Kurt Gödel: Desconstrução da Causalidade
Le temps s’ habille de mystère.
Francis Lai (do filme Un homme et une femme (1965), Claude Lelouch)
Meu interesse em apresentar o modelo de universo elaborado por K. Gödel está relacionado ao fato de que ele é um exemplo contundente de um cenário cosmológico que não aceita o apriorismo de Einstein quando este postulou a existência de um tempo global. Isto é, nesta geometria – solução exata das equações de Einstein da gravitação – a separação do mundo quadridimensional em três dimensões de espaço e uma de tempo não é possivel de ser estendida para todo o espaço-tempo. A comunidade dos relativistas sempre considerou este modelo com grande incômodo. Não é de estranhar que um dos cosmólogos americanos mais famosos, H. P. Robertson tenha se referido em sua intervenção sobre a geometria de Godel, no Funfzig Jahre Relativitatstheorie, na cidade suiça de Berna em 1956, do seguinte modo: “I consider it a defect in the field equations of General Relativity that they allow such a solution”. Isto é, a proposta de Gödel para gerar um movimento capaz de fugir ao quadro convencional da cosmologia foi considerado como um “ defeito teórico” das equações da Relatividade Geral e que deveria ser eliminado, colocado à margem, posto que indesejável!
E, no entanto, eu ousaria dizer que o momento mais original de toda a história da Cosmologia moderna, no que diz respeito ao tratamento da questão do tempo, ocorreu precisamente com a entrada em cena do matemático austríaco Kurt Gödel. Sua temática é tão especial, tão estranha, tão pouco comum que, embora passados mais de cinquenta anos desde sua formulação original, ainda hoje ocupa um lugar de destaque no pensamento científico sobre o Universo. Com relação ao problema do tempo, não seria exagêro afirmar que nada semelhante aconteceu na Cosmologia, nem antes nem depois. Para entender o que é tão singular no ponto de vista de Godel, e porque ele é tão dificil de conciliar com as idéias convencionais, é suficiente limitar-nos a dizer que este modelo cosmológico é o exemplo mais famoso de violação global de causalidade — mantendo, no entanto, em cada ponto do espaço-tempo a causalidade local –sem que nenhuma lei da Física seja desrespeitada. Embora reconhecido imediatamente como incompatível com algumas propriedades observadas, tal como a expansão do Universo, ainda assim desperta enorme interesse na comunidade científica e mesmo além dela, constituindo-se em verdadeiro paradigma da possibilidade de conciliar a ciência com a idéia de caminhos que levam ao passado. A razão para isso se prende a algumas particularidades da proposta de Gödel, no contexto cosmológico que, de imediato, a tornaram especial. A que teve conseqüências mais contundente foi seu abandono, na construção de seu modelo de geometria, do apriosismo paradigmático da existência de um tempo cósmico global. Deliberadamente ou não, essa escolha levou à produção de um cenário de ordem cósmica completamente fora do contexto convencional[1].
O sistema usado para tratar e descrever os acontecimentos no mundo valia-se, desde a descrição unificada feita por Minkowski, no começo do século XX, da separação do mundo na configuração caracterizada por uma estrutura possuindo três dimensões de espaço e uma de tempo. Vimos como o modelo padrão se sustenta precisamente sobre esta separação, dita 3 mais 1, que realiza-se na geometria de Minkowski, graças às propriedades da descrição de uma variedade feita por Gauss. Gödel rompe com esta tradição. Abandona a hipótese de que a Cosmologia deve ser escrita usando-se um tempo cósmico único, global, comum a todos os observadores. Cria assim, um modelo que, embora tendo a mesma distribuição de energia/matéria utilizada na formulação do universo de Einstein e incluindo a mesma constante cosmológica que este havia introduzido – possui propriedades radicalmente diferentes. Dentre estas, a que singularizou este modelo, consiste na existência de curvas do tipo tempo fechadas, e que denota-se pelas iniciais do termo em inglês – closed timelike curves ou CTC. Em outras palavras, caminhos que levam ao passado.
Tempo no universo de Godel
O elemento principal na análise feita por Gödel da questão cosmológica é o tempo. Para ele, o cenário iniciado por Einstein ao demarcar as fronteiras e estabelecer os fundamentos da Cosmologia, tem como objetivo a tentativa de eliminação do tempo da descrição do universo[2]. Por que essa eliminação servia à visão einsteniana do universo? Por diversas razões que tivemos a oportunidade de considerar ao longo desta nossa análise, mas que pode ser sintetizada em uma só frase: trata-se de uma versão científica da argumentação derivada de Platão de um mundo ideal, sem necessidade de movimento. Para onde deveria caminhar um universo perfeito? E por que? Estas questões, latente no cenário colocado por Einstein, são rejeitadas a priori por Gödel. Mas aqui, em sua análise, não se trata de uma observação da Natureza – como a que sustentou o modelo de Friedmann – que toma a iniciativa da crítica ao imobilismo einsteniano. Não. Para Gödel, é a própria estrutura do tempo, independentemente do contexto cosmológico que está em causa e deve ser examinada. Vimos como a formulação de Friedmann, por seu convencionalismo, não avança nesta questão. A descrição do mundo deveria vir a reboque desta orquestração preliminar da ordem temporal do mundo. Como se anunciasse uma crise. Costuma-se argumentar que uma das consequências mais notáveis da revolução conceitual realizada em torno da teoria da Relatividade Especial foi a eliminação do tempo absoluto. A evolução da Cosmologia, a partir da solução de Friedmann, trouxe a possibilidade de uma análise complementar, pelo exame da questão que ela se permite fazer: é esta ciência o lugar onde o tempo absoluto newtoniano adquire uma re-interpretação e recupera sua significância? Seria a Cosmologia, ou melhor, as geometrias associadas aos modelos cosmológicos, o território natural onde aquele absoluto newtoniano voltaria a ser útil ou até mesmo verdadeiro? A maior parte dos cosmólogos ao responder sim a esta questão se apressa a esclarecer que não consideram a opção por um tempo absoluto como um problema, como se fora um retrocesso, pois ele é entendido como nada mais do que isso: uma escolha conveniente, útil e que permite uma descrição dentro do antigo cânone pré-relativista de descrição do Universo.
Revolução dentro da revolução
Gödel executa um novo movimento crítico, uma mudança de paradigma que nem mesmo Einstein havia ousado, e produz uma verdadeira revolução dentro da revolução relativista, indo muito além do que a ciência convencional pode aceitar. Ele começa por arguir que a representação que usa um tempo global pode ser conveniente, mas não deve ser alçada à condição de absoluta e que, ao contrário, deve sair do território nebuloso do apriorismo[3]. Deve-se investigar se seu uso pode ser globalmente possível em qualquer solução das equações de RG-2. Isto é, mesmo que escolhamos localmente uma ordem temporal capaz de exibir – e para todos os observadores – uma distinção clara e operacional entre passado e futuro, mesmo que todos os observadores coincidam na caracterização desta ordem, Gödel se pergunta se é indispensável que a universalidade desta ordenação seja extrapolada para além das observações locais, isto é, seja entendida como global, típica do universo, com todas as consequências que uma tal extrapolação induz. A resposta que êle oferece é não! Enquanto não possuirmos meios materiais para decidir através da observação, todas as diferentes alternativas possíveis, compatíveis com as leis da Física, devem ser consideradas e a estrutura gaussiana de um tempo global – como qualquer outra escolha – deve ser entendida como provisória. É o que Godel nos ensina.
Pequena descrição do universo de Godel
A geometria deste modelo parte da hipótese de que as equações que descrevem o comportamento da gravitação no universo são dadas por RG-2, contendo, como no caso do modelo de Einstein, uma fonte de matéria identificada a um fluido perfeito incoerente (isto é, sem interação entre suas partes) além da resposta global do universo, consubstanciada na expressão da constante cosmológica L. O fluido não mostra dependência temporal, mas possui uma propriedade que o singulariza: ele está dotado de uma rotação local. Isto é, em cada ponto do espaço onde a matéria inerte se apresenta, existe um eixo de rotação em torno do qual a matéria gira. Esta rotação é local, isto é, não se trata de uma rotação global do Universo como um todo, posto que isto seria impossivel de ser observado. A intensidade desta rotação é determinada pela densidade de energia local do fluido. As equações RG-2 impõem uma relação direta entre este valor da rotação e o valor da constante L. Este eixo de rotação local permite associar naturalmente uma direção privilegiada em cada ponto, de tal modo a definir naturalmente um sistema de coordenadas cilíndricas. Podemos então descrever, neste sistema de coordenadas, a situação especial desta geometria. Godel mostrou, analisando o comportamento de uma classe de observadores livres que eles poderiam girar em torno deste eixo realizando uma trajetória fechada sobre si mesmo. O ponto crucial, e que produz toda a estranheza deste modelo, consiste na propriedade de que esta trajetória fechada ocorre na estrutura completa espaço-tempo, isto é, trata-se de uma curva na qual um viajante que por ela caminhasse poderia passar mais de uma vez pelo mesmo ponto. Nesta trajetória, ele poderia realizar a experiência que chamaríamos de “volta ao passado”.
Observadores gaussianos no universo de Godel
Para mostrar que também no modelo de Godel é possivel produzir, para uma classe de observadores especiais, um tempo único, que funcionaria para estes observadores como um tempo cósmico, podemos proceder como o matemático Gauss ensinou, e produzir de modo prático este tempo global. Talvez fosse conveniente nos dedicarmos um pouco a essa questão, para que ela e outras que lhe estão associadas, fiquem mais claramente compreendidas.
Na escolha de um sistema gaussiano de coordenadas, na qual um tempo único e comum é estabelecido, devemos começar por construir a classe de observadores previlegiados que irão utilizar este tempo. Como sobre estes observadores nenhuma força deve ser exercida, pois eles são caracterizados como observadores livres, devemos começar por procurar este conjunto particular de observadores sem aceleração. Vimos que uma tal propriedade é típica de curvas geodésicas. Assim, o primeiro passo consiste em conhecer as curvas geodésicas na geometria de Godel. Ademais, como queremos que estas curvas sejam caminhos reais, pelas quais observadores reais possam se locomover, elas devem ser do tipo-tempo. Realizada esta etapa, escolhida uma classe de observadores especiais, definimos para estes, um tempo único, pela sincronização de seus relógios. A partir desta classe construimos uma estrutura espacial, que nada mais é do que uma mera imitação do que ocorre na geometria euclideana, e como estamos acostumados a fazer na geometria de Minkowski. Segue então que para cada observador pode ser atribuido um tempo (que será o mesmo para todos os observadores desta classe) e, perpendicularmente a esta curva especial no quadri-espaço que caracteriza o movimento destes observadores gaussianos (as geodésicas), associa-se um correspondente espaço tri-dimensional, que chamamos simplificadamente de “espaço”. Dessa forma, um sistema de coordenadas (tempo e espaço) capaz de caracterizar cada acontecimento do mundo, se estabelece. O próximo passo é crucial, pois trata-se de responder à questão: até onde podemos estender, a partir de um dado ponto qualquer P na geometria de Godel, um tal sistema gaussiano de coordenadas? Pois é precisamente neste momento que a geometria de Godel se distancia radicalmente das demais conhecidas. Ao tentarmos realizar a extensão deste sistema, uma análise matemática mostra que ele não pode ir além de um determinado ponto; que ele se interrompe em um dado lugar, que além deste lugar, ele simplesmente torna-se inaceitável como um sistema de coordenadas regular. E qual é este ponto ou conjunto de pontos, além dos quais este sistema gaussiano em Godel não pode se estender? O que ocorre de especial ali e de tal modo que além deste ponto, se encontra um território para o qual este sistema gaussiano, gerado a partir de P, não é mais aplicável? E o que ocorre com este sistema para que deixe de ser aplicável?
Muitas questões, que iremos responder agora. O que impede este sistema de ser extendido além de um raio crítico – que chamaremos de R(P), pois ele depende de cada observador e de cada ponto P onde a caracterização do sistema gaussiano foi estabelecido – é simples de descrever: ele se torna singular, isto é, ele não caracteriza as distâncias entre pontos deste universo por números reais finitos. Tudo se passa como se chegassemos, em R(P), a uma fronteira, além da qual o universo não mais existiria: chegaríamos a uma barreira intransponível, às bordas que delimitariam este universo. Entretanto, não se trata de um impedimento verdadeiro, real, pois nada mais é do que uma propriedade desta particular classe de descrição do universo de Godel. Outras caracterizações, não gaussianas, podem ir além deste ponto crítico R(P). Mas como é isso possivel? O que está afinal de contas, acontecendo naquele ponto? Para melhor e mais facilmente entendermos isso, é conveniente fazermos um pequeno intervalo nesta análise e examinarmos uma situação semelhante – mas bem mais simples – que acontece em uma geometria mais elementar, a geometria de Minkowski. É o que faremos agora.
Geometria de Minkowski, observadores de Rindler
Uma escolha de sistema de coordenadas, isto é, o modo pelo qual se representam os pontos ou eventos no espaço-tempo quadridimensional, é arbitrária. Em geral, alguns sistemaspodem ser estendidos para todo o espaço-tempo, e outros têm seu domínio de aplicação limitado a uma dada região. Esta escolha depende de várias motivações e até mesmo seu alcance pode fazer parte dos critérios desta escolha. Poder-se-ia pensar que a escolha normal fosse aquela no qual o sistema de coordenadas pudesse ser estendido sobre toda a variedade. Entretanto, por diferentes razões, às vezes, é mais conveniente usar uma dada representação, mesmo que ela não seja global, isto é, mesmo que ela possua uma fronteira a partir da qual este sistema não seja mais utilizável. Um exemplo bastante esclarecedor desta situação na qual o sistema de representação usado é restrito a uma parte limitada da geometria é o sistema de coordenadas de Rindler. A origem de um tal sistema está no fato – ditado por alguma conveniência local – de que se escolhe para representar o espaço-tempo, uma classe particular de observadores previlegiados aos quais um sistema de coordenadas está associado, uma classe especial de observadores não-inerciais. Isto é, seleciona-se, por algum critério, um conjunto de observadores. No caso de Rindler, escolhe-se observadores não livres, aos quais uma força é aplicada continuamente, gerando uma aceleração constante. Assim, ao se estabeler um sistema de coordenadas mais adaptado a estes observadores, descobre-se que este sistema só pode descrever um quarto da totalidade do espaço-tempo convencional de Minkowski (ver figura). Neste caso, uma simples inspeção na figura e em sua interpretação, mostra que as fronteiras que delimitam o domínio da validade do sistema de coordenadas de Rindler, são determinados pelo valor máximo da correspondente aceleração.
Geometria de Minkowski, observadores de Milne
Um outro sistema especial de coordenadas foi caracterizado pelo astrônomo inglês Milne. Da figura 2 vemos que ele pode ser entendido como constituindo uma espécie de sistema complementar ao de Rindler, embora sua origem seja totalmente distinta. Com efeito, enquanto os observadores de Rindler constituem sistemas acelerados, e consequentemente não possuem um tempo único gaussiano, a classe dos observadores de Milne constituem observadores inerciais, livres, e que descrevem um só tempo global comum a todos estes observadores. Isto é, como em Godel, este sistema gaussiano é limitado. Mas então, de onde vem o horizonte, esta fronteira que indepede que este sistema cubra todo o espaço-tempo? Para entendermos isso, devemos conhecer o modo pelo qual o sistema de Milne é gerado, como se descreve sua criação, como pode ele ser construido. Com efeito, o sistema de Milne é gerado a partir de um momento arbitrário de criação artificial e formal do espaço-tempo minkowskiano. Tudo se passa, para este sistema de coordenadas como se, a partir de um dado momento previamente selecionado e arbitrário, caracterizado por um valor que convencionamos chamar de tempo zero, uma quantidade infinita de observadores inerciais são hipotéticamente enviados para todas direções, a partir de um ponto central do espaço, escolhido para constituir a origem espacial deste sistema de coordenadas. Assim, a partir deste centro, todo o espaço seria atingido. Entretanto, como os observadores só podem se movimentar para o futuro, o passado deste ponto e, consequentemente todos os pontos que estariam no espaço associado a um tempo anterior ao escolhido no sistema de Milne como seu tempo inicial, não poderiam ser atingidos pelos observadores de Milne. Consequentemente, eles representariam eventos, acontecimentos do passado que estariam fora desta descrição. Entende-se assim, a razão pela qual o sistema de coordenadas de Milne só é capaz de descrever uma parte da totalidade da geometria de Minkowski: trata-se de uma consequência direta do modo de formação deste sistema. Os observadores de Milne ao começarem sua descrição do universo, postulam que toda a história passada está definitivamente apagada para eles, ou, para usar a palavra correta associada a esta definição: este passado não existiu, não pode fazer parte de sua representação do universo. E, no entanto, trata-se de descrever o bem-comportado espaço-tempo de Minkowski. Sabemos que é possivel, escolhendo outra classe de observadores fundamentais, estabelecer um sistema gaussiano completo, capaz de representar toda esta geometria. Isso nos mostra claramente que a limitação do sistema gaussiano de Milne não é uma propriedade inerente ao espaço-tempo que ele descreve, mas sim uma limitação do alcance desta particular escolha de representação.
Sistema gaussiano na geometria de Godel
Depois deste pequeno desvio para entendermos como se estrutura, em geral, um sistema de observadores gaussianos, e como se pode limitar e estender sua descrição, podemos voltar ao caso que nos interessa aqui. Vamos proceder de modo semelhante. Suponhamos que nesta geometria de Gödel um conjunto de observadores geodésicos são enviados para todas as direções a partir de um ponto qualquer 0. Cada um destes observadores irá descobrir que ao se aproximar de um certo valor de distância D de seu ponto original (valor este que depende somente da intensidade de rotação existente neste modelo) aparece uma barreira impossibilitando a extensão daquele sistema além de D. E qual a razão para o aparecimento desta barreira? Qual a origem desta curiosa propriedade de confinamento? Por que este sistema limita ao raio D a possibilidade de construção de tempo único, do tempo gaussiano nesta geometria? Um exame mais detalhado mostra o que se passa na fronteira: além de D é possível o aparecimento de curvas do tipo-tempo fechadas. Isto é, um observador real poderia, em princípio, voltar a seu passado e, consequentemente, um tal sistema de coordenadas gaussianos se torna impossivel de ser extendido além de D. Notemos entretanto que a situação aqui, na geometria de Godel, é diferente do caso anterior de Minkowski. Tanto na representação de Milne quanto na de Rindler, a limitação de que tratamos é artificial, está associada a uma escolha especial de observadores. Podemos passar para outra categoria de observadores — os inerciais, por exemplo, — que podem realizar a tarefa de descrever a totalidade deste universo de Minkowski. A diferença entre esta limitação de alguns observadores gaussianos desta geometria e aquela, bem mais dramática, existente na geometria de Godel, reside precisamente nesta característica que devemos repetir e enfatizar: enquanto em Minkowski trata-se de uma escolha de observadores que não podem utilizar um tempo cósmico global, único, para toda a geometria, no caso de Godel, trata-se de uma proibição que independe de qualquer escolha especial de observadores.
Uma pequena comparação dos modelos de universo de Einstein e Godel
No modelo de universo de Einstein não há dinâmica, o universo é estático. Isso é afirmado ao começo de sua caracterização e isso pôde ser feito, pois existe um tempo global de referência ao qual os observadores fundamentais gaussianos podem comparar as diferentes propriedades desta geometria. Nada semelhante em Gödel. Não somente a dinâmica aqui não existe, mas nem mesmo aquele tempo global de referência em relação ao qual nos questionamos sobre esta dinâmica, não existe! Ademais, torna-se extremamente dificil – e, em certas situações, mesmo impossivel de examinar propriedades convencionais da Física nesta geometria. Vamos dar um exemplo simples, mas esclarecedor.
Como vimos, a geometria de Einstein admite a construção de um sistema gaussiano no qual este universo pode ser separado em uma estrutura tri-dimensional chamada “ espaço” e um tempo. Uma tal construção é global, isto é, pode ser estendida sobre todo este universo. Desta forma, é possivel organizar uma ciência convencional, semelhante à construida na Relatividade Especial, que guardaria muitas – se não todas – características com as quais se descreve o mundo. Em particular, por exemplo, uma fisica dos campos seria possivel de ser traduzida da geometria de Minkowski para a de Einstein. Nada semelhante na geometria de Godel. Com efeito, embora seja possivel instituir um sistema gaussiano local nesta geometria, o fato de que ele não possa ser extendido globalmente produz resultados estranhos e inesperados. Só para citar um exemplo, poderíamos considerar as dificuldades quase insuperáveis de produzir uma Física convencional de campos nesta geometria. Isto significa, de um modo simbólico e preciso, a impossibilidade de que um corpo material, uma partícula, possa ser descrita como uma estrutura única e permanente. Uma partícula, vista por um observador nesta geometria, poderia não ser reconhecida como tal por outro observador.
Não entrarei em mais detalhes neste texto, encaminhando o leitor interessado para os artigos citados abaixo.
Referências
- Novello, O que é Cosmologia (ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2006.
- Gödel, Review of Modern Physics 21, 3 (1949)
- Novello, I. D. Soares e J. Tiomno, Physical Review D 27, 779 (1983).
- Novello, N. F. Svaiter e M. E. X. Guimarães, Synchronized frames for Gödel´s universe in General Relativity and Gravitation, vol 25, 2, 137 (1993).
- Malament, Journal of Mathematical Physics 28, 2427 (1987).
- Novello, A máquina do tempo, Ed. Jorge Zahar, 2004.
[1] A ausência de um tal tempo gaussiano global levou alguns autores a argumentarem que a geometria de Godel não deveria ser sequer considerada como um modelo cosmológico!
[2] Uma tal eliminação do tempo seria, na visão de alguns – como o físico J. M. Salim – a única possibilidade da Cosmologia não se envolver em paradoxos, em questões circulares, sem solução.
[3] É o mesmo procedimento adotado por Einstein ao empreender sua crítica ao apriorismo da Física newtoniana.