramos na análise da origem explosiva do universo como descrito na cosmologia da segunda metade do século XX. A comunidade científica aderiu de modo quase leviano ao pensamento único segundo o qual teria havido um momento de criação do universo ocorrido há uns poucos bilhões de anos. Esse cataclismo cósmico único ficou conhecido, por sua enorme repercussão na mídia, pela expressão big bang.
O termo “aderiu” é usado propositadamente para enfatizar seu caráter não-científico. Os detalhes dessa adesão e as razões pelas quais a comunidade científica internacional se deixou seduzir por essa ideia podem ser encontrados nos livros citados ao final.
É preciso, no entanto, esclarecer uma confusão que foi sistemática e ostensivamente propagada referente ao big-bang pois ele possui duas conotações bem distintas. Em sua utilização técnica, entre os físicos, ele significa a existência de um período na história do universo onde seu volume total estava extraordinariamente reduzido. Consequentemente, a temperatura ambiente era extremamente elevada. Isto é um dado da observação apoiado em uma teoria bem aceita. Praticamente todo cientista da área considera correta essa explicação pois ela permite entender um número grande de observações astronômicas. Um segundo uso, agora mais ideológico, para o mesmo termo big-bang, requer sua identificação à existência de um momento de criação, singular, para o universo. Durante as últimas décadas essa segunda interpretação se espalhou pela sociedade exercendo uma função que ocupou o espaço imaginário da criação do mundo, até então controlado pela religião. E, no entanto, tratava-se de uma hipótese de trabalho travestida em verdade científica.
- Nós só reconhecemos uma só ciência: a ciência da história, afirmam Marx e Engels em A ideologia alemã. Como entender essa sentença no interior da atividade científica, na física, por exemplo? Somente aprofundando uma autocrítica que permita exibir as origens de sua refundação na cosmologia – a ciência histórica por excelência. Não exclusivamente baseada na aceitação da variação temporal do volume total do universo, mas por outros indícios esclarecedores, como a existência de processos de bifurcação.
- É verdade que essa historicidade foi alardeada aqui e ali, por diversas vezes. A proposta recente mais atraente se deveu a Prigogine, que deu um passo nessa direção propondo uma aliança formal entre as diversas ciências e as humanidades. No entanto, sua extensão foi tímida por não ter incluído em sua análise a cosmologia mas sim apoiando-se exclusivamente em processos descritos na física e na química, ciências locais. Somente ao consideramos a cosmologia e sua função desestabilizadora é possível enxergar com clareza a amplitude do conceito de que a ciência fundamental é histórica.
- Imaginar que as leis da física são eternas e imutáveis, dadas por um decálogo cósmico é ter uma visão a-histórica dos processos no universo. Somente introduzindo a dependência cósmica das interações é possível retirar qualquer resquício de irracionalidade na descrição dos fenômenos na natureza e afirmar a força do modo científico de pensar o mundo. É ingênuo pensar que no século XX se tenha introduzido a função histórica na cosmologia somente porque se conseguiu (a partir de interpretações especiais de dados astronômicos) caracterizar a dinâmica gravitacional como processo de expansão do universo, negando o imobilismo cósmico do primeiro cenário cosmológico proposto por Einstein. A dependência das leis da física ao processo de evolução dinâmica do universo retira o conteúdo principal que orientava os cientistas na busca da unificação das leis físicas entendidas então como fixas e imutáveis. A cosmologia enfraqueceu essa paz racional aceita até então como natural e definitiva.
- Os físicos não consideraram aquela afirmação de Marx e Engels seriamente porque a quase totalidade dos cientistas acreditavam que aqueles filósofos estavam se referindo às questões humanas, o território natural da historicidade. A física, a ciência da natureza por excelência, sempre foi associada a uma prática que lida com processos que não se submetem à evolução e transformação que aquela asserção sub-repticiamente remete. No entanto, há argumentos sólidos segundo os quais aquela sentença pode efetivamente ser aplicada igualmente à física. Como é isso possível?
- As leis da física são ”para sempre”? Talvez fosse importante esclarecer ao leitor que ao tratar das mudanças das leis da física não estou me referindo àquelas alterações que fazem parte natural de seu procedimento de conhecimento. Sabemos que as leis de Newton, por exemplo o seu cenário espaço absoluto e tempo absoluto, foram alteradas por Poincaré e Einstein. Esses não mostraram que Newton estava errado, mas sim limitaram o alcance de sua descrição da natureza. Esse procedimento, essa correção de rumo, é corriqueiro em todas as atividades sociais, e diz respeito, não ao objeto de exame, a natureza, mas sim à condição humana. Não é dessa historicidade de representação do real, que estou me referindo, mas sim da alteração das leis da natureza como intrínseca ao cosmos.
- As necessidades do sistema econômico moderno não requerem essa historicidade, mas não lhes têm hostilidade, pelo menos enquanto ela não inibir o modo de produção da ciência. Pois, na visão utilitarista dominante, o que se quer da ciência é o fundamento que permite o desdobramento de novas técnicas capazes de gerar tecnologias, produtos. É assim que a prática dos cientistas é conduzida sub-repticiamente à sujeição aos modos de dominação capitalista.
- A alienação não se encontra na atuação formal no interior da atividade científica, nem em seus modos sociais, mas sim no próprio fazer ciência, na elaboração de novas questões, dos caminhos para sua solução e principalmente no abandono da prioridade maior dos cientistas: a pura curiosidade.
Parte II: O universo solidário
- Até muito pouco tempo a microfísica e, de modo mais amplo, a física terrestre eram pensadas fora do contexto cósmico. Elas pareciam não necessitar de explicação ulterior, eram tratadas como sistemas autorreferentes, sem admitir qualquer forma de análise extrínseca para constituir uma razão auto-consistente. No entanto, nas últimas décadas a cosmologia invadiu abruptamente esse domínio tranquilo do pensamento positivista dominante e destruiu a paz racional daqueles que acreditam que a Terra, os homens, possuem um papel especial no universo.
- Essa interferência cósmica sobre a física local não deve ser entendida como a substituição de uma razão absoluta por outra razão absoluta. Não se trata de trocar o absolutismo associado ao caráter universal da física local pelo absolutismo de uma física global. A questão é um pouco mais complexa. O matemático A. Lautman faz uma bela síntese do que está em jogo em seu livro Essai sur les notions de structure et d´existence en mathématiques. Ao examinar a dicotomia local-global ele propõe uma alternativa extremamente interessante com consequências tentaculares, referindo à possibilidade de produzir uma síntese orgânica entre diferentes teorias matemáticas que tratam das conexões local-global e que escolhem o predomínio de uma sobre a outra. Lautman argumenta que é preciso estabelecer uma ligação poderosa entre a estrutura do todo e as propriedades das partes de modo a que se manifeste de modo claro e preciso nessas partes a influência organizadora do todo ao qual elas pertencem. Esse ponto de vista, que parece adotar ideias e programas retirados seja da biologia seja da sociologia, pode aparecer na matemática como um procedimento de síntese. Para isso deve-se abandonar o programa de Russel-Whitehead de reduzir a matemática a estruturas lógicas atomísticas; como também a visão de Wittgenstein e Carnap segundo a qual as matemáticas nada mais são do que uma linguagem indiferente ao conteúdo que elas exprimem. De modo semelhante ao que ocorreu na cosmologia relativista na última década com o abandono da axiomatização Penrose-Hawking, que foi estruturada para dar apoio à identificação da existência de um momento único de criação do universo separado de nós por um tempo finito.
- Em artigos posteriores iremos nos estender sobre esse caminho que Lautman propôs. Aqui, serve somente como citação, como um exemplo de análise do que está acontecendo no território da cosmologia, para apontar que essa questão transcende nosso plano de exame das questões da física e constitui, em verdade, uma área de reflexão em diversos territórios do conhecimento. Ou seja, uma vez mais, nos deparamos com limites incertos de uma questão bem definida em um território que permite uma análise especial em outro território. Embora distintas, essas questões tratam de algo que aproxima os diferentes modos de compreensão da realidade e que constituem o conjunto das ciências, da natureza e humanas. Exemplos concretos dessas ideias têm sido examinados nos últimos anos.
- Como disse recentemente, isso coloca a todos nós, físicos, cosmólogos, pensadores de outras áreas, como grandes companheiros em uma caminhada maravilhosa rumo à compreensão do universo, tendo por base a ideia de que a natureza possivelmente está ainda em formação. Não somente em processos e fenômenos, mas na constituição de suas próprias leis.
- E surge então a questão, que examinaremos em outro número de Cosmos e Contexto, como mudam as leis? Mas um comentário aqui se faz necessário. A estabilidade das leis da física observadas em laboratório terrestre decorre do fato que sua dependência temporal envolve tempos cósmicos. Isso significa que somente olhando o universo em grande escala podemos observar esse processo de modificação. Exemplos importantes para detectar essa evolução seriam a análise da nucleossíntese – que determina a abundância dos elementos químicos no universo -bem como o exame dos processos que deram origem ao excesso de matéria sobre antimatéria, fenômenos excepcionais, que ocorreram em um estágio extremamente denso do universo, nos primórdios da atual fase de expansão.
Parte III: Aparências
- A questão inicial envolve o status do princípio reducionista, tão importante para os físicos. Esse princípio, que ao longo do século XX teve um sucesso extraordinário, pretende que qualquer processo na natureza, qualquer sistema, independentemente do grau de sua complexidade, pode ser explicado a partir da redução a seus elementos fundamentais, conforme, por exemplo, aqueles descritos pela física microscópica. Aplicado esse princípio ao universo, concluiu-se, de modo simplista, que não poderia haver nenhum efeito novo capaz de modificar as leis da física a partir da análise global do universo. A única alteração, se houvesse, poderia ser quantitativa, mas não seria qualitativa. Esse princípio dito “do microcosmos para o macrocosmos” foi usado como um guia para o tratamento das questões cósmicas.
- Por outro lado, sabemos do sucesso que teve o alcance da compreensão das propriedades das diferentes substâncias a partir do reconhecimento e da exploração de seus constituintes, de seus átomos fundamentais. A tabela de Mendeleiev trouxe notáveis avanços na compreensão de propriedades comuns a diferentes substâncias. Sem a noção de átomos, de elementos fundamentais a todos os corpos, teríamos grande dificuldade em dar sentido e compreensão para um grande número de processos com que nos deparamos no cotidiano. Esse sucesso, no entanto, foi levado a um extremo que passou a ser não mais um instrumento útil de análise da realidade, mas, ao contrário, um conceito inibidor do pensamento. Passou-se das moléculas aos átomos, e desses aos componentes mais elementares, prótons e elétrons. E, continuando esse procedimento, aos quarks e possivelmente outros constituintes fundamentais. O reducionismo a componentes elementares foi entendido não como uma tentativa de compreensão baseada em observações, mas sim como uma prática de pensamento que deveria desempenhar o papel de uma super lei, à qual toda e qualquer proposta científica deveria se submeter: como se fosse uma verdade isenta de crítica ulterior.
- Descartar a importância da ação de processos de natureza global que não podem ser compreendidos pela justaposição de processos elementares foi certamente um retrocesso no caminho desbravador dos astrônomos que desde o século XVI iniciaram a revolução científica e estabeleceram a ciência moderna. No século XXI, graças ao aperfeiçoamento de poderosos instrumentos capazes de aprofundar um novo olhar para os céus, pode-se produzir modos inesperados de compreender e reestruturar as leis da natureza. Assim, astrônomos e cosmólogos estão uma vez mais criando condições para o surgimento de uma profunda mudança no modo científico de descrever a natureza.
Parte IV: Práticas
- Podemos aprender com a história das ideias as enormes dificuldades que o programa de autocrítica da ciência que estamos descrevendo inevitavelmente se defronta.
- Essa proposta desqualifica a ideia de que o conhecimento científico se identifica como a perseguição à descoberta da pedra de Roseta dos processos físicos – um tradutor automático das leis da natureza e suas representações — uma ilusão que sustenta ideologicamente muitos procedimentos científicos. Curiosamente, a eficácia desses procedimentos independe dessa ideologia.
- Entramos então no território da cosmologia. Mas do que vimos acima, não devemos nos satisfazer com a extensão automática da física aos confins das galáxias, mas sim empreender o caminho percorrido pelo universo para que nele pudéssemos estar. O homem não pode deixar de considerar seu ponto de vista como extremamente relevante, produzindo sua história. Ao mesmo tempo deve colocar sua presença no cosmos como acidental, não como essencial, pois caso contrário cederia a um processo de “auto-adulação” da espécie, uma extensão do conceito individual introduzido por Flavia Bruno.
Parte V: Antecedentes
- Uma ciência como a cosmologia, não vem à cena social como no estabelecimento de uma ordem política, mas sim como um saber. É desse território que ela envia mensagens interpretadas como ordens e de onde se extrairá consequências para atuar sobre a ordenação social. De braços dados com outros saberes científicos, oferece, gratuitamente, verdades.
- Devemos refletir sobre essa gratuidade e sobre essas verdades. Precisamente porque elas constituem o substrato que permite a condução do pensamento formal e, nos tempos atuais, a geração de uma forma definitiva (e, no entanto, paradoxalmente, mutável) da quase totalidade das certezas que compõem essa rede invisível, mole, líquida, que permeia os compromissos sociais e que controlam sub-repticiamente nosso ser político.
- É com base nessas premissas que esse manifesto foi elaborado e que decidiu-se torná-lo público, concluindo sua redação ao longo dos próximos números, desenvolvendo as propostas e demonstrações que ele exige.
- Precisamos esclarecer algumas premissas e hipóteses que constituem o pano de fundo onde se desenvolve essa crítica, ou melhor, onde decidimos empreender esse diálogo que permite entender o modo real de fazer ciência. Sendo nós mesmos cientistas, a primeira questão que deve ser esclarecida é essa: devemos considerar esse movimento como uma autocrítica ou podemos permitir àqueles outros, os não-cientistas, julgamentos ao nosso funcionamento? Podemos deixar penetrar em nosso território críticas que não foram estabelecidas em nosso campo de ação? Que talvez nem aceitem nosso modo de escolher aquilo que é importante e merece ser tema de nosso diálogo? Ou devemos aceitar somente dissensões internas, que muitas vezes são vistas pelos do lado de lá, por aqueles que acreditam na ciência e não a questionam (talvez por se sentirem incompetentes para isso) como teimosias de quem (ainda) não possui “o verdadeiro conhecimento”? Como podemos exibir críticas internas que tendem a diminuir o poder acumulado ao longo dos séculos pela atividade científica?
- A história da ciência tem repertoriado um grande número dessas batalhas internas. Mas elas, quase sempre, são vistas como um momento necessário, uma passagem inevitável rumo ao conhecimento. Esse processo é corriqueiro, quase trivial, mesmo que seja associado a uma formidável batalha formal. Mas não é disso que queremos tratar aqui, e como veremos, a razão principal se deve à especificidade da cosmologia.
- A cosmologia está se tornando (ou melhor, voltando a ser, depois de um longo período mecanicista, ideologicamente voltado para a formalização determinista do mundo) um território de reflexão e refundação do pensamento. É ali que se encontra hoje – como em seu primeiro movimento quando os astrônomos há mais de trezentos anos, fundaram a ciência moderna – novos modos de pensar a natureza. É talvez por isso que no encontro Humanidades, realizado no Forte de Copacabana, durante a conferência Rio + 20, o pensamento ecológico foi procurar no cosmos sua fonte de inspiração, querendo entender quem somos, que mundo é esse, como esse universo se estruturou, em qual direção e suas alternativas.
- Vimos a extensão desse movimento no reconhecimento de que devemos ultrapassar a ideia antropocêntrica e simplista de que para entender o universo devemos antes interrogar a nós mesmos. O pensamento cósmico está na base dessa reflexão sobre a humanidade. Não devemos restringir nosso olhar para a Terra e nossa vizinhança. Mas também é importante não esquecer que existe somente essa Terra como nosso habitat, não é fechando o olhar para o mundo sublunar que podemos produzir alguma sentença significante sobre a existência do universo.
- No passado, as religiões olhavam para os céus e de lá traziam verdades e leis rígidas a serem seguidas. Seus sacerdotes possuíam o poder como consequência de seu saber ao intermediar o homem e o universo. Agora, que a ciência se apoderou do saber sobre o universo foi possível dispensar os antigos intermediários. No entanto, não deveríamos substituir antigos sacerdotes por novos. Não deveríamos trocar sacerdotes por cientistas para exercer essa função.
- Ao lançar uma ponte com duas direções entre a cosmologia e outros saberes estamos tentando evitar essa atração, esse terrível desejo humano de ser, ao mesmo tempo, escravo e senhor.
- Os caminhos que antecederam o Manifesto deverão ser esclarecidos na preparação de sua compreensão. O que esperamos dele? Quais as motivações que levaram à sua formação? Por fim, não devemos esquecer de pôr em evidência a questão da técnica e o modo pelo qual alguns filósofos, como Heidegger, estabeleceram a conexão que provoca a dependência de nossa visão do mundo dessa técnica.
- Não nos interessa as razões que são chamadas para intermediar o modo pelo qual os físicos tentam desqualificar o papel fundamental da cosmologia enquanto refundação da física. Importa sim seu papel como um modo de ser da desqualificação da refundação como um procedimento técnico, formal.
- Não podemos aceitar a redução imposta pela sociedade dos físicos de caracterizar a cosmologia como nada mais do que uma física extragaláctica (com possíveis alterações, convencionais ou não) ou seja, a aplicação das leis da física construídas nos laboratórios terrestres e em sua vizinhança, ao universo. Consequentemente, atribuindo àqueles que pretendem associar a análise do universo além da simples aplicação formal das leis da física como possuindo uma orientação externa, além da ciência, metafísica — como se isso servisse para uma acusação desqualificante. Em verdade esse procedimento tem por função disfarçar aquilo que nos anos de fundação, na década de 1920, era entendido como a questão cosmológica, querendo com esse termo enfatizar o aspecto problemático da aplicação da física ao universo.
- A cosmologia teve um sucesso enorme nos últimos anos e a mídia não cansa de exibir seus efeitos exuberantes, um show de pirotecnia a partir da seleção de catástrofes cósmicas.
- Nuccio Ordine em seu Manifesto, parte literata desse nosso, fala da utilidade daquilo que é inútil. Seria esse o destino maior da cosmologia? Procurar as origens do universo é um trabalho de Sísifo? Cuidadosamente preparado para não ser acabado?
- Quando, em setembro 2015 nos aproximamos, cosmólogos, literatos, filósofos, físicos, antropólogos, mitólogos, em um encontro que chamamos Renascimentos, nos deparamos com a questão da ética que pareceu ser por onde deveríamos começar nossa caminhada comum. Como um recomeçar. E ali ouvimos os detalhes das razões de sempre apresentar essa atividade como um recomeço. Só assim, entendemos então, porque o cosmos deve ser pensado como um compromisso ético, que Galileu, Newton, Giordano Bruno e outros, no começo histórico dessa caminhada, conscientemente ou não, nos legaram.
Parte VI:Declaração
A auto-crítica que estamos iniciando com esse Manifesto põe em relevo um certo mal-estar que afeta o modo científico de conduzir o pensamento sobre o que existe.
A ciência, sem perder sua intima conexão com a filosofia, deveria servir para libertar o homem à submissão a um projeto único de pensar o mundo. Infelizmente isso não acontece devido ao papel que é atribuído à atividade científica hoje e sua subordinação à técnica na construção do mundo.
A ilusão da configuração pétrea das leis físicas terrestres, a hipótese de sua ilimitada aplicação ao cosmos, sua intima e completa dependência do antropomorfismo que a domina, produzem forças poderosas que impedem na prática a construção dessa liberdade.
Entretanto, a atividade científica, como a identificamos nesse texto, pode preencher essa função libertadora, de modo bastante semelhante ao que, idealisticamente, sonhamos como os pais fundadores da ciência moderna poderiam ter realizado, e em particular na ação prática de Giordano Bruno. Afinal, como estamos caminhando pela mesma estrada, juntamente com filósofos e outros pensadores, não deveríamos nem sequer imaginar que escolhemos diferentes discursos para descrever comentários sobre o mundo.
Parte VII: Processo e historicidade
- A totalidade do volume espacial do universo varia com o tempo cósmico. Há uma dinâmica que carrega as origens do cosmos para um tempo longínquo, possivelmente no passado infinito. Entendemos isso como um processo, com diferentes atores dominando a cena cósmica em períodos de condensação distintos;
- Essa dinâmica é uma evolução. Mas não pode ser identificada com o surgimento da historicidade na física porquanto o cenário convencional, padrão, impõe sua descrição a partir de leis físicas dadas a priori, constantes, imutáveis;
- Processos elementares, como a desintegração da matéria, nesse cenário, são configurações congeladas, fixas, ocorrendo de modo idêntico em qualquer momento da evolução do universo, mesmo quando o universo estava extraordinariamente concentrado, isto é, são fenômenos descritos da mesma forma, tenha esse processo ocorrido há alguns bilhões de anos ou no laboratório terrestre, no CERN ou no Fermilab. Essa univocidade é entendida sob o rótulo de coerência;
- A dependência cósmica dessas interações elementares, como por exemplo, processos de desintegração da matéria, geridos pela interação de Fermi, provoca uma mudança nessa interpretação. Fazer esse processo depender do tempo cósmico é introduzir, ainda que limitadamente, a história no processo de sua análise. É aceitar que o universo deve ser entendido a partir da evolução de suas leis físicas;
- Esse processo de historicidade é brando, ou seja, admite uma descrição em termos formais simples, associados a formalismos conhecidos e que podem ser compreendidos a partir de configurações observadas nos laboratórios terrestres;
- Um exemplo de historicidade dura aparece ao entendermos que os fenômenos a serem descritos, associados à evolução da estrutura métrica do espaço-tempo, possui bifurcações;
- A origem formal para isso se encontra no caráter não-linear das equações da interação gravitacional que descrevem esses processos;
- Ao mesmo tempo, esse caráter não-linear permite entender a autocriação do universo;
- Dito de outro modo: não é necessário sair da análise do universo físico para entender sua origem, pois um processo não-linear não requer uma fonte externa que lhe dê origem;
- Ou seja, esse universo auto-criado, não necessita um agente externo para provocar sua existência.
- É a partir dessas considerações, baseados nessas análises de evolução do universo e de suas leis básicas que desenvolveremos a autocrítica aqui iniciada.
Parte VIII: As questões
Tratava-se, ao começo, de verbalizar o que pode e o que não pode ser dito e, a partir do discurso científico, enumerar questões que parecem fantasiosas ou são entendidas como associadas a processos irrealizáveis, isto é, utopias controladas. Ideias que ainda que pertençam a um sistema formal correto, decorrente de uma teoria em vigência, são abandonadas por sua aparência fantasiosa, estranha, entendidas até mesmo como incoerentes, graças a uma leitura antropocêntrica baseada na identificação completa da natureza física com a natureza humana, ignorando os diversos níveis de complexidade e de organização que constituem obstáculos reais para isso. A origem das dificuldades dessa identificação, bem como a impossibilidade de tratar todos os processos – da microfísica ao universo – a partir da utilização do dialeto newtoniano, o modo de descrever a realidade pela linguagem da física clássica, gerada nos tempos de Newton e seus companheiros, a linguagem cotidiana, pode ser compreendida ao reconhecermos o erro em sua extrapolação que lhe atribuiu um caráter universal e absoluto. Aparecem então linhas de investigação que apontam para questões que não são resolvidas dentro do cenário convencional e são então qualificadas como utopias, associadas por exemplo, às sentenças que seguem.
Parte IX: Utopias controladas (o que não pode ser dito)
- É possível que tenha havido (o uso temporal aqui é indevido) outros mundos;
- É possível que o universo esteja ainda em formação ou seja inacabado;
- As leis da física não são imutáveis. A dependência cósmica das interações exige uma nova forma de entender a evolução do universo;
- Essas variações permitem mapear diferentes domínios espaço-temporais do cosmos;
- Limitar nossas considerações sobre o universo a regiões causais constitui uma limitação formal que fora de um dogmatismo absolutista nenhum cientista pode justificar, como nas estruturas acausais de Godel;
- Comentários sobre as origens no infinito passado do universo;
- Análise de bifurcações no cosmos e as consequentes alterações na causação ao longo da evolução do universo gerando sua historicidade;
- O vazio cósmico e buracos brancos injetando matéria nova no universo;
- O cosmos como um processo aberto, território de encontro das diversas formas criadas para refletir, entender, produzir a realidade.
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Referências
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