Glória e vanitàs nos Ensaios de Montaigne
Não por acaso Montaigne recai com frequência ao longo de seus Ensaios no universo das questões morais; imagens, sententia e exempla tradicionalmente vinculados à tópica clássica da ambição de glória – gloria cupiditas. Na Advertência ao leitor, a título de proêmio, define o projeto de sua escrita contrapondo-se à intenção de servir à edificação moral dos leitores e de conquistar a glória em contrapartida. A empresa de efetuar-se como livro de “bonne foy” voltado para si, ou, melhor dito, para a ‘pintura’ de um retrato do ‘moy’ em sua “maneira simples, natural e ordinária”, afirma-se a partir de um discurso radicalizado de desprezo da glória; duma recusa sempre reafirmada de compor a própria imagem no livro visando conquistar o “faveur du monde” [1].
Em De la Gloire no livro II, Montaigne desenvolve esta perspectiva crítica sobre o tema, combatendo aquilo que entende como excesso extremo deste tipo de ambição, personificado na figura de Cícero, que considerava a glória mais desejável que a própria virtude, e, portanto, como mote fundamental desta última. O que é refutado como excesso no exemplo de Cícero é uma certa ideia generalizada em seu próprio tempo acerca da virtude, ou seja, enquanto identificada consubstancialmente à fama do nome. Tal tradição, fortemente enraizada na moralidade romana desde os tempos arcaicos e reapropriada de modos diversos no contexto humanista, tende a subordinar o valor e dignidade da virtus à sua exteriorização no reconhecimento público e na glória imortal do nome. É possível reconhecer este ideário, por exemplo, nas palavras de Juno na Eneida de Virgílio quando aconselha Hércules a empenhar-se nas ações mais extraordinários a fim de aumentar sua fama e estender assim o alcance de sua virtus. O historiador romano Salústio, por sua vez, faz depender a própria dignidade da existência humana de sua exteriorização na reputação dos feitos: “parece-me que unicamente vive e usufrui a vida aquele que, entregue a qualquer tarefa, busca a glória de um feito ilustre ou de uma boa obra.”[2]
Com efeito, já na primeira sentença de seu ensaio sobre o tema, Montaigne explicita de modo inequívoco sua causa de romper essa identificação tradicional entre virtus e fama, desautorizando-a de pronto como ignorância. Remete-nos para tanto ao campo ontológico de uma crítica nominalista instaurando um abismo intransponível, por assim dizer, entre o plano interno da substância da “coisa” e do “nome” que a designa, tido como “peça estrangeira”. Desde o início do ensaio, assim, o nome, que é o apoio fundamental do renome, nos surge como realidade absolutamente distinta; destituída de qualquer correspondência natural ou essencial com a realidade a que se refere.
É a partir dessa crítica ontológica do nome que Montaigne passa propriamente ao seu tema: a crítica moral do renome[3]. Passa a diversificar e amplificar então com argumentos tomados às escolas filosóficas do helenismo – especialmente do estoicismo e do epicurismo – e ao pensamento cristão, a ideia da disjunção necessária entre virtus e fama. Entre os materiais mais decisivos à orientação geral do discurso, contam-se, notadamente, aqueles que ele extrai do Sêneca das Cartas e do Cícero do De Officis, afirmando ao seu modo a justeza do valor estoico de uma moral da consciência baseada no valor intrínseco e autônomo da virtude e negligente em relação a suas ‘recompensas’ externas. Dessa perspectiva, a virtus verdadeira desponta no ensaio sob a forma da consciência “bien regleé”, cuja conduta obedece exclusivamente ao domínio interior da própria razão; que age pelo contentamento “que recebe em si por bem fazer”, e não pelo caráter “desreglée” das opiniões do mundo, das quais a glória depende[4]. De fato, é esse grande princípio de uma moral da consciência que fornece o contexto discursivo apropriado para que Montaigne tome a palavra e fale em seu próprio nome; que justifica e respalda sua posição particular.
A primeira das passagens em primeira pessoa no ensaio segue-se imediatamente a uma citação literal do De Officis que versa sobre a disposição característica da verdadeira e sábia grandeza de alma ̶ magnitudo animis. De modo análogo a esta, Montaigne também não aspira à glória, mas sim unicamente à virtude, cuja presença e dignidade ele discerne, sobretudo, nas ações; na constituição de um modo de vida conforme à própria natureza. Toda a glória que poderia pretender alcançar, portanto, como nos diz, é a glória de uma vida “selon moy”. Esta, contudo, não se exterioriza jamais em ações árduas, grandiosas e úteis ao bem comum; não tem por conseqüência natural a conquista de uma vera e solida gloria no juízo do mundo que se segue à virtude do homem magnânimo tal como descrito por Cícero[5]. Ela consiste, afinal, na escolha de um caminho particular para a tranquilidade da alma sob a constatação da insuficiência das diversas escolas filosóficas clássicas em estabelecer um caminho que fosse válido para todos: “que cada um a busque pessoalmente!”[6].
Com efeito, a glória “selon moy” de Montaigne parece impassível de ultrapassar o registro estrito de sua fruição pessoal e interior e de generalizar-se como modelo. Repõe desse modo os desígnios de sua escrita conforme declarados na Advertência ao leitor, em que a afirmação do projeto de descrever-se a si mesmo liga-se ao desprezo pela utilidade e aprovação pública e no limite, na exclusão do leitor: “pois sou eu mesmo que eu pinto”[7]. Ao contrário desse discurso que não deixa subsistir qualquer crença nos critérios da admiração do mundo como parâmetro de moralidade, os autores antigos em geral incorporam a si a crítica moral da glória, sem abandonar totalmente o horizonte de sua identificação com a virtus[8]. É o caso justamente de Cícero, que se empenha no De Officis em diferenciar a glória falsa daqueles que são tomados pelos excessos – hybris – dessa paixão, incorrendo em atos injustos e cruéis, da verdadeira grandeza de alma, justamente merecedora de glória. Esta efetua na conduta pautada somente no valor da virtus e que despreza os bens exteriores como as riquezas e a própria glória: “ela prefere ser a parecer a primeira.”[9] Nas Tusculanas, Cícero desenvolve a ideia empregando a metáfora proverbial da glória como sombra da virtude ̶ “gloria umbra virtutis est”[10] – que ressurgirá com sentido análogo também nas cartas de Sêneca e mais tarde de Petrarca. De acordo com a imagem, mesmo não sendo o objeto de desejo do homem virtuoso, a glória o segue como uma sombra; consequência natural e necessária do valor da virtude.
No ensaio de Montaigne, contudo, a mesma e célebre metáfora surge com sentido inteiramente diverso, aproximando-se bem mais da perspectiva crítica do estoicismo grego, incitando-nos antes ao desprezo absoluto da glória como “coisa altamente vã”, fortuita, dependente da fortuna. Assim, o que ganha ênfase no emprego da metáfora no ensaio é o caráter vacilante e variável da glória-sombra ao acompanhar um corpo sólido: “Ela vem também às vezes bem antes de seu corpo, e outras vezes o excede bastante em extensão”[11]. Entretanto, é importante notar, se compreendermos essa crítica de modo muito literal corremos o risco de uma leitura no mínimo anacrônica dos “Ensaios”, tomado como uma sorte de discurso solipsista e autorreferente ao máximo em sua absoluta negligência quanto ao juízo dos leitores. Isso implicaria no limite em concebê-lo como transgressão dos princípios da retórica, da comunicação com o outro; da função transitiva da linguagem como modalidade de ação e de civismo[12]. Procuramos evitar aqui tal anacronismo adotando perspectiva diversa que procura justamente restituir aos “Ensaios” seu estatuto de discurso persuasivo, que se apropria a seu modo dos procedimentos da retórica.
Desse ponto de vista, a crítica moral da glória em Montaigne serve não tanto a uma autoafirmação da expressividade pessoal e individual, como à pintura dos costumes corrompidos em seu ‘siècle depravé’, devastado pelas guerras de religião e pelos excessos – hybris – da ambição de engrandecimento dos nobres seus pares. Contra este pano de fundo, o autorretrato montaigniano, em seu desdém pela glória do mundo, confere forma a uma ideia diversa de virtus, avessa às imagens de grandeza em que seus contemporâneos haviam se habituado a enxergá-la. Tal noção de virtus se consubstancia numa sabedoria moyenne, conforme o ideal horaciano da aurea mediocritas[13]. Para conferir verossimilhança a tal ideia, Montaigne emprega quase sempre procedimentos discursivos indiretos, conforme descritos e recomendados por Cícero e, sobretudo por Quintiliano. Tais procedimentos, entre os quais contam-se, por exemplo, as figuras de palavras e de pensamento, os tropos e as digressões, permitem que um orador defenda sua causa de maneira velada, por assim dizer, dissimulando-a sob a aparência de uma intenção oposta. São justamente as causas que não contam de pronto com uma disposição favorável na opinião ou doxa comum do auditório as que mais exigem do orador o uso de modos indiretos, pois se a afirmassem explicitamente provocariam de pronto a hostilidade e a resistência dos ouvintes[14].
Em “Da Glória” e mais ainda no ensaio que se lhe segue, “Da Presunção”, Montaigne antecipa a estratégia de retratar-se a si mesmo como modelo em comparação com os vícios do século, cujas potencialidades só iria explorar plenamente mais tarde nos ensaios do terceiro livro. É da ironia – eironeia – que ele se utiliza sobretudo com isso, fazendo sua imagem despontar obliquamente como exemplo de virtude contra a gravidade da degeneração dos costumes ao redor. A ironia é uma das ‘figuras de pensamento’ – figura sententiae – a que Quintiliano dá mais atenção em sua Institutio Oratoria. Com ela um orador dá a ver a causa do discurso de modo ‘dissimulado’, para que o leitor a descubra por si mesmo. Sob o uso da ironia o discurso explicita que aquilo que “deve ser entendido é o oposto daquilo que é dito.”[15]
Como Montaigne nos narra em “Da Glória”, embora negligente da aprovação do mundo, sua conduta baseada na franqueza ̶ fides – já lhe garantira amiúde o favor alheio justamente onde a ambiguidade e a falsidade fizeram perder muitos homens, os quais, entretanto, como atenta, “ninguém duvidava serem homens do mundo mais prudentes do que eu”[16]. Assim, dando a impressão de que pretende apenas descrever-se em sua verdadeira natureza, o que faz efetivamente é acusar a ignorância da doxa do século, que faz da torpeza de seus contemporâneos um sinal de mérito e é incapaz de reconhecer, por outro lado, os méritos de sua franqueza enquanto sabedoria prática.
No grande autorretrato “Da Presunção” por sua vez ̶ que dá continuidade à reflexão sobre a glória – ao situar-se no extremo oposto de qualquer referência exemplar, sua imagem acaba por afirmar-se como exemplo. A ‘preguiça’ e a ‘ociosidade’ que deprecia em si e destaca entre seus defeitos mais marcantes passam de imediato a expressões de raro “réglement d`ame” quando contrastadas com os costumes perversos que contaminam o século[17]. Ao contrário daqueles de sua classe que consentiam em toda espécie de vícios somente para se elevar em renome e fortuna[18], Montaigne não tivera dificuldade de contentar-se com aquela com que fora agraciado desde o nascimento. Por causa de seu temperamento ‘preguiçoso’ destaca-se assim como homem dotado de moderação. De fato, se a bravura militar era buscada pelos nobres do tempo como a mais alta marca de excelência, suas “qualidades não reprováveis” faziam-se virtudes exemplares justamente por sua rareza, tais como a “a fé e a consciência” e a “franqueza e a liberdade”. Como nos diz em seguida: “É bom nascer num século muito corrompido: porque pela comparação com outrem, és tido como virtuoso a bom preço.”[19]
BIBLIOGRAFIA
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Fontes secundárias:
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VAROTTI, Carlo. Gloria e ambizione politica nel Rinascimento: de Petrarca a Machiavelli. Milão: Bruno Mondadori, 1998.
VILLEY, Pierre. Sources et l`Evolution des Essais de Montaigne. Paris, Librarie Hachette, 1933.
ZANTA, Léontine. La Renaissance Du Stoicisme.
[1]“Je n`y eu nulle consideration de ton service ny de ma gloire. Mes forces ne sont pas capables d`un tel dessein.“ Montaigne, Ensaios, Advertência ao leitor, p. I.
[2]Cf. Virgílio, Eneida, X, 468-9; Salústio, De Catilinae coniuratione, Prefacio, 1.9.
[3] COMPAGNON, Antoine. “Nous Michel de Montaigne”. Paris, Aux Editions du seuil, 1980.
[4]MONTAIGNE, Ensaios, II, 16, p. 624.
[5] CICERO, De Officis, 1. 20.66.
[6] MONTAIGNE, op. cit., II, 16, p. 624.
[7] Idem, Advertência ao leitor, p. I.
[8]Cf HARDIE, Philip. Rumour and Renown: representations of fama in Western Literature. Cambridge Classical studies, 2014.
[9] CICERO, op. cit., 1.65.
[10] Sêneca, Cartas a Lucílio, 79, 13. “Virtutem fama, ceu solidum corpus umbra consequitur.” Petrarca, Fam. I, 2, 24-25. Cícero, Tusculanas, I, 45, 109; Sêneca, Cartas a Lucílio, 79, 13; Petrarca, Familiares, I, 2, 24-25.
[11] MONTAIGNE, op. cit. II,16, p. 621.
[12] Cf BEAUJOUR, Michel. Miroirs d`encre, p.33.
[13] Cf. GOYET, Francis. “Montaigne and the notion of Prudence” In: The Cambridge Companion, New York, 2005.
[14] QUINTILIANO, Institutio Oratoria., IV, 1, 54-57. CICERO, De Inventione, I, 97
[15] QUINTILIANO, op. cit., IX, 2-44.
[16] MONTAIGNE, op. cit., II, 16, p. 624.
[17] Idem, II, 17, p. 643.
[18] Idem, p. 646.
[19] Idem, p. 646.