Trecho do “Livro na borogodança”
Aqui também se faz marxismo, fenomenologia, existencialismo, positivismo etc., mas, quase sempre, o que se faz é divulgação (…). É incontestável, assim, que não há no Brasil um conjunto de obras filosóficas que componha um sistema ou uma tradição autônoma.
Bento Prado Jr.[i]
A filosofia no Brasil é colonizada. Podemos inferir que a influência dos jesuítas é marcante para a situação da (não apenas dessa) colonização, bem como os primeiros departamentos de filosofia na década de 30 e mesmo os seguintes, seguiram uma organização bastante voltada aos mestres estrangeiros[ii], cujas teses mostram que, de um modo geral, os orientadores não estimulam seus alunos a pensarem por conta própria. Nos últimos tempos, a filosofia africana também tem encontrado muitos adeptos que a reproduzem com orgulho por aqui, como se fosse algo inovador e não mais uma escola a garantir seus exegetas.
Quando verificamos a tentativa de se fazer uma história da filosofia do Brasil[iii] ou até mesmo quando alguém se predispõe a sugerir condições para que uma filosofia genuinamente brasileira emerja, continuamos a perceber o mesmo problema: “o filósofo brasileiro, capaz de voos tão mirabolantes no tempo e no espaço, capaz de pensar o século XIII ou as cosmovisões europeias, não é capaz, pela armadura na qual se encontra, de enxergar um palmo diante do nariz. Este mesmo “pensador” não é capaz de cobrar um escanteio ou dançar um samba” [iv] . Em seguida, são identificados os dois principais empecilhos à criação de uma filosofia genuinamente brasileira: A Razão Ornamental (com pitadas de malandragem local, excesso de eloquência, adesão aos modismos europeus, sem assumir uma singularidade) e a Razão Afirmativa (que sacraliza o passado, citando inúmeros autores estrangeiros, sem radicalizar). Ainda há outro diagnóstico mais terrível: “ser culto, no Brasil, é avolumar erudição sobre um outro, o não brasileiro” e “o pensamento produzido pela Razão Ornamental é essencialmente servil”. No entanto, também há uma proposta de resolução de tal carência: “A condição prévia a qualquer filosofia brasileira que não queira se ver reduzida, como tem acontecido até hoje, à mera assimilação ornamental e dependente – úteis tão só a brilharecos verbais diante de um povo adormecido – é fazer desabar as instalações sérias nas quais vive.”
Se os próprios filósofos chegam a um mesmo diagnóstico, vale trazer exemplos que são exceções que confirmam a regra.
A primeira delas é Mário Ferreira dos Santos, formado em direito, mas com uma imensa e original produção de filosofia. Mário é uma daquelas biografias sui generis: provavelmente ele tenha sido, quando criança, o primeiro ator de cinema brasileiro, no curta dirigido pelo seu pai[v]. Ao se interessar por filosofia e não encontrando títulos suficientes no Brasil, Mário se propôs a redigir manuais e traduzir do original, incluindo os gregos antigos, livros clássicos, o que o levou a receber uma doação para elaborar uma editora de sucesso: com tudo isso, ele ainda cria seu próprio sistema filosófico, a filosofia concreta[vi].
O nome pode enganar, “filosofia concreta” não tem nada a ver com o prodigioso movimento concretista, mas na etimologia de “concreto”, que pororoca com concrescência, ou “crescer junto”. Mário se propõe a ontologizar a lógica da Escolástica, realizando uma curiosíssima pororoca de cristianismo e anarquismo.
É divertido observar a disputa da direita e da esquerda no Brasil pela filosofia concreta: a primeira minimiza o anarquismo de Mário e a segunda quer problematizar o estatuto de “revelação” de sua obra. Nos resta dizer que o anarquismo de Mário deve ser sim levado em conta, e que a apreensão da Consciência Caótica, ainda sem estabilidade, pode e deve ser sempre aprimorada, como se vê no caso esplêndido do matemático indiano Srinivasa Ramanujan, que segundo o próprio, recebe a inspiração de suas formulações matemáticas da deusa hindu da Prosperidade, Lakshmi, mas que é forçado a desenvolver provas matemáticas dessas formulações para o mundo acadêmico.
Outro autor que se propôs a fazer grandes sínteses e a partir delas gerar um novo pensamento, a lógica hiperdialética, foi o engenheiro Luiz Sergio Coelho de Sampaio[vii]. Apesar do nome lógica hiperdialética, Sampaio não produz uma obra de lógica formal, alimentando-se intensamente da filosofia. Ele se propõe a identificar vários tipos de “lógicas” ao longo da história, localizando-as em algumas correntes mais importantes da filosofia, recombinando dois tipos principais, que seriam a lógica do outro e a lógica do mesmo, chegando na lógica hiperdialética, em que o brasileiro estaria mais apto a realizá-la. Sampaio chega a cogitar uma lógica de Deus, mas ainda é uma combinação das lógicas anteriores, em uma progressão mais ampla, o que revela a taxonomia excessiva que engessa sua obra.
Se na filosofia de Mário Ferreira dos Santos encontramos mais vigor e consistência, apesar de ainda totalmente voltada ao estrangeiro, em Sampaio há uma relação mais profunda com a ciência[viii] e uma clara preocupação com a brasileiridade[ix].
A brasileiridade profunda, ao que parece, se recusa a pensar tal qual se pensa na Europa ou em outro lugar do planeta. É preciso pensar, segundo vimos, e ao mesmo tempo dançar, jogar, experimentar, improvisar etc. Talvez a filosofia aos moldes europeus só se adapte bem para aqueles que negligenciem as pulsações locais, fazendo ecos com os conceitos produzidos alhures. Pororocar com as pulsações locais é um dos principais ingredientes da borogodança.
Mesmo quando as ditas “ciências humanas” europeias, em seu ápice, desesperadas devido à consciência de seu limite, se perguntando acerca da presença – inspiradas por um brasileiro – e concluindo, parcialmente, que isso seja algo próximo da teologia[x], percebem que ainda estão distantes do que tratamos aqui.
É justamente uma filósofa brasileira, professora em universidade europeia, tradutora de filósofos estrangeiros no Brasil e de escritores brasileiros na Europa, que vai reconhecer o quanto a brasileiridade vai avançar além da filosofia: “a visão do gerúndio do tempo e da existência em Clarice faz aparecer, em Heiddeger e Blanchot, esboços de um pensamento sobre o presente em ato que, no entanto, só ela conseguiu pensar e escrever”[xi].
De fato, a obra inigualável de Clarice Lispector chega a extremos literários, filosóficos e mesmo espirituais, nunca vistos. Seu Água viva leva o romance a uma zona de instabilidade inédita, de modo que para nós, é um livro que relata a apreensão da Consciência Caótica por ela, mas saindo da afetação que um sábio ou “iluminado” apresenta, de forma estereotipada. Clarice não se mantém exatamente no discurso “espiritual”, ficando, em suas palavras, “à margem da beatitude”[xii], cunhando, ao seu modo, impensamentais (capítulo 2): “A beatitude começa no momento em que pensar-sentir ultrapassou a necessidade de pensar do autor – este não precisa mais pensar e encontra-se agora perto da grandeza do nada. Poderia dizer ‘tudo’”. Ela segue na criação de narrativas, mas notamos um crescente apuro na capacidade de escrever o ato de escrever: “eu te invento, realidade”.
O que caracteriza tamanhas singularidades criativas brasileiras, sejam elas nas artes, na espiritualidade, na produção conceitual? Nossa aposta é o borogodó.
Referências
ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação, v. 46, 2023, Edição Especial 1. Disponível em https://www.scielo.br/j/trans/i/2023.v46nspe1/. Acesso 31/08/2023.
DOMINGUES, I. Filosofia no Brasil: Legados & perspectivas: ensaios
metafilosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
FELINTO, E. O Cartógrafo sem Bússula: Vilém Flusser, prolegômenos a uma Teoria do Pensamento Líquido. Porto Alegre: Sulina, 2022.
FLUSSER, V e BEC, L. Vampyroteuthis Infernalis. São Paulo: Annablume, 2011.
GOMES, R. Crítica da razão tupiniquim. São Paulo: Editora FDT, 1990.
GUMBRECHT, H. U. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio, 2010.
LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.
MACIEL, L. C. Underground. São Paulo: Edições Sesc, 2022.
PRADO JR., B. “O problema da filosofia no Brasil”. Disponível em http://www.jcrisostomodesouza.ufba.br/O_PROBLEMA_DA_FILOSOFIA_NO_BRASIL.pdf. Acesso em 14/07/24.
SAMPAIO, L. C. Filosofia da cultura – Brasil: luxo ou originalidade. Rio de Janeiro: Editora Ágora da Ilha, 2002.
SAMPAIO, L. C. Física moderna. Rio de Janeiro: Editora H. P. Comunicação, 2005.
SANTOS, M. F. Filosofia concreta. São Paulo: Editora Filocalia, 2020.
SCHUBACK, M. S. C. Atrás do pensamento: a filosofia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
SILVA, V. F. Transcendência do mundo: obras completas. São Paulo: É Realizações Editora, 2010.
[i] Bento Prado Jr., O problema da filosofia no Brasil.
[ii] Até mesmo o filósofo brasileiro predileto dos tropicalistas, Luiz Carlos Maciel, conhecido por ser “o guru da contracultura”, se pautava por autores estrangeiros, ainda que tenha o mérito de escrever sobre e influenciar o movimento tropicalista e suas pororocas.
[iii] Ivan Domingues, Filosofia no Brasil.
[iv] Roberto Gomes, Crítica da razão tupiniquim.
[v] Trechos recuperados do curta “Os óculos do vovô” (1913), de Francisco Santos, podem ser assistidos no link: https://www.youtube.com/watch?v=V6VA7PjImqc.
[vi] Mário Ferreira dos Santos, Filosofia concreta.
[vii] Luiz Sergio Coelho de Sampaio, Filosofia da cultura.
[viii] Luiz Sergio Coelho de Sampaio, Física moderna.
[ix] O tema deste livro não pede uma digressão ampla acerca da filosofia brasileira, pois seria necessário ainda comentar as obras como as dos membros do Grupo de São Paulo: Vicente Ferreira da Silva, professor de Oswald de Andrade, que, com sua obra, com traços anarquistas e um pouco sensível a temas brasileiros, vai propor uma curiosa inversão, colocando a filosofia (aórgica) como inferior ao mito, o checo-brasileiro Vilém Flusser, que antecipa alguns dos temas pós-modernos e é uma das principais inspirações para a recente Teoria do Pensamento Líquido, de Erick Felinto, entre outros. Há um novo movimento que expressa esforços de se constituir uma filosofia autoral no Brasil de modo mais plural, como a edição especial da revista Trans/Form/Ação, da Unesp, organizada por Marco Antônio Alves, que se dedica ao tema da filosofia brasileira original. No entanto, se há, de fato, certa originalidade na criação conceitual em alguns filósofos brasileiros contemporâneos, ela não é, em sua maioria, alimentada pela brasileiridade, ainda muito orientada por temas e autores estrangeiros, o que, se por um lado não é indesejado, por outro ainda é limitante, tanto nos temas como no exercício de se produzir novas sintaxes de pensamento e ir além.
[x] Hans Ulrich Gumbrecht, Produção de presença.
[xi] Marcia Sá Cavalcanti Schuback, Atrás do pensamento.
[xii] Clarice Lispector, Água viva. É curiosa a recorrência de termos spinozistas em Água viva, tais como liberdade, beatitude e alegria. Se prevalece uma imagem de Clarice um tanto soturna, a recente popularização de uma entrevista, feita por amigos para o Museu de Imagem e do Som, mostra uma Clarice muito mais exuberante: “Pelo contrário, eu era tão livre, não sei nem explicar. E excessivamente sensível, por qualquer coisa eu chorava. E ria, ria como uma doida”.