ICRA: 10 anos
ARTIGO/
Mario Novello* //
Discurso proferido na cerimônia de abertura do seminário “ICRA 10” realizado de 7 a 10 de abril de 2014 no CBPF/Rio de Janeiro, em comemoração ao 10º aniversário do Instituto de Cosmologia Relatividade e Astrofísica (ICRA).
+ em: http://www.icra10.org
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“Não existiria tecnologia alguma não fosse o trabalho dos cientistas dedicados à pesquisa fundamental. Trata-se, portanto de equívoco estabelecer como veracidade o desenvolvimento tecnológico e a inovação como se essas áreas aplicadas pudessem se desenvolver sozinhas ou autonomamente. Sem o lastro de uma forte ciência fundamental o mais que conseguiremos é aprender a fazer cópias de produtos industrializados criados pela ciência fundamental das nações desenvolvidas. A Coreia e principalmente a China – países que estão despontando como nações altamente industrializadas – há décadas investem massiva e sistematicamente em ciência fundamental. Se não seguirmos esse caminho estaremos condenados a ser eternos copiadores das ideias alheias.”
Com essas palavras, o Ministro Roberto Amaral restabelece uma verdade que em alguns momentos nossos administradores teimam em esquecer.
É compreensível que no estágio atual de nossa economia e sistema político, governos apoiem o desenvolvimento de centros de pesquisa tecnológica. Isso não é somente possível mas é mesmo desejável. A descrição acima, no entanto, permite entender como seria fora de propósito e até mesmo ingênuo e inoperante imaginar que um Centro de excelência – por exemplo, como o CBPF – que pautou sua existência para se firmar como dedicado à pesquisa fundamental, possa ser transfigurado em um centro de aplicações técnicas.
A inspiração da formação do ICRA teve uma longa maturação a partir de conversas com Cesar Lattes, José Leite Lopes, Jayme Tiomno, Roberto Salmeron, Alberto Santoro, Sérgio Joffily, José Martins Salim, Luis Alberto Oliveira, Nelson Pinto Neto e outros sobre a institucionalização da atividade científica.
Foi para continuar aquele caminho que herdamos dos pais fundadores deste Centro que começamos a imaginar a extensão de nosso grupo de gravitação do CBPF, seguindo a orientação que presidiu as origens e a formação em 1949 do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.
Não é este o lugar para discursar sobre essa história. Mas é importante fazer dois ou três comentários para situar como entendo a orientação do ICRA que se propõe, ontem como hoje, a continuar uma honrosa e orgulhosa tradição deste CBPF: a ênfase na pesquisa fundamental.
E é essa forma de compreender a nossa atividade aqui que queremos manter. A razão de Roberto Amaral me parece importante e devemos acolhê-la como parte de nossa inserção na sociedade. Causa até mesmo espanto reconhecer que sua argumentação (isto é, de que a técnica não pode prescindir de um estágio anterior identificado com a ciência fundamental) não tenha total aceitação junto aos dirigentes de nossas instituições.
Com sua experiência de vida dedicada a produzir condições para o desenvolvimento científico em nosso país, Roberto Amaral nos ensina – ou, pelo menos é a leitura que faço de suas palavras – quão perigoso é, para a atividade de pesquisa, subordiná-la a um propósito definitivo e material.
Sim, uma tal sujeição é possível. É claro que podemos expandir o domínio da atividade aplicada, usando e desenvolvendo as práticas que permitem manipular estruturas para obter resultados que são entendidos como úteis e impondo que a atividade científica tenha isso presente o tempo todo. Mas devemos reconhecer no entanto que a pesquisa constrangida sob o olhar de sua eventual aplicabilidade é um caminho limitado. Imita as folhas que caem das árvores nesse começo de outono e que não têm movimento próprio. Aquilo que controla sua dinâmica, sua valsa no ar, está fora dela; a folha flutua ao sabor do vento e é submetida a interesses cujo controle está fora dela, alhures.
O modo prático de realizar a ação da pesquisa, de orientá-la, é uma contradição que Nuccio Ordine caracteriza de modo chocante e direto em seu belíssimo texto “A utilidade do inútil”.
Como disse nosso Ministro, a tecnologia, com suas aplicações de interesse da sociedade e seu desenvolvimento, só é possível porque segue os caminhos abertos por desbravadores que muito antes, e com outros propósitos, os construíram. E que permitiram a produção de máquinas que a sociedade pôs a funcionar.
E no entanto, essa motivação, essa íntima conexão entre produção tecnológica e ciência que ousa pretender dar a esta sua razão-de-ser devido àquela, não é única. Não podemos considerá-la suficiente. Mais ainda, dela devemos nos afastar. Ela não deve servir para produzir subterfúgios a serem usados no diálogo com as autoridades que servem, no mundo de hoje, como agentes dos procedimentos de controle de recursos financeiros da atividade de pesquisa.
Devemos enfrentar o temor de sermos postos de lado, de sermos considerados inúteis pelos dirigentes, mas devemos honestamente afirmar qual deve ser nossa função, qual deve ser a função do cientista.
No mundo capitalista em que fomos projetados no século XX e que não parece ter fim em futuro próximo, aceitamos – como uma tática de despistamento – que a ciência deve ser entendida a serviço de sua aplicação, do seu produto final como resultado de um engajamento no bem-estar material.
Mas a ciência não deve ter esse disfarce. A ela não devemos atribuir uma função aparentemente nobre – o bem-estar social – mas que a torna mesquinha, a faz perder sua grandiosidade. A atividade científica em sua origem deve se pautar como sua rival e companheira, a metafísica, e produzir uma visão de mundo.
A Cosmologia mostrou como é possível substituir no imaginário popular a religião pela ciência, em particular na formidável questão da origem de tudo-que-existe. Mas não devemos fabricar ilusões, nem devemos tentar ser substitutos da religião, produzindo certezas e mitos que possam até ter o encantamento dos antigos mitos cosmogônicos de criação.
A ciência tem o papel de produzir questões sobre o mundo. Tentar descrevê-las segundo o método racional e procurar alternativas de soluções. Nunca ousar pensar em conseguir a resposta completa de nenhuma delas. Exceto daquelas questões menores, cujas respostas podem ser obtidas por um caminho, árduo ou não, mas que não permitem gerar uma visão-de-mundo, a não ser que nos contentemos com as migalhas da razão que o método cientifico permite obter.
A pretensão da atividade científica deve ser muito maior. Afinal, mesmo que a cidade de Utopia (a cidade idealizada, que não existe como as outras cidades, porque literalmente em grego ou-topos significa a cidade que está fora do espaço) não esteja a nosso alcance e que Thomas Morus não a tenha encontrado mas sim visto uma miragem nos longínquos mares do sul, é nesse território da Utopia que devemos procurar o elixir que nos permite viver e manter esse diálogo contínuo e permanente com a Natureza. É com esse espirito, com uma pretensão desmesurada e encharcados do encantamento daquela Utopia, que pensamos em construir o ICRA.
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*Mario Novello é cosmólogo e professor emérito do ICRA/CBPF.