Jogos da Natureza – Parte II – Capítulos 3 e 4
CONTO /
Mario Novello //
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CAPITULO 3: O fóton fala com Maria Luisa
Maria Luisa tinha recebido um presente muito especial. Sua tia Luri tinha lhe dado uma bela edição condensada da Biblia. No mesmo dia, à noite, foi para a cama levando seu livro novo. Mal começou a ler ficou com vontade de ir correndo falar com o dr Luis. Afinal, tia Luri dissera que tinha lhe dado um livro sagrado, mas logo nas primeiras páginas, no capítulo entitulado Gênesis, aparece uma história da criação do Universo!!! Mas isso não era coisa de cientista, de cosmólogo, como seu pai?
-“Será que papai já leu isso?”
Mas antes de ir lá falar com ele, resolveu que seria melhor ler um pouquinho mais. Ela ficou curiosa para saber como seria essa versão religiosa da criação do mundo. Como era de seu jeito, começou a ler baixinho para que só ela ouvisse.
“No começo Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava deserta e vazia: as trevas se estendiam sobre o Abismo e o sopro de Deus flutuava sobre as águas. Deus disse então: Que se faça a luz! e de repente apareceu a luz. Deus constatou que a luz era uma boa coisa. Depois Deus separou a luz das trevas.”
-
Caramba! isso quer dizer que o fóton, esse grãozinho de energia que a gente chama de luz, foi a primeira partícula a ser criada?
Ela entendeu que o céu, a terra e as águas que apareciam nesta narração, nada mais eram do que referências, expressões, representações, respectivamente, do tempo e do espaço. Isto é, modos de falar de um pano de fundo, servindo de cenário onde a matéria se movimenta. Ficou muito espantada com essa história e já estava quase se levantando da cama para falar com o dr Luis quando ouviu uma voz estridente, vindo sabe-se lá de onde:
-” Se eu fosse você não ficaria tão espantada. Afinal, como você vai ver mais tarde se trata de um jogo bem concorrido: o jogo da criação. Ele possui várias versões menores, menos abrangentes; mas este a que você está se referindo é sua versão mais ampla: a criação de tudo-que-existe. As regras do jogo da criação foram feitas de modo a permitir diferentes interpretações. Essa falta de rigor e de univocidade poderia ser considerada um defeito. Mas, por outro lado, pode-se pensar que se trata exatamente do oposto: a ausência de regras rígidas permite que o jogo seja alterado de tempos em tempos, sem que com isso perca sua atração, seu charme, seu interesse. É bem verdade que, dependendo destas mudanças, o desenrolar deste jogo, sua história, se torna bem diferente. Mas ele é muito importante e conhecido de todas as civilizações. Elas sempre acreditavam que sabiam bem como descrevê-lo. E isso, como acontece em outras ocasiões, tem uma consequência desagradável: a ingênua identificação do jogo com a descrição que se faz dele.”
MLuisa pensou logo na frase que o dr Luis vivia dizendo e que mantinha em um quadro, em seu escritório:
O mapa não é o território.
-“Todas as religiões, continuou a mesma voz, de um modo ou de outro, descrevem a transcendência do mundo a partir do momento mágico e único de sua criação. Não é de estranhar que você encontre várias versões. Eles possuem no entanto, algo em comum: sempre começam com algum personagem importante e por isso é preciso que alguém chegue primeiro e não todos ao mesmo tempo. Mas – acrescentou até de modo casual, sem nenhum orgulho nem decepção na voz – nem sempre sou eu. Por que você sabe, não? As diferentes civilizações que os homens construíram ao longo da história, inventaram mitos para todos os gostos. O último recém-chegado veio dos cientistas: é o mitocientífico de criação do mundo, o big bang. Como eles não têm muita experiência em construir uma cosmogonia, isto é, uma história completa da criação do mundo – pois chegaram muito atrasados nesta produção – acabaram, meio sem-saber, por imitar as que já existiam. Aliás, em particular, o mito cientifico mais comum – acrescentou em um tom visivelmente de deboche, que não agradou a menina – é muito parecido com esse que você estava lendo. Fácil de acreditar e difícil de entender. Essa história de nascimento do mundo, de criação de tudo-que-existe, do universo, sempre esteve ligada a alguma forma de mito, de religião, enfim essas coisas todas que mexem com o lado irracional que todo mundo tem. E isso não é para entender. É só para acreditar. Não é mesmo?…”
Quem falava assim, ziguezagueando pelo quarto, para cima e para baixo, em um movimento aleatório, era, para espanto de M Luisa, justamente o fóton – o personagem que ela acabara de reconhecer na Bíblia! É bem verdade que o som parecia vir de vários lugares, tão rápido ele se mexia.
(Ela estranhou que ele falava igualzinho a seu pai. Mas logo se lembrou da conversa que a doutora Mafalda, sua psicóloga, tivera com seu pai. Ela havia dito ao dr Luis que os sonhos da menina nada mais eram do que reproduções um pouco modificadas das conversas que ela ouvia entre o pai e seus amigos físicos. A doutora dissera que estes sonhos poderiam ser usados para escrever, a partir deles, um livro de divulgação das idéias científicas do dr Luis, pois eles misturavam o conhecimento do pai com as fantasias da filha.)
Maria Luisa se lembrou do livro que o dr Luis tinha feito em homenagem ao professor Lattes e das estranhas histórias nas quais ela e os pions – umas partículas muito pequenas, bem menores até do que um átomo – tinham tido uma relação tão intensa que parecia até mesmo que eles tinham realmente falado com ela.
Pensou então – quem sabe, não é? – que talvez agora fosse a vez dos fótons falarem com ela!
O fóton, sem perceber essas dificuldades, continuava…
– Pois essa história do mito da criação chamado big-bang vale a pena conhecer! Ele é tão simples que até eu posso contar, você quer ouvir?
A menina mal tinha se recuperado desta insólita aparição mas, curiosa como só ela, fez um rápido sinal afirmativo com a cabeça.
– Pois veja você, começou ele, uma vez, lá pela primeira metade do século XX, o dr Lemaître, um belga, cônego da igreja católica, cosmólogo como teu pai, quis que eu entrasse na história que os físicos estavam construindo para explicar o começo do mundo. Chegou a escrever um livro a que deu um titulo pomposo e atraente:
O ÁTOMO PRIMORDIAL.
Como subtítulo, trazia:
Um Ensaio de Cosmogonia
– A história era mais ou menos assim. Não me pergunte porque, mas teria havido uma grande explosão, que deu origem a tudo que existe: o espaço, o tempo, a matéria e a energia. Como conseqüência deste momento inicial, a totalidade do espaço tri-dimensional começou um processo de expansão que continua até os dias de hoje e possivelmente vai continuar por muito tempo ainda! Isso quer dizer que o volume total do espaço varia com o tempo. Em verdade, aumenta. Consequentemente, a densidade de energia diminui e lá no final desta expansão a matéria que sobreviver ficará tão diluída que qualquer um que por ali aparecer vai ter a impressão que o mundo está praticamente vazio. O começo e o fim do universo são bastante diferentes Pode-se mesmo dizer que são opostos. No começo, a densidade de energia é infinita e no final é zero.
Parou um pouco para ver a reação dela e continuou:
É verdade que existe um outro modelo parecido com este, que difere na parte final. O começo é igual, mas ao invés de se expandir para sempre, nesta segunda versão, a expansão se transforma, em um dado momento, em um colapso. Assim, ao final, o universo estaria em um estado igualzinho ao seu começo, isto é, estaria de novo em uma condensação infinita! Embora essa versão da criação fosse considerada, pelos cosmólogos da época, fantasiosa, tão sem-explicar-nada, não é que foi ganhando mais e mais adeptos que acreditaram direitinho nisso? Pior: fez um sucesso tão grande que chegou a virar moda! Eu nem falei nada, porque essas coisas não sou eu quem decide. Mas que parecia bobagem, bem que parecia. O professor Lemaître pediu que eu ficasse o tempo todo por ali para confirmar o que estava contando. Bom, como você vê, era uma história realmente parecida com essa que você leu.
Maria Luisa não gostou nada que ele tivesse repetido isso e ficou com uma certa implicância com ele. O fóton pareceu não perceber e continuou.
– Nem é bom contar a confusão que se seguiu. Como o próprio titulo do livro sugere, esta cosmogonia se baseia na imitação do comportamento dos átomos instáveis, conforme descrito na microfísica. Tudo se passa como se na origem da criação do universo houvesse um ovo inicial, um átomo primordial que teria se desintegrado. Ele costumava dizer uma frase muito curiosa:
Dê-me um átomo e eu construirei um universo.
Essa frase não era dele, foi só uma citação, mas isso não importa, não é mesmo? Um astrônomo, o dr Gamow, com seu jeito muito particular de falar das coisas, fez uma critica brincalhona, ridicularizando este cenário de átomo-primordial-que-explode dando-lhe um nome pejorativo: “big-bang”. Assim mesmo, em letras bem pequenas. Mas não é que os seguidores do cônego conseguiram transformar esse modo simples, jocoso de se referir a esta idéia, como se fora não uma verdadeira crítica mas uma simples brincadeira! Pois é isso mesmo que aconteceu. Passaram a rir desse nome como se estivessem a brincar consigo mesmo. E conseguiram, assim, retirar todo o conteúdo negativo e até mesmo um pouquinho injurioso que ela carregava, passando eles mesmos, a chamar o modelo de universo que apoiavam como sendo o “Big-Bang”. Mas agora assim: com grandes Bês maiúsculos. Bom, tanto falaram e repetiram que a origem do nome se perdeu e hoje que se transformou em um respeitável cenário de descrição convencional dos instantes primordiais do universo, continuam a chamá-lo assim!
“Mas eu não tenho nada com isso. Quando cheguei nesta parte do universo perdi boa parte de minha memória, continuou o fóton, depois de uma pausa. Eu só me lembro que havia um mundão de coisas por aqui …” fez um gesto largo com a mão como quem está se referindo ao mundo todo. Por exemplo, aqueles ali, disse apontando para um conjunto de partículas que passavam por perto, já ouvi eles contando histórias de uma época que nem me lembro”.
Mas então, pensou a menina, se a criação do fóton não se identifica com o começo-do-mundo, isso quer dizer que o livro de tia Luri estava…errado?
Como se tivesse lido o pensamento dela, ele esclareceu.
– Não é exatamente assim. Não está, como você pensou, totalmente errado. A história que aparece lá na Bíblia, em verdade não diz respeito ao universo onde nós – eu e você – existimos.
– Como assim?
– Bem, possivelmente você deve ter ouvido muitas outras histórias, diferentes, da criação do mundo. Cada civilização cria as suas. Isto é, cada povo em suas origens, desenvolve um modo especial, particular de produzir uma história da criação do mundo, que se costuma chamar mito cosmogônico. Sempre se precisa disso, dessas crenças irracionais, não é mesmo?
Isso, a menina entendeu. O dr Luis tinha explicado essa história da necessidade dos homens de aceitarem alguma crença, sempre associada a alguma forma de poder. Mas isso ela não podia contar para tia Luri. Ela acreditava seriamente, ao pé da letra, tintim por tintim, na história do jeito como era contada lá na Bíblia e certamente não seria ela que iria se opor à tia.
– Quando crescer, vou explicar direitinho para ela. De qualquer modo, mesmo que eu falasse agora ela não iria mesmo acreditar.
Por alguma razão que ela não entendia, Maria Luisa por sua vez, acreditava piamente nessa história de que os fótons tinham realmente sido as primeiras partículas a serem criadas. Depois de se recuperar da estranha sensação de espanto provocada pela afirmação do fóton de que lá nos primórdios do universo havia outras partículas antes dele ter sido criado, tentou ver se reconhecia alguma das partículas que o fóton indicara. Como estava muito escuro, ela conseguiu ver somente umas poucas sombras. Mas não reconheceu nenhum deles.
O fóton viu a menina pensativa, e ao perceber que ela não tinha entendido, resolveu acrescentar:
“Ou eu não existia ou talvez tenha esquecido. De qualquer modo é a mesma coisa, acrescentou. E, como ela tivesse feito uma cara de espanto maior ainda, achou melhor explicar.
“Você sabe que eu também esqueço certas coisas. Principalmente quando entro em contato direto, em interação com outras partículas. Ou então, nunca se sabe de verdade, não é?, eu talvez não existisse mesmo. De qualquer modo o efeito não muda. Bom, só que a tal de …
Ela parou de escutar o que o fóton dizia. Ele parecia muito arrogante. Com que então o mundo só passou a existir quando ele foi criado! ou, pior ainda, que o mundo só começa a ter uma história a partir do momento que ele se lembra….Ora vejam só! Como diz tia Luri, pretensão e água-benta!
Mesmo assim, resolveu perguntar por que ele dissera aquilo. Mas nem teve tempo. Ele já mudara de assunto.
-
Porque os amigos de seu pai, continuava, os “cosmólogos”, se reuniram um belo dia, para retirar dos religiosos essa função de produzir uma história completa do começo do mundo. Mas você sabe não é? a religião ainda é muito importante. E, mais que isso, tem muito poder. Então quando se consegue uma descrição – ou até mesmo só uma idéia – que permite uma explicação do começo do mundo que mistura as duas – a religião e a ciência – todos ficam contentes, seguros e confiantes nesta crença. Impossível contra-argumentar. Este cenário da criação do universo virou – nos anos 70 – a descrição oficial da ciência., de tal modo que os cientistas que ousavam não acreditar nela se deram muito mal. Eu não vou dizer que tiveram o mesmo destino que a mãe de Kepler ou Giordano Bruno ou ainda o famoso Galileu que foram queimados na fogueira ou quase isso, porque ousaram propor uma interpretação diferente daquela que a religião principal da época impunha. Não, os tempos são outros. Usam-se métodos diferentes, mais sutis, mas igualmente eficientes. Pois veja você o que aconteceu com os primeiros cientistas que apoiavam a idéia herege de que o Universo não teve um instante de criação, que o universo seria eterno! Pois saiba que foram colocados no ostracismo. E tudo que eles estavam tentando fazer é criar um modelo racional do mundo. Porque, você sabe, não? – se existiu um começo singular, se o universo começou com uma verdadeira explosão, se não podemos continuar a examinar o universo antes daquela fase extremamente condensada é porque ele não admite uma explicação racional precisamente em seu momento mais importante: aquele que vai determinar sua evolução futura!
Fez uma pausa para que a menina o acompanhasse e continuou:
“Ninguém podia sequer pronunciar seus nomes. Isso não significa que foram presos ou excomungados. Pior: foram deixados para serem esquecidos. Ninguém se referia a eles, nenhuma frase deles era citada, nenhuma de suas pesquisas era considerada. E, você sabe não?, deixar de ser citado pelos seus pares, pela sua comunidade é, para um cientista, o pior dos males.
Ela não entendeu essa história e ia pedir para que explicasse melhor mas nem teve tempo, pois ele continuava cada vez mais alto:
– Um exemplo para todos os outros que ousassem qualquer forma de rebeldia contra o mito oficial. Mais tarde, quando você descobrir um dos jogos mais excitantes que a Natureza andou fabricando por aí, o Jogo da Criação, talvez …
M Luisa parou de ouvir o que ele dizia. Ela finalmente se deu conta que era muito difícil manter um diálogo com o fóton. Principalmente porque ele parecia não parar nunca em lugar algum. E como é que se pode falar com alguém se não sabemos onde está?, disse em voz alta. Se eu ficar olhando para onde penso que ele esteja agora, aí mesmo é que nunca vou vê-lo. Ela então decidiu olhar para um ponto mais adiante daquele onde a voz parecia estar vindo. Não melhorou nada. Impossível localizá-lo. Desistiu momentaneamente e decidiu que era melhor continuar o diálogo assim mesmo, sem olhar direto para ele.
Enquanto isso, o fóton continuava a falar sem perceber os problemas da menina.
Por um momento ela desviou a atenção da agitação causada pelo fóton e refletiu um pouquinho: Mas isso quer dizer que havia um tempo em que não havia fóton algum no universo? Mas entao, disse em tom espantado e mais para ela mesma, como é que foi criado o primeiro? ML pensou (isso ela não falou) ” caramba, isso quer dizer que se pode criar fótons? a qualquer momento? mas como?”
O fóton respondeu como se ela tivesse falado em alto e bom som:
– Minha família não é como certas famílias que andam por aí…
Fez uma pequena pausa e continuou:
…cheias de discriminação, só interagindo entre si, e obedecendo um código de fidelidade tão restrito que ninguém pode nem mesmo chegar perto! Os colegas de seu pai, dizem que se trata de uma Lei: a Lei de Conservação! “Eles interagem entre si porque só eles tem a qualidade especial para isso”, decretaram os físicos. Assim como a família dos Leptons, por exemplo. Essa família é muito respeitada, é bom que se diga. Eu conheço todos eles – isto é, desde que não tenham escondido um novo que nunca vi – e têm nomes bem conhecidos: eletron, muon, tau. Cada um tem o seu correspondente neutrino filhote (que funciona como um verdadeiro cão-de-guarda, sempre grudado neles) e seu oposto: o anti-eletron, o anti-muon, o anti-tau.
Ele enumerava todinhos como era de seu feitio. ML estava fascinada. Quase nem ouvia mais, divagando com o que escutava.
– Nós os fótons temos uma grande vantagem sobre todas
as outras familias : cada um de nos é sua própria anti-particula!
– Será que existem outras partículas assim como você, que não tenha anti ou melhor que seja sua própria anti-partícula?, perguntou, quase automaticamente, sem entender bem porque isso a estava interessando e que consequências teria.
– Bem, disse o fóton com uma expressão de desprezo, parece que os amigos de teu pai andam procurando pelo tal de gráviton que seria para a força gravitacional o que eu sou para a eletromagnética. Mas se ele existe de verdade nunca ninguém pôde provar, nem ninguém nunca viu. Quanto a mim, ou melhor quanto à minha extensíssima família, todo mundo conhece e estão cansados de nos verem. Você mesma sabe que nós somos as partículas mais numerosas que existem no universo inteiro, disse com um indisfarçável orgulho e mesmo com uma pontinha de arrogância, que até a voz saiu diferente.
Maria Luisa se lembrara da confusão que acontecia sempre que uma partícula, qualquer que fosse ela, entra em contato com sua anti. Sai um clarão, danado de grande, capaz de iluminar tudo que está em volta. E pensou que deveria ser uma boa coisa ser sua própria anti.
A menina não entendera o que afinal de contas ele, o fóton, era para o campo de forças eletromagnético, nem o que seria o gráviton para o campo gravitacional. Mas havia tanta coisa que ela não entendia!
– E o que é que você é para este tal de campo eletromagnético?
O fóton olhou para a menina com olhar espantado como se fosse um verdadeiro sacrilégio ela não saber isso.
– Ora, eu sou a própria materialização do campo! Você sabe, não? – dessa vez a voz dele saiu em falsete, para deixar bem claro que ele duvidava muito que a menina soubesse – todos os campos de força tem os seus grãos elementares de energia, os quanta como os amigos de teu pai chamam. Pois nós, fótons, somos a condensação da energia do campo eletromagnético!, disse com grande pompa.
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Como assim?, perguntou.
Ora, isso quer dizer que é muito fácil fabricar fótons! Em qualquer lugar, com qualquer nadinha de energia e nós aparecemos aos montes. Nós não temos nenhuma proibição, nenhuma Lei de Conservação…
Falou em tal tom de deboche que a menina achou que estivesse se referindo a alguém presente. Ela olhou em volta e não viu nada que justificasse isso.
…Até mesmo um Buraco Negro pode produzir fótons, deixar de ser negro e desaparecer!
Maria Luisa ouvia isso cada vez mais espantada. Pois se ela ainda nem entendera como se forma um buraco negro e ele já estava querendo falar sobre sua transformação!! Ela sabia que um buraco negro era uma estrela que colapsou. Mas porque ela teria colapsada isso ela bem que gostaria de saber!
– “Por outro lado, para nós fótons, isso nem é discutido”, continuava. “Aqui, entre nós tudo é popular; nós temos arrogância zero!”
Fez um largo gesto para exprimir essa idéia de igualdade total…
– Por exemplo, em circunstância bem comum e com ajuda quase nenhuma eu posso me dividir em dois fótons, em três, em quatro, em cinco…
Ele falava, falava, falava… parecia até que se ela não o interrompesse ele iria enumerar todos os algarismos que existem, e
até mesmo inventar outros mais.
– Sei, disse em um tom duro mas amigável, já entendi. Mas de onde você vai tirar energia para produzir estes teus irmãos todos?
– Ah, disse ele, com naturalidade como quem já esperasse por essa pergunta, não vou precisar de mais energia não. Bem, se pelo menos deixarem a gente interagir entre nós mesmos para resolvermos isto!
– Por que, se espantou ela, em geral os fótons não podem interagir entre si?
-
Bem, minha filha, essa é uma outra longa história…
Fez um gesto lânguido e continuou
-
…, começou lá com o dr Maxwell um amigo de teu pai. Me disseram, nunca se sabe de verdade não é mesmo?., que um dia vai haver um verdadeiro julgamento, só porque alguns membros de minha família – e nem vou dizer quem, porque isso não tem o menor interesse – resolveram negociar diretamente entre si. Sem intermediários. Não aceitamos o Jogo da Proibição que os físicos quiseram nos impor, e muitos ainda continuam a tentar ainda hoje. Viviam gritando:
O FÓTON NÃO PODE INTERAGIR CONSIGO MESMO!
O FÓTON NÃO PODE INTERAGIR CONSIGO MESMO!
Um dia você vai estar frente a frente com esse jogo e aí sim vai entender o quanto esta proibição nos atrapalhou. É difícil jogar este jogo. Nós recusamos ser lineares o tempo todo!
Maria Luisa não entendeu o que ele queria dizer com isso, mas sugeriu um compromisso:
– Mas não seria possível deixar uma tal violação somente para alguns fotons?
– Bem se vê que você ainda não sabe que essas propriedades não são individuais, mas são características de todo um conjunto, de uma classe de partículas. Uma partícula tem as mesmas propriedades durante toda sua existência! Acrescentou em tom inflamado.
– Mas o que é que mantém esta identidade?, perguntou, curiosa, MLuisa.
Ele fez um gesto de que não gostara da interferência e mudou de assunto.
– Voltando ao que estávamos falando, você vê: se eu tenho uma
certa energia E (procurou em volta para ver se tinha com que escrever, vendo que não havia nada parecido com um lápis ou caneta, resolveu usar os dedos para caracterizar o que ele estava querendo dizer) Eu posso me dividir em dois fótons iguais cada um com energia metade ; ou então em três cada um com energia um terço , ou então em quatro cada um com energia um quarto , ou..
Desta vez ML chegou a ser um pouco menos simpática e o interrompeu abruptamente. Ela já tinha percebido que o fóton tinha uma estranha inércia para continuar indefinidamente uma frase, uma idéia ou um movimento qualquer.
– Sei, disse ela, cada um de vocês vai ficando mais fraco mas
embora o número total de fótons vá aumentando, como cada um tem energia menor, mesmo que sejam muitos, a situação é tal que a soma total da energia de vocês todos em cada uma dessas sub-divisões é sempre a mesma.
O fóton considerou que ela tinha realizado um belo esforço para produzir uma frase tão inteligente, olhou para ela com respeito e fez um sinal como quem valoriza o que acabou de ouvir.
Mas isso, disse ela, ainda não explica como é que o primeiro fóton apareceu.
– Bom, se você quer saber como apareceu o primeiro é muito fácil.
Ele então começou a contar uma história completamente inverossímel. Pena que Maria Luisa não pudesse continuar a ouvir. Ela havia de repente se dado conta que o fóton tinha cessado sua agitação e estava parado. Isso era com efeito muito estranho porque queria dizer que ou o fóton tinha conseguido violar a Lei de Einstein que o obrigava a andar sempre com a mesma velocidade; ou então, mais extraordinário ainda, era ela quem estava se movimentando tão rapidamente que o fóton parecia estar parado! Se essa última hipótese fosse a verdadeira isso significava que a velocidade dela era igual à do fóton! Mas isso não era possível! Ela sabia que se chegasse a ter velocidade muito próxima à da luz coisas terríveis aconteceriam, como por exemplo, a massa dela crescer sem limite! e crescer, e crescer…
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De repente ela pareceu entrar em um turbilhão. Acordou assustada e muito suada, como se tivesse passado boa parte da noite correndo para cima e para baixo com velocidades fantásticas.
– Puxa vida, que ginástica! – disse em voz alta. Olhou para o relógio e viu que ainda eram onze horas! Ouviu passos no corredor. Era o dr Luis que chegou logo perguntando o que tinha acontecido.
Ela explicou o estranho sonho que a tinha deixado muito agitada. Como estava visivelmente amedrontada, o dr Luis achou conveniente ficar com ela e conversar um pouco até que recuperasse a calma e pudesse voltar a dormir.
De toda esta história o que a tinha impressionado mais era a questão da criação do mundo. Volta e meia ela perguntava isso para seu pai. Embora ele já lhe tivesse explicado muitas vezes, ela sempre queria saber mais.
O dr Luis achou que seria mais apropriado, pelo adiantado da hora e pelas questões que ela tinha colocado, falar um pouco não sobre o modo cientifico como os cosmólogos tratam o começo do mundo, mas sim como outros saberes, de natureza não científica, tratam dessa questão. Começou a contar sobre essas outras formas de conhecimento, mas ela logo adormeceu e a história ficou para outra ocasião.
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CAPÍTULO 4: Extraindo energia das estrelas
Maria Luisa ouvira a explicação que seu pai dera sobre buracos negros para um jornalista. Mas aquela história de uma estrela começar a encolher, encolher, encolher e colapsar indefinidamente até se transformar em um buraco negro parecia ser coisa muito estranha, impossivel de entender. Ela tinha passado quase a noite toda pensando sobre isso.
No dia seguinte Maria Luisa acordou bem cedo e, entrando precipitadamente no quarto de seu pai, foi logo perguntando:
– Bom dia papai! Afinal, como é mesmo que uma estrela perde energia? Sem mais nem menos? até virar um buraco negro?
O dr Luis que sempre se espantava com as perguntas que a filha lhe fazia, sabia muito bem que ela não sossegaria enquanto não respondesse. Achou então que o melhor que ele poderia fazer seria contar a história sobre o famoso processo Urca, responsável pela perda de energia das estrelas. Ele ouvira anos antes esta explicação, envolvendo o encontro do famoso físico brasileiro Mário Schemberg com o cientista russo-americano George Gamow, quando da visita deste ao Rio de Janeiro e como eles conseguiram elaborar um modelo do comportamento das estrelas capaz de explicar essa perda de energia. Disse a ela então que à noite, quando voltasse do trabalho, lhe contaria, sem falta, sobre isso, sobre a
evolução das estrelas, como elas emitiam energia e algumas das consequências dessa perda, no seu processo de evolução. Uma história verdadeira! E, detalhe mais interessante ainda, tinha como um dos personagens principais um brasileiro!
A história sobre o processo Urca que o dr Luis contou
para Maria Luisa
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“Você vê Mário, assim, sem nenhuma conversa, sem preâmbulo, sem qualquer consideração por nós, como num golpe de mágica, perdemos todo nosso dinheirinho para aqueles ladrões lá do cassino. Do mesmo modo, silenciosamente, as estrelas, aquela estrela lá em cima por exemplo, vão perdendo sutilmente sua energia, sem que percebamos isso…”
O dr Gamow falava apontando para uma estrela que se colocara brilhando esplendida ao lado do Cristo. A vista da enseada de Botafogo, ao longe, era maravilhosa. Eles estavam voltando de uma
noitada no cassino, caminhando lentamente pela calçada próxima à praia da Urca. O dr Gamow gostava de ir ao longo da avenida que contorna o mar até o seu fim, pertinho do Forte São João e, depois de implicar com o guarda da guarita, estranho e perigoso hábito que trouxera de sua infância em Odessa, voltar observando atentamente as pessoas que da amurada tentavam pescar, praticamente sem nenhum resultado prático. Mas afinal, para elas mais importante do que conseguir que algum peixe fosse fisgado, era, sem a menor dúvida, ficar por ali e mergulhar de corpo e alma no cheiro gostoso de dama-da-noite que exalava dos arbustos das casas ao longo da praia.
– Mas se é assim, como você diz, porque não pensarmos que analogamente, misteriosos ladrões, esses Urca como você diz em russo – carregam a energia da estrela para fora dela?, perguntou Schemberg, lembrando o que Gamow dissera pouco antes ao explicar-lhe que o nome deste bairro significava “ladrão” ou melhor, “punguista” no dialeto de sua terra natal na Rússia.
O dr Shemberg falava baixo, quase mais para si mesmo do que para o outro. E, no mesmo tom casual e brincalhão acrescentou: “e se fossem ladrõezinhos sem partido algum, sem estarem nem contra a gente nem a favor de esquema algum, completamente neutros?”
Gamow estava um passo à frente e não entendera bem a ultima frase que fora dita em italiano.
– “Pequenos neutros? voce quer dizer neutrinos?” retrucou Gamow e, quase dando um pulo na amurada, acrescentou em alta voz, também em italiano: “Dio mio é vero! é verammente questo! sono I neutrini! Você acertou!! você resolveu a questão!”
Mário não entendera bem o que acontecera. Havia tempos ele tentava convencer Gamow de que as estrelas perdiam energia por emissão de neutrino, essas partículas invisíveis super-velozes, que parecem se movimentar com a velocidade da luz, a máxima velocidade possível para qualquer partícula!
E agora, simplesmente porque Gamow não entendera bem o que ele falara – talvez devido ao barulho das ondas batendo violentamente na praia, ou sabe-se lá por que, ele se fazia entender. É bem verdade que essa mudança podia também ser creditada à grande quantidade, bem como à qualidade da vodka russa que haviam bebido.
Decidiram voltar imediatamente para o Instituto de Física para poderem confirmar, com seus cálculos, se aquela sugestão era realmente a explicação correta que eles buscavam. Passaram pela pontezinha que leva ao Iate Clube tão rapidamente que pareciam dois meninos apostando corrida. Mal chegaram no Instituto de Física foram para a sala de conferência, que tinha o melhor e maior quadro-negro. E começaram imediatamente a fazer um monte de cálculos. Depois de uma boa horinha pararam, sentaram na primeira fila de cadeiras e olhando o quadro inteiro tiveram a um só tempo a mesma reação: abriram um enorme e silencioso sorriso.
As equações que Schemberg e Gamow escreveram no
quadro:
e– + N(A,Z) ——–> N(A,Z – 1) + n
N(A,Z-1) ——–> e– + N(A,Z) + n
e– + N(A,Z) ——–> …
e, assim sucessivamente.
O dr Luis escrevera estas equações em uma folha de papel. A menina nem precisou pedir a ele que explicasse o seu significado, pois ele foi longo comentando.
– Você está vendo? aqui, apontou, a letra e quer significar o eletron. Este símbolo de menos (-) associada a ela, explicita que se trata de uma particula com carga elétrica negativa. Se você quiser se referir à sua anti-particula, o anti-eletron ou pósitron, basta trocar este símbolo de menos para um de mais, assim: e+. A letra N representa um átomo qualquer, contendo um número A que mede a quantidade de protons e neutrons e um número Z de protons; a letra grega representa a partícula neutrino. Aquela seta quer significar que um dado átomo N(A,Z) ao encontrar um elétron é transformado em dois corpos:
-
Um outro átomo contendo igual número A de protons e neutrons, mais um número Z – 1 de protons, isto é, diminuído de uma unidade;
-
um neutrino.
A segunda equação é semelhante. Um atomo N(A,Z-1) se desintegra em três corpos:
-
Um átomo idêntico ao anterior N(A,Z);
-
um eletron.
-
um neutrino.
Você vê que coisa interessante que ocorre nesta sequência de desintegrações. No começo havia eletrons e átomos, o elemento químico N(A,Z). Como resultado da sequência de reações, ao final, restam estes mesmos agentes envolvidos nestes processos e – novidade importante, crucial mesmo – aparecem dois neutrinos. Pois são estes neutrinos em excesso, sub-produtos destas reações, que serão expulsos da estrela, são eles os responsáveis por carregar para o exterior da estrela parte de sua energia. Como o resultado final daquela sequência de reações termina com os mesmos produtos com que começou – além, claro está, dos neutrinos que foram criados e emitidos – conclui-se que este processo pode ser repetido um sem-número de vezes. O que é importante e singular, no que acabamos de ver, se resume na propriedade notável:
Os estados inicial e final são iguais.
Uma tal característica é típica de uma série de situações que encontramos em diferentes processos na Física que estão na origem de configurações notáveis. Um dia, eu vou te contar um outro exemplo, de uma história, parecida com esta, mas muito mais fantástica, sobre o universo inteiro, que você vai ter dificuldades de acreditar. Uma história onde, assim como esta, o estado final e o estado inicial são idênticos.
Não era a primeira vez que ele prometia isso. Mas ela estava tão fascinada pelo processo Urca e pelo modo que os dois cientistas haviam chegado a essa descoberta, que Maria Luisa só fez um comentário:
– Isso bem que podia ser uma historinha policial!
Parou de falar, levou a mão à cabeça, como quem está pensando em alguma coisa muito séria e completou:
– Para ser mesmo um conto policial, disse a menina, só falta agora alguém desaparecer!
Foi lentamente dirigindo-se para a porta e só teve tempo de dizer caramba! e sumiu para dentro de um buraco-de-verme.
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Mário Novello é cosmólogo do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA) do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).
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Capítulos retirado do livro:
NOVELLO, Mario. Jogos da Natureza. Editora Campus. Rio de Janeiro, 2004