Interfaces da música e da literatura: Bandeira e Ravel
O Romantismo possibilitou uma nova reflexão sobre o fazer poético e permitiu que a estrutura desse fazer sofresse alterações. É o caso dos poemas narrativos de Aloysius Bertrand, que fazem parte de sua obra única, Gaspard de La Nuit: Fantasias à maneira de Rembrandt e de Callot. O Gaspard de La Nuit é uma coleção de seis volumes. Agrega-se a estes um sétimo trabalho intitulado Pièces détachées. Peças curtas de conteúdo narrativo e de referência ao fantástico e ao grotesco, os textos de Bertrand são, como sugere o título do livro, inspirados pelas gravuras do holandês Rembrandt e do francês Callot.
O trabalho de Bertrand serviu não só para estrear um gênero novo na literatura – o poema em prosa – mas também para influenciar gerações posteriores de artistas que se apropriariam da obra para legitimar seus projetos artísticos. Vale destacar Baudelaire e os seus pequenos poemas em prosa e Mallarmé que também se valeu da forma. No entanto, é com Ravel que o trabalho de Bertrand é reinventado em um projeto interartístico que ele chamou de Gaspard de La Nuit: três poemas para piano após Aloysius Bertrand. O título do projeto não é ousado, pois o próprio Bertrand já havia indicado as fontes inspiradoras de seu projeto no título de seu trabalho. No entanto, Ravel vai além da mera nomeação.
O trabalho de Ravel é realizado por meio de uma série de operações que, surpreendentemente, são por vezes de cunho literário. Esse tipo de trabalho formal não consiste em ilustrar as peças de Bertrand ou criar um acompanhamento musical para os poemas, e sim numa transposição interartística daquilo que se encontra em nível poético para o nível musical.
Da mesma forma que Ravel transpõe técnicas literárias de composição para a música, Manuel Bandeira incorpora com frequência em seu legado poético uma série de procedimentos de natureza musical. O poeta pernambucano, por meio de um rigoroso empenho formal, cria uma obra poética rica em ritmos, estruturas polifônicas e contrapontísticas, além de apropriar-se de formas de composição musicais tais como sonatas e rondós.
Este trabalho examina a forma com que Ravel constrói literariamente sua peça musical, assim como também investiga os procedimentos musicais utilizados por Bandeira em sua produção poética.
Ravel, o músico-poeta
Ravel escreveu o Gaspard de la Nuit em 1908 (click aqui para ouvir a peça de Ravel) e o dedicou ao pianista Ricardo Viñes. O trabalho é considerado uma das grandes obras da literatura para piano do século XX não apenas por conta da transcendente técnica necessária para sua execução, mas também por sua profundidade musical e sua estrutura complexa. A suíte consiste de três poemas para piano: “Ondine”, “Le Gibet” e “Scarbo”. Cada um dos movimentos é independentemente construído, mas o esquema cíclico da obra remete ao da sonata clássica cujos andamentos são, respectivamente, rápido, lento, rápido.
Ondine é uma espécie de ninfa aquática. Típica personagem do folclore alemão, figura também na literatura, como em poemas de Camões e de Teófilo Braga. O poema em prosa Ondine, de Bertrand (click aqui para ler os poemas originais), narra a história de uma ninfa, que tenta seduzir um mortal. Para tal, ela canta para ele, descrevendo seu mundo fantástico. A epígrafe do poema, carregada de suspense, é o que cria a atmosfera apropriada para o poema “Ondine”, que se inicia com o próprio canto da ninfa.
Ravel vale-se de uma sequência de acordes para criar a “vaga harmonia” mencionada na epígrafe. Essa sequência funciona como uma espécie de prelúdio ao canto da musa aquática. É importante ressaltar a dinâmica indicada pelo compositor para essa sequência e também o uso do pedal por ele proposto. Ravel indica ppp, pois se trata de “um murmúrio”. O uso do pedal sugerido faz com que as notas vibrem por mais tempo e se encontrem no ar, criando uma sonoridade confusa. Esse tipo de estratégia é utilizada no sentido de reproduzir o som e a fluidez das águas e também aparece em outras obras do compositor, tais como “Jogos d’água” e “Um barco no oceano”, cujos títulos já apontam o caráter imitativo deste tipo de estratégia composicional.
É no terceiro compasso que Ondine aparece. Seu canto, marcado como “muito doce e muito expressivo” é o tema principal que reaparecerá várias vezes ao longo da peça, mas em diferentes tons. Hendekli (2008) ressalta que o fato da tonalidade dos acordes tocados pela mão direita estarem em um tom diferente da linha melódica tocada pela mão esquerda muito contribui para a criação da atmosfera vaga explicitada na epígrafe.
A organização estrutural dos primeiros compassos de “Ondine” parece uma conversão de palavras em unidades de som. Ravel recria a cena poética do poema de Bertrand: no fundo temos a “vaga harmonia”, representada pelas notas na mão direita, enquanto que na mão esquerda, ouve-se o “murmúrio intercalado com uma voz triste e suave” que canta o sedutor “Escute! — Escute!”.
O tema inicial se desenvolve e passa por uma série de modificações, as quais culminam em uma seção monódica, cujo andamento, muito lento, e a dinâmica, pp, indicam frouxidão sonora, um “murmúrio”. A relação desta seção com a penúltima estrofe do poema é bem estreita: trata-se do momento em que Ondine pede que o mortal se case com ela.
A última estrofe do poema termina com o pranto momentâneo de Ondine, que logo se transforma em uma risada. A ninfa, então, se desvanece, em gesto súbito: a risada é representada pela agressiva e virtuosa seção de arpejos em fortíssimo (ff). O declínio da intensidade (o diminuendo que alarga até chegar a p) conduzirá a peça ao fim, em que Ondine desaparece subitamente. Ravel indica “sem desacelerar”, isto é, deve-se manter a mesma dinâmica e o mesmo andamento, algo incomum para uma cadência, mas essencial para a representação efetiva da cena poética do poema de Bertrand.
Dentre os três poemas selecionados por Ravel, “Le Gibet” é, sem dúvida, o que possui uma trama imagética mais intensa. O exaustivo questionamento acerca do som que se ouve e as múltiplas suposições sobre a origem deste direcionam o poema a um clímax horrendo que se resolve em um final não menos pavoroso.
A presença de determinados componentes contribui para a intensificação do caráter macabro da obra. A “hera estéril” e as “orelhas surdas” são elementos privados de suas funções primordiais. No mesmo fluxo imagético está a carcaça, o corpo que não tem mais valor algum, pois não tem vida.
O poeta sempre menciona um animal em meio às suposições angustiantes. O grilo, a mosca, o escaravelho e a aranha são animais que trazem para a trama do poema um tom ilusório e tenebroso. O grilo é o animal que prenuncia a noite. Também a adjetivação, nesse caso, é interessante: o grilo mantém-se “oculto”. A mosca é o animal que se prolifera sobre as coisas podres que estão em estado de decomposição. É outro indicador do final trágico do poema, pois indica uma forte alusão à imagem da “carcaça” revelada na última estrofe. O escaravelho insinua um jogo com a vida e a morte. É o animal que persegue o sol carregando consigo seu excremento, onde deposita seus ovos. À noite, o animal enterra suas fezes e, pela manhã, nasce um novo escaravelho. Por fim, menciona-se a aranha, que parece ter tecido os fios do destino do cadáver. O fio, per se, já insinua a tênue linha entre a vida e a morte.
A monotonia do poema, seja pela incessante tentativa de descoberta da origem de algo que se ouve, seja pela constante repetição verbal (será/serait-ce) no início de cada estrofe, tem sua representação musical na suíte de Ravel por meio de uma repetição exaustiva de uma mesma nota (em oitavas). O si bemol maior se repete exatamente 154 vezes ao longo de todo o movimento como uma espécie de nota pedal. Essa nota é cercada de temas e modificações temáticas, mas não apresenta com estes envolvimento algum, mantendo-se isolada e, ao mesmo tempo, intrinsecamente conectada aos demais elementos da peça. Tudo é previamente planejado para criar um ambiente estático, de monotonia. Ravel indica “Muito lento e sem correr nem desacelerar ao fim” como andamento da peça, o que complementa a intenção de inércia da obra por parte do compositor.
Deve-se ressaltar a multifuncionalidade dessa repetição quase obsessiva. Liszt, em seu famoso étude “La Campanella”, retoma um tema de Paganini acrescentando, após cada nota deste tema, uma mesma nota (ré sustenido), a qual simboliza o elemento exterior ao qual está ligada: o sino. Ravel retoma a técnica de seu antecessor e utiliza a repetição de nota como forma de representar o som do “sino que ressoa nas muralhas de uma cidade sob o horizonte”.
Como em “Ondine”, a epígrafe desempenha um importante papel em “Le Gibet”. A epígrafe de “Le Gibet” é um trecho do Fausto, de Goethe: “O que é isso que vejo se mover ao redor da forca?”. A nota repetida representa, além do soar do sino, o próprio cadafalso. É ao redor da nota repetida que toda a peça se desenvolve. A última estância do poema de Bertrand já insinua um tipo de paralelismo entre a figura do sino e a do morto em seu cadafalso.
Ao contrário de “Ondine”, “Le Gibet” não é um poema narrativo. É antes uma pintura com palavras. O narrador não canta, descreve. Sua única aparição não descritiva está no verso que inicia o poema: “Ah! O que eu ouço será a brisa noturna que sussurra ou o enforcado que emana um suspiro na forca patibular?”. Essa breve interrogação aparece na peça de Ravel sob a forma de uma pequena linha melódica, que surge logo após a exposição do som do sino, no sexto compasso.
Nos compassos 17, 18 e 19, o grilo canta. A constante figuração de crescendi e diminuendi simula o canto do animal, que alcança uma intensidade sonora que em seguida decai. A atmosfera de mistério é acentuada pela variação dinâmica que, embora chegue no máximo a mezzo-forte (mf) em relação às intensidades mais fortes, é amplamente explorada em relação às intensidades mais sutis (mezzo-piano, piano, pianíssimo, molto pianíssimo).
A peça se desenvolve em meio a modulações, variações dinâmicas e de compasso, mas os sinos continuam a tocar. Por fim, apenas o si bemol continua a soar. “Le Gibet” termina com pausas, isto é, silêncio. Após o questionamento múltiplo acerca de um barulho, descobre-se que se trata da morte. Os sinos soam algumas vezes mais e desaparecem. O resto é silêncio.
Ravel recria em “Le Gibet” uma das noites mais horrendas da literatura para piano. A incrível nuance de dinâmica, a insistente repetição de notas em ostinato, os crescendi e diminuendi contribuem para a criação de uma atmosfera calma, melancólica e monótona, características originárias do poema de Bertrand que também figuram no poema para piano.
O personagem Scarbo aparece tanto no terceiro volume quanto nas Pièces détachées(às quais também pertence o poema “Le Gibet”) e é uma das mais tenebrosas criaturas fantásticas do universo grotesco de Gaspard de La Nuit. Trata-se de um gnomo que possui o poder de aparecer e de desaparecer. Sua risada demoníaca assusta o eu lírico do poema, que descreve o comportamento medonho do pequeno Scarbo.
Scarbo é um personagem duplamente facetado. É um monstro cujo comportamento se assemelha ao de uma criança. É uma criatura meio gnomo, meio fantasma. O narrador descreve seu medo dessa criatura horrenda que surge no meio da noite e que perturba o seu sono. No final, Scarbo simplesmente desaparece de forma súbita.
A tensão do poema de Bertrand é reconstruída por Ravel, em seu poema para piano, de maneira extremamente cuidadosa e se manifesta por meio de várias técnicas e explorações do piano como jamais se havia feito em toda a literatura para o instrumento. Em “Scarbo”, todas as notas do piano são utilizadas. A variedade dinâmica se combina às múltiplas explorações rítmicas e às dissonâncias, fazendo de “Scarbo” não só o movimento mais difícil de toda a suíte, mas também de todas as peças para piano solo escritas no século XX. A intenção maior de Ravel era escrever uma obra que superasse, em termos de dificuldade, a Fantasia Oriental, Opus 18, de Balakirev, Islamey.
A imagem macabra do gnomo, apesar da variedade rítmica, é claramente definida por meio de um tema que Ravel cria para identificá-lo. A peça se inicia com três notas graves seguidas de uma série repetida de uma mesma nota. A atmosfera de suspense predominante nessa seção indica que Scarbo está prestes a aparecer. O verso “Quantas vezes ouvi e vi Scarbo” mostra que Scarbo é primeiro ouvido e depois visto. Com as três notas da introdução, Scarbo é ouvido e, logo após, o tema principal aparece: já se pode ver Scarbo.
Os desenvolvimentos temáticos não raro são interrompidos por pausas, simbolizando o desaparecimento inesperado do gnomo. O tema principal por vezes é camuflado em seções lentas, como se Scarbo tivesse desaparecido, quando, na verdade, está prestes a aparecer ainda mais assustador que antes. A risada do gnomo é indicada por uma complexa progressão de oitavas quebradas, que levam ao clímax da peça.
Como “Ondine”, “Scarbo” termina de forma inesperada: “Mas logo seu corpo azula-se, diáfano como a cera de uma vela, seu semblante empalidece como a cera de uma luminária, e, subitamente apaga-se”. Ravel, novamente, indica sans ralentir. Esse desaparecimento inesperado tanto no poema de Bertrand quanto no de Ravel, indica a possibilidade de que tudo não tenha passado de um pesadelo. E é com essa atmosfera de sonho ruim que a suíte para piano de Maurice Ravel se encerra.
O que importa assinalar é que Ravel não “musica” o poema de Bertrand, isto é, ele não compõe uma trilha sonora ou um fundo musical ou um acompanhamento. O que ele faz é traduzir em música o poema. Ele se esforça por encontrar o equivalente musical às manobras sintático-linguísticas do poema. À trama imagética do poema replica a tessitura musical da obra de Ravel. Em outras palavras, o poema de Bertrand não “inspira” a peça de Ravel. É em termos de estrutura que as duas criações se correspondem. Ravel capta em figuras musicais as sutilezas formais do poema original. É efetivamente uma operação tradutora que toma alento a partir de um diálogo técnico-construtivo entre as duas obras. O poeta da música estabelece um acordo – ou acorde – de forma com o poeta da palavra.
Bandeira, o poeta-músico.
Se Ravel se apropria de técnicas quase literárias para compor peças musicais, o inverso, isto é, a apropriação de técnicas musicais transpostas para a literatura, não é feito de forma menos brilhante por Manuel Bandeira. A produção poética do escritor pernambucano tem como traço singular a musicalidade exorbitante que, por vezes, extravasa o próprio poema e mobiliza o domínio musical per se. Em “Berimbau”, o poeta pernambucano faz do ritmo o elemento dominante do poema, que passa a apresentar características prototipicamente musicais. No entanto, o mesmo poeta que é capaz de fazer de seu legado poético um irradiador musical consegue, em um poema intitulado “Boi morto”, construir um objeto artístico bifacetado que não pode ser chamado de poema musical ou de música poética, pois tais nomenclaturas, por serem compostas de adjetivo e substantivo, apresentam relação de dominância entre um termo e outro. “Boi morto”, então, se revela um verdadeiro poema-música, onde as estratégias poéticas e musicais atuam em proporções semelhantes.
Pode-se dizer que “Boi morto” se assenta em dois planos: o plano da objetividade e o plano da subjetividade. O plano objetivo se caracteriza por tomar a forma como aspecto dominante da obra. A forma determina o conteúdo. O plano subjetivo, por sua vez, caracteriza-se por ter a forma como uma mera incidência do que foi dito. O conteúdo determina a forma. A grandiosidade deste poema recai, e não acidentalmente, sobre o fato de ele estar estruturado em planos que, a princípio, se opõem. O plano subjetivo é marcado pelo lirismo peculiar de Bandeira, enquanto o plano objetivo é puramente musical. Essa genialidade arquitetônica o configura como verdadeiro poema-música em que estratégias tanto poéticas quanto musicais são levadas às últimas consequências. Para que se perceba a proporção arquitetônica do poema (apresentado ao final do texto), os planos que o estruturam serão analisados individualmente.
O plano objetivo
O empenho formal do poema já se manifesta no pequeno título, que é interessante não apenas imageticamente, mas também sonoramente. A morte não se deixa apenas apresentar no termo “morto”. É antes representada por uma série de estratégias sonoras. A assonância da vogal “o” dá ao poema um tom sombrio, decorrente do fato de se tratar de uma vogal fechada, mas também faz com que a vogal retumbe. Acrescida a essa repercussão sombria, tem-se a nasal “m”, que muito contribui na formação de uma sonoridade obscura. As consoantes oclusivas “b” e “t” acentuam a estrutura rítmica do sintagma, que acaba por se configurar como uma espécie de prelúdio ao funéreo desenvolvimento que se segue.
Também o ritmo do poema é interessante. Como ensinou Kiefer, a natureza do ritmo, grosso modo, pode ser proveniente de fontes psicossomáticas, isto é, provém da movimentação rítmica do corpo, mas também pode ser exterior, proveniente de fontes da natureza, tais como o som das águas, ou ainda artificial, o que equivale a qualquer ritmo que não provém da natureza como, por exemplo, o ritmo quase mecânico do barroco. Em “Boi morto”, tem-se um ritmo indubitavelmente psicossomático. Os passos ecoam dentro dos versos configurando a estrutura rítmica do poema. Como ressaltou Kiefer (1979), o ritmo do passo é geralmente binário (), mas pode se ajustar ao estado emocional do caminhante, sendo este o elemento que distingue uma marcha nupcial de uma marcha militar, por exemplo. A marcação silábica do poema em questão muito se assemelha a um lento caminhar. No entanto, a marcação silábica apresenta eventuais síncopes, isto é, um deslocamento da acentuação rítmica. A síncope, a quebra rítmica em uma marcha, é característica que a define como marcha fúnebre. Tanto a marcha fúnebre de Chopin quanto a de Beethoven apresentam ritmos quebrados, sincopados:
O refrão é o ponto mais alto do poema, pois nele a estrutura funérea da marcha se deixa desvelar. Como já foi dito, o sintagma “boi morto” apresenta uma complexa estrutura sonora de efeitos medonhos. No entanto, ao apresentá-lo em uma série de repetições, consegue-se obter um ritmo diferente, quebrado, sincopado. Quando o sintagma aparece pela primeira vez no refrão, ele se configura como uma unidade sonora só. A vogal “i”, que encerra o termo “boi”, se junta à consoante “m” e, por consequência disso, tem se a impressão de que se trata de apenas uma unidade sonora. O mesmo acontece quando o sintagma se repete pela primeira vez no refrão: os dois termos, “boi” e “morto” se ligam novamente. Dessa vez, no entanto, por conta de um aparente crescendo os termos parecem se separar um pouco. É apenas na última repetição que cada termo se permite ser ouvido sem elisão. Porém, o efeito de “nota quebrada” acontece, uma vez que “boi” é monossílabo e “morto” é dissílabo. “Morto”, portanto, tem duração duas vezes maior que “boi”. Dessa forma, é possível representar o refrão de boi morto da seguinte forma em uma pauta musical:
Essa estrutura rítmica do refrão de “Boi morto” muito se assemelha ao refrão da famosa “Marcha fúnebre” de Chopin, terceiro movimento da sonata em Si bemol menor, Opus 35, número 2.
A tradição musical associa os tons menores à tristeza, melancolia, enquanto os tons maiores à alegria e felicidade (Lundin, 1967). As marchas fúnebres, grosso modo, têm o tema desenvolvido quase que por completo em tons menores, e contém um interlúdio em tom maior. A marcha fúnebre de Beethoven, por exemplo, apresenta um desenvolvimento em lá bemol maior e um interlúdio em lá menor. A marcha fúnebre de Chopin, por sua vez, é desenvolvida em si bemol menor, mas o interlúdio está em tom maior, ré bemol maior.
“Boi morto”também apresenta uma marcada divisão tonal. O tema principal, isto é, a primeira estrofe, encontra-se em tom menor não apenas por conta de seu caráter lôbrego, mas, sobretudo, por conta da presença de vogais fechadas e nasais. A estrofe que segue o refrão, porém, apresenta uma trama imagética inegavelmente mais serena que a primeira. No entanto, o que permite acusar a tonalidade maior da estrofe é a constante aparição da vogal aberta “a”.
A terceira estrofe do poema consiste em uma monumental coda, isto é, uma espécie de cadência expandida em que ocorre a recapitulação temática inicial e que leva a peça ao seu trágico grand finale. Como ensinou Burkhart (2005), a coda leva a ideia central da peça à sua conclusão estrutural. A passagem em questão do poema “Boi morto” não apenas recapitula o grande tema, isto é, retoma o medonho refrão de acento trágico, mas assume a forma quebrada, sincopada deste por intermédio de um gritante enjambement.
A forte importação de processos musicais utilizados nesse poema coopera com uma série de recursos poéticos referentes ao plano subjetivo da peça, próximo ponto de análise deste texto.
O plano subjetivo
Não é surpreendente encontrar na obra poética de Manuel Bandeira a temática da morte. A “Indesejada das gentes”, “que é o fim de todos os milagres”, é, junto com a infância, um dos temas dominantes na obra do poeta pernambucano. É no mínimo curioso, porém, a forma com que a imagem da morte é apresentada em “Boi morto”.
A trama imagética já é intensa desde a primeira estrofe. O comparecimento de elementos como as águas turvas de enchente e o enorme boi morto já anunciam o tom revestido em negrume do poema. A imagem de uma criatura enorme e pesada, que é o boi, a rolar, é pavorosa e atua junto das palavras mencionadas para criar o tom soturno do primeiro verso. Também é notável a utilização das palavras “destroços”, “dividido”, “subdividido”, pois estas, além de indicar a fragmentação subjetiva do eu lírico, estão em uma intensa conexão com o ritmo sincopado do poema.
O refrão, composto de vogais fechadas, ecoa assustador entre as estrofes de cinco versos. A repetição persistente do refrão, tal como um dobre de finados, cria uma monotonia obsessiva em relação à morte.
Vale observar ainda a brusca mudança de tons entre a primeira e a segunda estrofe. Aquela é escura, enternecida, enquanto esta é lírica e serena. Como já foi dito, a primeira estrofe possui uma trama imagética que remete a elementos obscuros. A segunda estrofe, por sua vez, introduz elementos como “árvores”, “paisagem”. A caracterização da paisagem como sendo calma muito contribui para atmosfera serena da estrofe e, junto do numeroso aparecimento da vogal aberta “a”, ela modula o tom poético da estrofe.
Outro aspecto importante da terceira estrofe é o violento enjambement que fratura o sintagma ‘boi morto’ do segundo para o terceiro verso. O choque deste enjambement é preparado pelo advérbio de modo “espantosamente” surpreendentemente modificandoum substantivo, “boi”. O caráter da fragmentação deste eu lírico dividido e subdivido se torna ainda mais perceptível.
Tanto o plano objetivo quanto o subjetivo são firmemente sustentados por uma estrutura rígida e coerente. O plano subjetivo, sozinho, sustenta o poema como uma unidade de sentido e o mesmo o faz o plano objetivo. Se, por um lado, Bandeira faz uso de diversificados recursos poéticos tais como intensa trama imagética, complexa rede sonora e uma metrificação rigorosa e propositalmente irregular, por outro, ele insere no poema elementos como ritmo, dinâmica, modulação, timbre.
A ousadia de criar um poema estruturado em dois níveis, porém, resulta em uma obra cuja estrutura majestosa sobrepassa o conceito de poesia ou de música, e se verifica como verdadeiro poema-música, em que os termos “poema” e “música” não se sobrepõem, mas cooperam e dão à obra dupla coerência. Bandeira, como Ravel, não faz simples alusões à música por meio de seus poemas. Os poemas em si são obras musicais de uma estrutura complexa e calculada. O trabalho musical, seja pela exploração rítmica, seja pela escolha da forma musical, seja pelo desenvolvimento dos temas, gera uma poesia que não reflete ou que apenas se deixa influenciar pela música, mas que é música por si só.
Boi morto
Manuel Bandeira (Opus 10)
Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto,
Boi morto, boi morto, boi morto.
Árvores da paisagem calma,
Convosco – altas, tão marginais! –
Fica a alma, a atônica alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto,
Boi morto, boi morto, boi morto.
Boi morto, boi descomedido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto,
Boi morto, boi morto, boi morto.
Referências bibliográficas:
BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.
_________. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1966.
BERTRAND, Aloysius. Gaspard de la Nuit – Fantaisies à la manière de Rembrandt et de Callot. Paris: Imprimerie Chanteney, 1946.
BURKHART, Charles. “The Phrase Rhythm of Chopin’s A-flat Major Mazurka, Op. 59, No. 2” in: STEIN, Deborah. Engaging Music: Essays in Music Analysis, p.12. New York, Oxford University Press, 2005.
HENDEKLI, Zehra. Ravel and His Extra-musical Associations in Solo Piano Works. Tese de Pós-doutorado em música. Istanbul: Institute of Social Sciences. Istanbul Technical University, 2008.
KIEFER, Bruno. Elementos da linguagem musical. Porto Alegre: Movimento, 1979.
LUNDIN, R. W. An Objective Psychology of Music. New York: The Ronald, 1967.
RAVEL, Maurice. Gaspard de la Nuit: Trois poèmes pour piano d’après Aloysius Bertrand. Paris: A. Durand & Fils., 1909.