Hume e a justiça como solidariedade afetiva
Distinguindo-se da teoria clássica que compreende a justiça como uma virtude natural, uma lei da natureza, uma verdade eterna presente no espírito humano, Hume vai pensar a justiça como uma virtude artificial, que estabelece, por meio da convenção, as regras de conduta que balizam o agir do homem. Esta virtude não é pensada como fruto da reflexão racional, mas sim como uma paixão que deve se alargar o suficiente para ultrapassar o amor próprio característico de cada sujeito. Nesse sentido, a justiça não seria uma contenção das paixões, mas uma paixão estendida, uma ampliação daquilo que o sujeito experimenta por si mesmo. Em uma palavra, a justiça seria pensada como solidariedade afetiva.
1 Introdução
De modo geral, encontra-se no empirismo ideias que destoam da maneira habitual de pensar, o que produz naquele que o ouve, à primeira vista, certo sentimento de estranheza. Em relação à ideia de justiça, por exemplo, isso é bastante evidente, uma vez que consagrou-se sua compreensão, desde Aristóteles, a partir de uma teoria da virtude (1992). A justiça seria uma virtude natural e o bom cidadão, o cidadão educado, o homem virtuoso, naturalmente seria o homem que respeita as leis, fossem elas escritas ou não escritas.
No pensamento clássico, a ideia central é que a razão natural ensina aos homens os preceitos da moralidade e da justiça. Estes preceitos são, então, chamados de leis da natureza. A justiça seria, pois, uma qualidade inerente ao espírito, um princípio natural capaz de inspirar nos homens a conduta adequada com os demais. Esta teoria clássica da justiça será abandonada por Hume, que revelará outro caminho nada familiar ao senso comum: a justiça será pensada não como um produto da razão, mas das paixões humanas; será entendida como uma virtude artificial e não natural e se explicaria por uma solidariedade afetiva.
2 A justiça como produto das paixões
Hume desvia-se da ideia banal de que no combate entre razão e paixão, deve-se dar preferência à razão, posto que o homem só é virtuoso quando se conforma a seus preceitos e quando regula suas ações pela razão (HUME, 2001, II, III, III, p. 448-449). Ao invés de compreender que o senso de justiça se funda na razão, na descoberta de certas conexões e relações de ideias eternas, imutáveis e universalmente obrigatórias, Hume compreenderá a justiça como um produto da afecções do espírito (DELEUZE, 2001, p. 11), isto é, resultante do modo como o espírito é afetado.
A justiça não será descoberta mediante um raciocínio demonstrativo, mas sim encontrado no próprio íntimo do sujeito, na experimentação de um sentimento ou de uma impressão. A justiça não seria um produto da razão, porque esta é incapaz de produzir uma ação ou mesmo causar ou impedir um ato volitivo, sendo essa tarefa apenas uma tarefa da paixão: “nada pode se opor ao impulso da paixão, ou retardá-lo, senão um impulso contrário” (HUME, 2001, II, III, III, p. 450; III, I, I; III, II, II).
Para Hume, a razão não será capaz de, por si mesma, ditar leis de funcionamento do mundo moral ou jurídico, leis essas que deveriam ter um caráter de evidência e eternidade – todos os homens, em todas as épocas, de modo evidente, saberiam conhecer e estabelecer seus enunciados. Obviamente, não se trata de abolir a presença da razão, mas o seu papel seria outro: o que a razão humana estaria capacitada a fazer seria calcular as consequências dos atos humanos, avaliando onde se poderia, em função das paixões envolvidas, encontrar menor sofrimento e/ou maior satisfação.
Assim, as leis que versam sobre a posse, o cumprimento das promessas, ou quaisquer outras que garantam a paz social, não se fundam nem em uma natureza divina nem na produção da superior faculdade da razão – são invenções humanas impulsionadas pelas paixões – aquilo que há de mais vigilante e inventivo no homem (HUME, 2001, III, II, VI, p. 565).
3 A utilidade da vida em sociedade
Hume diz que o homem é o animal com quem a natureza foi mais cruel, posto que possui inúmeras carências e necessidades, mas não dispõe de meios suficientes para satisfazê-los, ao passo que nos demais animais essa equação é equilibrada. Diz Hume que ele é “inteiramente incapaz de se bastar a si mesmo” (2001, II, II, IV, p. 386): seu alimento exige trabalho para ser produzido, ele precisa de roupas e abrigo para se defender das intempéries, mas em contrapartida não dispõe naturalmente de armas, forças ou habilidades condizente com tais exigências, o que pode lhe acarretar a ruína e a infelicidade (2001, III, II, II, p. 525-526).
Como nunca há uma quantidade suficiente de bens possam satisfazer todas as necessidades e desejos humanos, o homem encontra na reunião em sociedade um meio de suprimir suas necessidades, e esta vantagem é afirmada e estendida pelas sucessivas gerações, o que faz o homem se igualar ou mesmo se sobrepor aos animais.
A sociedade fornece, então, um remédio para os inconvenientes humanos: “a conjuncão das forças amplia nosso poder; a divisão de trabalho aumenta nossa capacidade; e o auxílio mútuo nos deixa menos expostos à sorte e aos acidentes. É por essa força, capacidade e segurança adicionais que a sociedade se torna vantajosa” (HUME, 2001, III, II, II, p. 526, grifo do autor). Para Hume, a percepção desta vantagem não advém do estudo ou da reflexão, mas sim do apetite natural existente entre os sexos que une inicialmente os homens até a formação de um núcleo comum. Depois, a partir do costume e do hábito, os homens tornam-se sensíveis às vantagens que é a vida em sociedade, sabendo inclusive que devem minimizar as adversidades que podem vir a impedir essa composição.
3.1 A parcialidade
Há, na própria natureza humana, particularidades contrárias à união com os demais, sendo a mais importante, o amor que cada pessoa sente sobre si mesmo que é maior do que o amor que sente sobre qualquer outro, o que Hume chama de parcialidade (2001, III, II, II, p. 526-529). Eis suas palavras: “na estrutura original de nossa mente, nosso maior grau de atenção se dirige a nós mesmos; logo abaixo, está a atenção que dirigimos a nossos parentes e amigos; e só o mais leve grau se volta para os estranhos e as pessoas que nos são indiferentes” (2001, III, II, II, p. 529).
O homem é, pois, parcial, pois é sempre homem de um clã, de uma comunidade, de uma coletividade. O parentesco, a familiaridade e a semelhança constituem vínculos e unem os homens em laços afetivos mais ou menos estreitos de acordo com a proximidade estabelecida (HUME, 2001, II, II, IV). “Os homens naturalmente amam seus filhos mais que seus sobrinhos, seus sobrinhos mais que seus primos, seus primos mais que estranhos, nos casos em que todas as outras circunstâncias são iguais” (HUME, 2001, III, II, II, p. 524). A parcialidade se traduz no fato do homem se apaixonar primeiramente por seus pais, seus próximos e semelhantes e assim a família é explicada pela simpatia: simpatia dos pais por sua progenitura e simpatia dos parentes entre si. (HUME, 2001, III, II, II, p. 524). Ainda que a sociedade seja na origem uma reunião de famílias, o próprio das unidades familiares é não se adicionarem, mas se excluirem, isto é, serem parciais e não partícipes (DELEUZE, 2001, p. 34), reforçando a ideia de que a generosidade humana seja, por natureza, limitada (HUME, 2001, III, III, I, p. 625).
Desse modo, os pais de um são sempre estrangeiros de outro, o que se traduz na não identificação dos interesses particulares, mas sim na diferença das parcialidades. Como ninguém tem as mesmas simpatias que o outro, sendo, como já dito, a generosidade dos homens muito restrita, raramente indo além dos seus familiares e amigos (HUME, 2001, III, II, III, p. 642), resultam daí as distinções que fazem eclodir a violência. Diz Hume: “cada homem particular ocupa uma posição peculiar em relação aos outros; e seria impossível conseguir conversar com alguém em termos razoáveis se cada um de nós considerasse os caracteres e as pessoas somente como nos aparecem de nosso ponto de vista particular” (HUME, III, III, I, p. 621).
De todo modo, os homens se tornam sensíveis às vantagens da vida em sociedade, tornando possível a convivência e a conversação, observando que a principal perturbação da sociedade vem dos bens externos, aqueles adquiridos pelo trabalho e pela sorte, que não existem em quantidade suficiente para suprir os desejos e necessidades de todas as pessoas. Por conseguinte, estes bens estão expostos à violência e podem ser transferidos ao outro sem sofrer qualquer perda ou alteração. O remédio para isso não vem da natureza, mas sim do artifício, da convenção. Desta convenção devem participar todos os membros da comunidade, permitindo que todos possam gozar pacificamente do que conquistaram por seu trabalho ou por sua sorte.
Mas não há na mente humana um afeto tão poderoso a ponto de, por si só, frear essa paixão. “Não há uma só paixão, portanto, capaz de controlar a afeição motivada pelo interesse, exceto essa própria afeição, por uma alteração de sua direção” (2001, III, II, II, p. 532). Assim, não será um imperativo da razão que estabelecerá a justiça, mas uma necessidade sentida, uma simpatia cunhada artificialmente. Uma paixão para vencer outra, porque “essa avidez de obter bens e posses, para nós e nossos amigos mais íntimos, é insaciável, infindável, universal e diretamente destrutiva para a sociedade. Não há praticamente ninguém que não seja movido por ela, e não há ninguém que não tenha razão para temê-la quando ela atua sem restrições, entregue a seus movimentos primeiros e mais naturais. De modo geral, portanto, devemos considerar que as dificuldades para o estabelecimento da sociedade são maiores ou menores, segundo as dificuldades que temos para regular e restringir essa paixão” (2001, III, II, II, p. 532).
A imaginação terá um papel primordial nesse processo, projetando as paixões para além dos seus limites originários e criando assim o mundo da cultura – um mundo artificial, mas onde a conversação é possível, a pacificidade substitui a violência, a propriedade substitui a avidez. Isso não é feito de modo natural, mas sim artificial. Diz Hume que as leis da justiça não podem provir da natureza, nem ser criações diretas de uma inclinação e de um motivo naturais (HUME, III, II, II, p. 524-525). Para Hume, a justiça não é uma regra da natureza, mas uma regra de construção cujo papel é organizar os princípios da própria natureza (DELEUZE, 2001, p. 36). Trata-se da construção de uma totalidade artificial onde se integram fins particulares, permitindo que interesses diversos possam se satisfazer e se realizar.
Por isso diz Hume: “a verdadeira origem [das leis de justiça] é o amor por si mesmo; e como o amor que uma pessoa tem por si mesma é naturalmente contrário ao das outras pessoas, essas diversas paixões interessadas são obrigadas a se ajustar umas às outras de maneira a concorrer para algum sistema de conduta e comportamento” (2001, III, II, VI, p. 568).
4 As condições que produzem a justiça
Para pensar a origem da justiça, e mostrar que ela não é um dado da natureza, que se imporia ao homem necessariamente, independente de quaisquer circunstâncias, Hume apresenta quatro cenários distintos envolvendo a natureza humana e as condições da natureza. No primeiro cenário, a natureza teria dotado a raça humana de uma enorme abundância de modo que todo indivíduo sem qualquer esforço, se encontraria provido de tudo o que seus apetites, mesmo os mais vorazes, ou sua imaginação, mesmo a mais criativa, pudessem desejar. Nessa mui afortunada condição, os homens desconheceriam o que vem a ser a justiça, pois “qual seria o propósito de efetuar uma repartição de bens quando cada um já tem mais do que o suficiente? Para que fazer surgir a propriedade quando é impossível causar prejuízo a quem quer que seja? Por que dizer que este objeto é meu quando, caso alguém dele se apodere, basta-me esticar a mão para apropriar-me de outro de igual valor?” (HUME, 1995, p. 36). Tanto é assim que mesmo na real e pobre condição humana, os bens que existem em abundância como o ar e a água são considerados comuns para os homens, sem o estabelecimento de direitos e propriedades sobre eles. Diz Hume que quando algo é abundante o bastante para satisfazer o desejo dos homens, tudo passa a ser comum a todos e a propriedade desaparece (2001, III, II, II, p. 535).
Na segunda hipótese imaginada por Hume, o espírito humano se engrandeceria, se agigantaria, de modo a experimentar plenamente sentimentos generosos e amigáveis por todos, sem distinção, de modo que um homem não sentiria por si mais interesse ou preocupação do que pelos demais. Aqui todos os homens, por uma forte inclinação, desejariam a felicidade do outro como a de si mesmo e compartilhariam em conjunto todas as alegrias e todas as tristezas com a mesma força e vivacidade, formando como que uma única família onde tudo seria possuído em comum e usado livremente. Também nesse caso, “em vista de tamanha benevolência, o uso da justiça ficaria suspenso… e jamais se cogitaria aqui as divisões e barreiras da propriedade e da obrigação” (HUME, 1995, III, p. 37). Ou seja, quando a afeição é plena entre os homens, equivalendo a afeição ao outro à afeição que um indivíduo sente por si mesmo, abre-se mão da distinção de posse, razão pela qual nessa possibilidade, a ideia de justiça seria mesmo desconhecida ao homem.
No cenário inverso ao primeiro, a sociedade viveria uma carência extrema de todas as coisas necessárias para a subsistência, levando mesmo à miséria de todos e à morte da maioria, em um cenário em que a sociedade estaria prestes a sucumbir de extrema penúria. “Numa tal emergência admitir-se-á prontamente, segundo acredito, que as leis da justiça estarão suspensas, dando lugar aos motivos mais fortes de necessidade e autopreservação” (HUME, 1995, III, p. 39). Este cenário é equivalente ao da guerra civil, onde as leis da guerra assumem o lugar das leis de justiça.
Na hipótese inversa à segunda, o homem experimentaria grande malícia e rapacidade, expressando uma voracidade desesperada, um descaso pela equidade, uma estúpida cegueira diante das consequências futuras. Aqui a consideração individual do homem pela justiça não tem mais utilidade para sua segurança ou a dos outros e “ele deve consultar apenas os ditados da autopreservação, sem preocupar-se com aqueles que não mais merecem cuidado e atenção” (HUME, 1995, III, p. 41).
Logo, fica evidente que as regras de justiça dependem do estado em que o homem se encontra e deve sua origem à utilidade que proporcionam. Dado que estas situações limites apresentadas por Hume não são as que se caracterizam tanto o relacionamento humano, quanto a vida em sociedade, torna-se inteiramente indispensável o uso da justiça e sua existência advém inteiramente daí. Os homens vivem um meio-termo entre essas condições, sendo naturalmente parciais consigo mesmo e seus amigos, mas também sendo capaz de experimentar a vantagem da conduta equânime (HUME, 1995, III, p. 42). Ou seja, a justiça tira sua origem da generosidade restrita dos homens, em conjunto com a escassez das provisões da natureza frente aos desejos e necessidades humanas (HUME, 2001, III, II, II, p. 536).
Em resumo: a equidade e a justiça dependem inteiramente do estado e situação particulares em que os homens se encontram. Em extrema abundância ou extrema penúria a obrigatoriedade da justiça sobre os seres humanos torna-se suspensa. Isto quer dizer que não há uma necessidade divina ou transcendental da justiça, que ela não existe a priori, que não possui uma existência independente e prévia. Dependendo das relações, ela pode se tornar necessária ou não. Do modo como a sociedade se constitui, a justiça se torna necessária para a subsistência humana. A natureza humana encontra na associação de indivíduos uma melhor forma de existir e essa associação não pode ter lugar se não houver respeito aos princípios da eqüidade e da justiça. Ocorre um sentimento geral de interesse comum e uma comunicação mútua deste sentimento entre os membros desta sociedade, que as induz a regular sua conduta mediante certas regras.
Vê-se claramente aqui que é a preocupação com o interesse pessoal e com o interesse público que fez estabelecer as leis da justiça, mas que essa preocupação não vem de uma relação de ideias, mas das impressões e sentimentos humanos. Ou seja, o senso de justiça se funda nas impressões humanas, impressões estas que não naturais à mente do homem, mas sim surgidas de seus artifícios e convenções (HUME, 2001, III, II, II, p. 536-537). Quando essa convenção é implantada surge a idéia de justiça e injustiça, como também a idéia de propriedade, direito e obrigação (HUME, 2001, III, II, II, p. 531).
5 A justiça como virtude artificial
Nem racional, nem natural. A justiça é uma convenção necessária, produzida graças a um artifício, dadas determinadas condições humanas. Mudam-se estas condições, desaparece a necessidade de justiça. Diz Hume: “o remédio, portanto, não vem da natureza, mas do artifício; ou, mais corretamente falando, a natureza fornece no juízo e no entendimento um remédio ao que há de irregular e de inconveniente nos afetos” (2001, III, II, II, p. 529).
As regras de justiça são estabelecidas pelo artifício dos homens e há razões pelas quais o homem é levado a considerar belo a obediência a essas regras e vicioso a desobediência (HUME, 2001, III, II, II, p. 525). A justiça deriva sua existência inteiramente de seu indispensável uso para o relacionamento humano e a vida em sociedade. Ela promove a utilidade pública e dá suporte à vida coletiva. Da mesma forma, o governo, a legitimidade da autoridade política se deve ao fato de ser uma invenção vantajosa, necessária para a comunidade. A experiência que eles obtêm da segurança fornecida pela sociedade política instrui-os para a obediência ao poder, isto é, os homens habituam-se a obedecer. O hábito advindo da utilidade social é a verdadeira legitimação da autoridade (CHEVALIER, 1983, p. 136).
Na sociedade politicamente organizada os mútuos conflitos e antagonismos de interesses e auto-estima forçaram a humanidade a estabelecer as leis de justiça para preservar as vantagens da mútua assistência e proteção e também ao estabelecimento da convivência social das regras de boas maneiras para facilitar o trato e um tranqüilo relacionamento e comunicação. Os homens vivenciariam uma gradual ampliação de seu respeito pela justiça à medida que se familiarizaria com a extensa utilidade dessa virtude (HUME, 1995, III, p. 48). Também a obediência civil, o direito internacional, a modéstia e as boas maneiras são invenções humanas que visam ao interesse da sociedade.
Em resumo, ao invés de pensar a justiça como uma virtude natural, uma lei da natureza, uma verdade eterna presente no espírito humano, ele vai pensar a justiça como uma virtude artificial (HUME, 2001, III, II, I, p. 517; III, II, VI, p. 565), que estabelece, por meio da convenção, as regras de conduta que balizam o agir do homem.
6 Ultrapassar a parcialidade originária
Do século XVI ao XVIII as teorias do contrato consideraram a natureza humana egoísta e pretenderam que o problema social deveria ser o da limitação dos direitos naturais do homem. Na limitação ou mesmo na renúncia a esses direitos o egoísmo humano seria contido e nasceria o contrato social. Hume não define o homem pelo egoísmo, mas sim pela parcialidade e aqui a diferença não será apenas semântica, mas modificará a sua própria teoria da justiça (1995, seção II). Deleuze esclarece que o egoísmo só pode designar certos meios que o homem organiza para satisfazer sua tendências, por oposição a outros meios possíveis (2001, p. 41). Ao invés de propor uma limitação do egoísmo e dos direitos naturais a ele correspondente, Hume dirá que a questão da justiça é um ultrapassamento das parcialidades, passando o homem de uma simpatia limitada a uma generosidade ampliada (DELEUZE, 2006, p. 217).
Se a justiça fosse uma restrição contrária à paixão ela não poderia ser mantida (2001, III, II, II, p. 530). O problema então da justiça é como fazer para estender as paixões, como integrar as simpatias, ou como fazer para se estabelecer uma simpatia solidária, fazendo com que se possa ultrapassar a parcialidade originária e experimentar uma parcialidade ampliada, ou seja, dar às paixões uma extensão que por si mesmas elas não tem, o que perfeitamente pode ser chamado de solidariedade.
Ao invés de limitações contratuais e constrangimentos legais, a justiça seria uma experiência de ampliação do sujeito, uma experiência de integração e de afirmação. Como diz Deleuze, ao invés de uma imagem abstrata e falsa da sociedade, que a define apenas de modo negativo, caracterizando-a como um conjunto de limitações de egoísmos e interesses, é preciso vê-la como um sistema positivo de empreendimentos inventados (2001, p. 34). Para tal, é preciso criar instituições que forcem as paixões a se expandir; inventar artifícios que sejam capaz de formar outros tantos sentimentos morais, jurídicos, políticos (DELEUZE, 2006, p. 217).
Daí que a essência da sociedade não é a lei, mas a instituição, posto que a lei marcada que é pela limitação, estabelece apenas um aspecto negativo, limitativo ou alienado da sociedade (DELEUZE, 2001, p. 42). “A sociedade é um conjunto de convenções fundadas na utilidade, não um conjunto de obrigações fundadas em um contrato. Socialmente, portanto, a lei não é primeira; supõe uma instituição que ela limita (DELEUZE, 2001, p. 43).” O vínculo não está posto entre Direitos e lei, mas entre necessidades e instituições. Deleuze diz, inclusive, que esta teoria pode oferecer critérios políticos, posto que a tirania seria o regime onde há muita lei e pouca instituição e a democracia, o contrário (2006, p. 30).
O princípio da regra geral reside na utilidade. Em Hume o problema é revertido, posto que a obrigação da lei supõe uma utilidade. A utilidade será a da instituição, um modelo de ações, invenção positiva de meios indiretos (DELEUZE, 2001, p. 42).
Hume fala de instituições sociais e não governamentais: no casamento, a sexualidade se satisfaz; na propriedade, a avidez. Ela é um modelo de satisfação possível. (DELEUZE, 2001, p. 43-44). “Os homens … não podem mudar suas naturezas. Tudo o que podem fazer é mudar sua situação, tornando a observância da justiça o interesse imediato de algumas pessoas particulares e, de sua violação, seu interesse mais remoto” (HUME, 2001, III, II, VII, p. 576). Dito de outra maneira, a filosofia política não deseja mudar a natureza humana, mas inventar condições artificiais para que alguns aspectos dessa natureza não possam triunfar.
Hume vai dizer que pela simpatia o homem pode ter uma concepção tão viva de uma situação que chega a fazer dela o seu próprio interesse, tornando-se sensível a dores e prazeres que não lhe pertencem ou mesmo que não tenham uma existência real no instante presente. Em outras palavras, a simpatia deve se ampliar de modo tal a produzir no homem um desejo pelo prazer do outro e uma aversão pelo seu penar (2001, II, II, IX, p. 421). Quando ocorre a extensão da simpatia, essa ideia é tão viva que o sujeito chega a sentir em si mesmo esse sentimento (2001, II, II, IX, p. 420). Ou, dito de outra forma, a simpatia é o princípio que leva o homem a sair de si mesmo, experimentando prazer ou desprazer frente ao que é útil ou nocivo à sociedade (2001, III, III, I, p. 618).
Ser afetado pelas paixões relacionadas ao outro, se preocupar com a boa ou má sorte de uma pessoa, eis um homem cuja simpatia é alargada; eis um homem solidário. Diz Hume: “alegramo-nos com seus prazeres e entristecemo-nos com suas aflições, pela mera força da simpatia. Nada que lhes interesse nos é indiferente” (2001, II, II, X, p. 424).
Participamos, por simpatia, do desprazer do outro. E, por conseguinte, chamaremos viciosa a ação que levar a esse sentimento de desprazer. Por outro lado, também por simpatia, chamaremos virtude a ação que leva ao sentimento do prazer. Assim, a justiça será dita uma virtude e a injustiça um vício (HUME, 2001, III, II, II, p. 539-540). “O interesse próprio é o motivo original para o estabelecimento da justiça, mas uma simpatia com o interesse público é a fonte da aprovação moral que acompanha essa virtude” (HUME, 2001, III, II, II, p. 540).
Em resumo: da necessidade de ampliação das paixões torna-se necessário à sociedade a criação da convenção de um sentimento geral de interesse comum: a justiça. O fundo da justiça é, pois a integração das simpatias, a extensão da paixão. Inventar artifícios que forcem as paixões a ultrapassar a parcialidade e formar outros sentimentos morais, políticos e jurídicos é uma necessidade da vida em coletividade. Desse modo, estar em sociedade é substituir a violência pela conversação possível, ultrapassar as simpatias particulares e as parcialidades correspondentes. As paixões não são limitadas pela justiça, mas são ampliadas, dilatadas, tornando-se a justiça uma extensão da paixão, do interesse originário do homem.
Viver em sociedade consiste num ultrapassamento das simpatias particulares, construindo uma simpatia que vá além das parcialidades originárias dos homens e das contradições que surgem entre eles, com a seguinte condição: “que a simpatia natural possa, artificialmente, exercer-se fora dos limites naturais” (DELEUZE, 2001, p. 36).
O papel da regra geral será duplo: ao mesmo tempo extensivo e corretivo, dado que corrige os nossos sentimentos, fazendo-nos esquecer da situação presente (HUME, 2001, III, III, I, p. 621). Como se pode formar tais sistemas de regras? O que se inventa? Obviamente, os interesses particulares não podem se identificar ou totalizar naturalmente. É que as paixões se encontrarão diante da seguinte encruzilhada: ou se satisfazem artificialmente ou se negam pela violência. O que o artifício vai assegurar à simpatia e às paixões naturais é uma extensão na qual poderão se exercer liberadas de seus limites naturais. Como diz Deleuze, a justiça é “uma espécie de torção da própria paixão no espírito que ela afeta” (2001, p. 39).
7 Conclusão
Hume faz o pensamento caminhar numa outra direção. Ele destrói o edifício do chamado Direito Natural, construção essa típica da razão, tal como entendia a modernidade. Se a concepção clássica entendia que as noções de moralidade e justiça, as chamadas leis da natureza, são verdades evidentes por si mesmas, verdades eternas que a razão natural promove, Hume vai dizer que as regras de conduta são decorrentes da convenção e não da natureza e, por isso, são artificiais.
O sentimento de justiça não surge de um consenso superior das faculdades, mas sim como uma necessidade da vida cotidiana da sociedade. É a aliança dos homens em um sistema de conduta que faz de todo ato de justiça algo benéfico para a sociedade. As regras de justiça, as quais impõem limites precisos na distribuição e no uso dos bens, dependem da condição particular em que o homem se encontra e devem sua origem à utilidade que apresentam para a vida da sociedade humana. Para satisfazer essa necessidade, é preciso que haja uma extensão artificial da simpatia; um alargamento da parcialidade própria da natureza humana. A invenção da justiça é assim concebida como uma extensão das paixões.
Referências
ARISTOTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UNB, 1992.
CHEVALIER, Jean-Jacques. História do pensamento político: o declínio do Estado-Nação monárquico. Tomo 2. Rio de Janeiro: Guanabara-Kogan, 1983.
DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. Rio de Janeiro: 34, 2001.
______. Hume in ______. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006.
______. Instintos e Instituições in ______. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006.
HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. São Paulo: UNESP, 2001.
______. Uma investigação sobre os princípios da moral. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.