Geografias interiores: Cartografias e topografias da mente
A cinematografia desse início de século parece expressar nas suas narrativas fílmicas uma agenda tecnológica contemporânea onde não apenas generaliza o modelo computacional como fosse o próprio modelo cognitivo de funcionamento da mente, mas também pretende criar modelos simulados de funcionamento cerebral a partir de verdadeiras cartografias e topografias da mente. O esforço multidisciplinar envolvendo as neurociências, ciências cognitivas, Cibernética, Inteligência Artificial e Teoria da Informação busca não só desvendar o funcionamento da mente como também procurar um modelo de simulação que permita compreender a dinâmica dos processos mentais e da consciência para manipulá-la e controlá-la. Muitos filmes atuais parecem expressar essa agenda tecnocientífica ao empreenderem uma verdadeira geografia alegórica dos processos mentais. Tal agenda culmina hoje no reforço de um novo tipo de sujeito das novas redes tecnológicas digitais: o sujeito fractal e a sua compulsão em representar cartograficamente seus pensamentos, hábitos, relacionamentos e projetos pessoais por meio de verdadeiras “geografias interiores”.
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O filme pode ser considerado um verdadeiro documento primário por expressar através de imagens e movimento o imaginário e as sensibilidades de uma determinada época. O historiador Marc Ferro, um dos principais nomes da chamada “Escola dos Annales”, acredita que a relação cinema-história tem um importante papel no campo historiográfico: “o imaginário é tanto história quanto História, mas o cinema, especialmente o cinema de ficção, abre um excelente caminho em direção aos campos da história psicossocial nunca atingidos pela análise dos documentos” (FERRO, 1992, p.12). Não importa se o filme refere-se a um passado remoto ou imediato, pois sempre vai além do seu conteúdo:
Toda imagem é histórica, na medida em que ela é produto de seu tempo e carrega consigo, mesmo que de forma indireta, sub-reptícia e muitas vezes inconsciente para quem a produziu, as ideologias, as mentalidades, os costumes, os rituais e os universos simbólicos do período em que foi produzida (NOVÓA & NOVA, 1998, p. 10).
Há uma conexão entre cinema e sociedade, ou seja, o filme pode ser considerado um repositório do imaginário social de uma determinada época. Sabemos que este imaginário contemporâneo é fortemente marcado por um desenvolvimento tecnológico bem particular que Victor Ferkiss nomeou como “gnosticismo tecnológico” (FERKISS, 1980) e Erik Davis conceituou de forma mais sintética como “tecnognosticismo” (DAVIS, 2004).
Acompanhando a cinematografia desse início de século caracterizada por uma recorrência do que alguns autores conceituam como “filmes gnósticos”i (FERREIRA, 2010, WILSON, 2006), percebe-se que produtores, diretores e roteiristas parecem estar antenados e, em muitas oportunidades, antecipam ou replicam a chamada “agenda tecnognóstica” contemporânea. Essa agenda não apenas generaliza o modelo computacional como fosse o próprio modelo cognitivo de funcionamento da mente (input, output, processamento, memória etc.) como também pretende criar modelos simulados de funcionamento cerebral a partir de verdadeiras psicocartografias e psicotopografias.
Portanto, o que há em comum entre os filmes “Vanilla Sky” (2001), “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004), “Sonhando Acordado” (The Good Night, 2007), “Ciência dos Sonhos” (La Science Dês Revês, 2006), “Alice no País das Maravilhas” (2010) de Tim Burton, “A Origem” (Inception, 2010) e a série televisiva “O Prisioneiro” (The Prisoner, 2009)?
Todos esses filmes parecem empreender um mapeamento, uma cartografia e uma topografia do mundo mental. Uma verdadeira geografia alegórica dos processos mentais (sonhos, devaneios, pensamentos, emoções etc.). Por exemplo, em “Vanilla Sky” vemos, próximo ao final do filme, a revelação de que o protagonista David Aymes vive em um “sonho lúcido” criado a partir de um mapeamento das referências afetivas e emocionais feitas dentro do repertório imagético dele: filmes preferidos, músicas, bandas de rock e fragmentos diversos da cultura pop. O “sonho lúcido” do protagonista seria como um trajeto sentimental através do mapeamento das suas memórias.
A série “O Prisioneiro” aborda uma verdadeira cartografia da mente coletiva das pessoas que necessitam ser “consertadas” através de uma radical técnica neurocientífica: transportar o Eu para uma realidade paralela consensual (“A Vila”). Todos levam uma vida dupla: enquanto seus eus conscientes habitam o mundo real, simultaneamente seus eus inconscientes vivem o cotidiano bucólico da Vila. Dessa forma seus “eus” inconscientes são “consertados” na Vila através de uma agenda de valores “positivos” levada a cabo pelo líder da cidade.
Já no filme “A Origem”, temos uma topografia elaborada da geografia mental: diversos níveis dos sonhos sobrepõem-se, cada um com seu fuso horário distinto, produzindo uma arquitetura semelhante a um hipertexto ou a narrativa de um game de computador com diversos níveis como etapas.
Esses filmes parecem refletir uma agenda tecnocientífica desse início de século: a agenda tecnognóstica, o esforço multidisciplinar envolvendo as neurociências, ciências cognitivas, Cibernética, Inteligência Artificial e Teoria da Informação para desvendar um dos últimos grandes mistérios da ciência: o funcionamento da mente humana e a natureza da consciência. A procura de uma simulação, um modelo computacional, uma interface gráfica que permita não só compreender a dinâmica dos processos mentais e da consciência, mas, principalmente, manipulá-la e controlá-la.
Conjunto de filmes de variados gêneros cuja característica unificadora é a recorrência de “elementos gnósticos”. Esses elementos recorrentes correspondem tanto às narrativas míticas cosmogônicas e morais dos principais pensadores do gnosticismo histórico (conjunto de seitas sincréticas de religiões iniciatórias e escolas de conhecimento nos primeiros séculos da era cristã) como a diversos simbolismos místicos ou esotéricos associados ao sincretismo do chamado Gnosticismo Hermético. Ou seja, o filme gnóstico reduziria o Gnosticismo a um sentido mais geral, como uma atitude filosófica ou religiosa que englobaria ou inspiraria a maior parte das doutrinas esotéricas ou ocultistas. A produção cinematográfica norte-americana recente (1995 a 2005) conta com diversos filmes que giram em torno dessa mitologia. Os temas incluem, frequentemente, conspirações cósmicas, universos paralelos, amnésia e paranoia. Demonstra um interesse por uma ambivalente relação entre o sujeito e a realidade, consciência (especialmente alterada por estados de consciência iluminados) e revolta contra sistemas autoritários de controle. Filmes como Cidade das Sombras (Dark City, 1998), a Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998), Show de Truman (Truman Show, 1998), Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001), entre outros, apresentam uma ideia geral de que o mundo que percebemos é uma ilusão criada por alguém que não nos ama e que a chave para revelar a ilusão e descobrir a realidade reside numa forma de autoconhecimento ou iluminação.
Tecnognosticismo
Essa agenda tecnocientífica (tecnognóstica) surge, a princípio, da motivação mística que impulsiona as tecnologias computacionais: a busca da inteligência artificial a partir da solução do mistério da natureza da consciência, da mente e da alma. É essa motivação transcendentalista que conduz a eliminação do corpo (por meio de próteses) e a virtualização da subjetividade:
As novas criações (biotecnologia, clonagem, nanotecnologia, realidade virtual ou a própria tecnologia computacional) apontam para a superação dos limites do orgânico. Victor Ferkiss vai caracterizar esta nova perspectiva com um conceito aparentemente paradoxal: “gnosticismo tecnológico”. O gnosticismo histórico caracterizava-se pelo horror ao orgânico e a uma aversão ao natural. Tais elementos seriam inimigos do espírito na sua busca por iluminação. Ora, a tecnociência atual aproxima-se de tal filosofia ao propor a superação dos parâmetros básicos da condição humana: finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade e limitação existencial. Ferkiss, assim como Martins (1996), apontam para esse surpreendente cruzamento entre as aspirações tecnológicas contemporâneas e as utopias gnósticas por transcendência. (FERREIRA, 2010, p. 25).
O final do século XX foi marcado pela primeira fase desse gnosticismo tecnológico: a possibilidade da criação de mundos virtuais. A virtualização da subjetividade se daria através da mediação de avatares ou interfaces gráficas que criariam a ilusão de experiências análogas ao mundo físico. Os capacetes de realidade virtual, data-gloves e a digitalização das sensações corporais estavam nesse projeto de “imersão” do Eu num mundo virtual. Filmes como “Show de Truman” e “Matrix” refletiram criticamente esse imaginário tecnognóstico da época: protagonistas aprisionados em mundos sem conseguir estabelecer a diferença entre o simulacro e a realidade.
No começo do século XXI temos o segundo estágio dessa agenda tecnognóstica: a busca da última interface da história da tecnologia, a conexão entre o biológico e o eletrônico, entre as redes neuronais e redes computacionais. Se o projeto da arquitetura da Internet foi baseado na arquitetura neuronal do cérebro (descentralizada, fractal etc.), o destino das tecnologias digitais seria o de buscar o modelo de simulação mais perfeito da dinâmica de funcionamento da mente e da consciência, tão perfeito que o mapa coincidiria com o território e a simulação substituiria a própria base orgânica da consciência.
Filmes como “Vanilla Sky” e “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” tematizaram criticamente essa possibilidade ao mostrarem que por trás dessa aspiração tecnognóstica escondem-se projetos manipuladores comerciais. De outro lado, filmes como “A Origem” e “Alice no País das Maravilhas” de Tim Burton fazem a apologia dessa agenda.
Onde está a “alma”?
Se no século XVII o filósofo Descartes formulava essa pergunta (epígrafe que abre “Almas à Venda”, filme que tematiza criticamente essa agenda tecnognóstica), hoje a busca pela resposta a essa pergunta, onde a palavra “alma” é substituída por “consciência”, é levada às últimas consequências ao se procurar elaborar uma verdadeira psicocartografia ou psicotopografia.
Mapas, cartografias e topografias de terras imaginárias não são novidades na história da cultura. Mapas como The Pilgrim’s Progress (figura 1) ou Map of the Various Paths of Life (figura 2) do século XIX são alegorias de eventos simbólicos, metafísicos como as provações da fé de um peregrino ou os caminhos da vida do nascimento até a morte. Esses estranhos mapas antigos procuravam servir de guias pessoais para racionalizar e ajudar a entender fenômenos psicológicos e religiosos. Podem ser considerados os precursores de um projeto tecnocientífico iniciado pelo racionalismo de Descartes e que, na atualidade, desabrocha com as tecnologias computacionais.
O livro Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll pode ser considerado um exemplo desse espírito do tempo do século XIX onde a elaboração de cartografias de países imaginários pretendia fazer uma alegoria sobre o real. Assim como na alegoria da caverna de Platão (o mundo como um simulacro das formas perfeitas do mundo das Ideias), Carroll vai criar a alegoria de Wonderland para buscar as origens metafísicas do simulacro da realidade. A vida real de Alice na Inglaterra nada mais seria do que uma cópia distorcida ou empobrecida de Wonderland. Nessa terra imaginária os paradoxos, ironias, non-sense e absurdos seriam mais explícitos do que no mundo real onde essa natureza última é escondida ou distorcida pelo racionalismo.
Já em Alice in Wonderland de Tim Burton, encontramos um novo tipo de alegoria, a tecnognóstica: Alice cruza o território de uma Wonderland que já não é mais a alegoria de Carroll. O trajeto feito por Alice é através de um mapa mental do autoconhecimento, a busca da verdadeira Alice e não mais uma reflexão metafísica da realidade. Seu interesse é instrumental: autoconhecimento e motivação para assumir os negócios do pai e ser uma corajosa empreendedora.
A Wonderland de Tim Burton é o reflexo dessa agenda tecnognóstica: criar cartografias, modelos ou interfaces que visualizem os processos mentais como uma geografia da mente. Cada região (a antessala de entrada para Wonderland, o castelo da rainha vermelha, as montanhas que a envolvem, o castelo da rainha branca localizado numa planície, o gigantesco tabuleiro de xadrez à beira do mar onde é realizada a batalha final etc.) é uma alegoria de processos mentais, psíquicos e cognitivos.
Por exemplo, o monstro Jaberwocky tem sua cabeça decepada no alto de um palácio em ruínas à beira do mar. É como se Alice deletasse seus medos, restrições e fantasmas que a impedem de ser a verdadeira Alice. É o anseio de todas as tecnologias do espírito (autoajuda, técnicas motivacionais): eliminar as limitações que impedem o desenvolvimento das potencialidades do Eu. Se Freud queria compreender processos psíquicos por meio de símbolos, com as alegorias criadas por mapas mentais é mais fácil: cortam-se as cabeças!
Wonderland não é mais um reino subterrâneo como imaginado por Carroll. Agora são memórias. Memórias que necessitam ser mapeadas, cartografadas, para que consigamos localizar as regiões onde habitam as memórias “ruins” (áreas trevosas, pântanos, palácios em ruínas – obras inacabadas que viraram entulhos – meandros encravados em montanhas de difícil acesso etc.), não para compreendê-las, mas para apagá-las, como no filme “Brilho Eterno…” onde, a partir de uma interface gráfica computadorizada do cérebro, era possível rastrear as memórias ruins que deveriam ser deletadas para tornar os clientes mais leves, assertivos, sem culpas ou indecisões que atrapalhem o cumprimento das metas do Eu.
O mapa de “O Prisioneiro”
Na série televisiva “O Prisioneiro” (The Prisoner, 2009), remake do canal norte-americano AMC da série britânica cult dos anos 1960, temos a emblemática criação de um mapa interativo da “Vila”. Resultado de uma tecnologia de controle social (Social Engeneering) levada a cabo pela empresa Summakor, “A Vila” é mais um desses lugares imaginários, uma cartografia da vida mental feita para “consertar pessoas quebradas”. A partir da indução por drogas pesadas, a Vila é a construção de uma “alucinação consensual” (definição que o escritor William Gibson deu para o ciberespaço) para onde são enviados os egos de pessoas disfuncionais à ordem social (paranoicas, violentas, deprimidas etc.). Lá vivem numa vila em tons pastéis dentro de uma rotina idílica, simples e inocente.
Um dos produtos dessa série é um mapa interativo no site da emissora AMC, onde podemos fazer uma visita às diversas instituições e bairros da Vila – zonas proibidas e virtuosasi. Uma cartografia irônica da mente dos personagens da série, mas que, no fundo, é o reflexo dessa agenda tecnocientífica contemporânea.
i Disponível em: http://www.amctv.com/the-prisoner-village-map/ (acessado em 29/03/2013).
“Existem mapas sobre qualquer lugar: cromossomos, galáxias, o cérebro, a célula, os espaços entre os átomos, das fendas na dupla hélice, das bordas do tempo. Se os mapas são convites para viagens, esses novos mapas inspiram jornadas completamente diferentes, de uma forma associativa. Ao mesmo tempo, permanecem conectados com a nossa geografia tradicional, tornando-se guias orientadores de processos. Eles fornecem para nós trilhas mais interiores, filosóficas e imaginativas”. (HALL, 2004, p. 17.)
Como alegorias, os mapas possuem essa potencialidade neoplatônica ou gnóstica de empreender uma viagem filosófica ou imaginária, ao tomarmos a realidade de maneira invertida, como fez Lewis Carroll nas terras de Wonderland. Mas o projeto tecnognóstico é muito mais prático e instrumental: fazer o mapa coincidir com o território, ser um guia de processos, um painel de controles como ícones em um desktop. Ao clicar neles poderemos controlar processos mentais, psíquicos e cognitivos. No final, um projeto tecnocientífico de controle, management, engenharia social e psíquica.
Esses filmes do início do século XXI expressariam essa agenda tecnognóstica cujo desenvolvimento começou décadas antes, desde os anos 1970, quando o movimento revisionista freudiano liderado por psicoterapeutas e filósofos nos EUA começou a questionar o freudismo de tolher a autoexpressividade individual, além de oferecer ferramentas para o controle social via Publicidade e Propaganda. É interessante traçarmos esses primórdios que serão o ponto de partida da elaboração das cartografias e topografias mentais que, ironicamente, acabaram se tornando as principais ferramentas de engenharia de opinião pública como o neuromarketing e o reforço de um novo tipo de sujeito das novas redes tecnológicas digitais: o sujeito fractal.
Topografia da mente: retirando as camadas
Nos anos 1970 o psicoterapeuta norte-americano Werner Erhard criou os primeiros modelos psicológicos transformacionais para indivíduos, grupos e organizações, o “Curso de Treinamento Erhard”, baseado em técnicas de autoconhecimento cujo princípio era a retirada de camadas do Eu que impediam o desenvolvimento das potencialidades comunicacionais e profissionais. “Se você retirar todas as camadas, acabará descobrindo um núcleo, uma coisa naturalmente autoexpressiva. Isso seria o verdadeiro Eu” (BRY, 1976, p. 112).
Mais tarde essa mesma técnica é aplicada nas pesquisas de marketing da Universidade de Stanford nos anos 80 sobre Valores e Estilos de Vida (VALS) com métodos de perguntas sucessivas onde camadas de defesas, pensamento e crenças são retiradas para se chegar ao núcleo do verdadeiro desejo do consumidor a ser agregado ao produto (BEATTY, HOMER & KAHLE, 1988).
Freud pretendia entender a dinâmica psíquica através da interpretação dos sonhos. E essa interpretação somente poderia ser simbólica (condensações e deslocamentos da linguagem onírica) como forma de entender o porquê das dinâmicas do psiquismo. Em outras palavras, entender a essência última que permitiria explicar a conexão entre a alma e o corpo.
Ao contrário, a preocupação cartográfica e topográfica já presente nas primeiras abordagens dos psicoterapeutas demonstra o enfoque não mais metafísico como em Freud, mas agora funcional para fins de manipulação direta: nada de descobrir simbolismos ocultos, mas, agora, mapear funções e camadas.
As pesquisas em VALS da Universidade de Stanford refletiam a preocupação das corporações que procuravam entender o novo consumidor que surgia, não mais conformista, mas que buscava a “autoexpressividade” e a liberdade de transformar-se em novas personas. Pela primeira vez, os pesquisadores começaram a formular questões que não mais envolviam prospecção de dados sobre nível de renda, faixa etária ou nível de escolaridade, mas perguntas profundas sobre como as pessoas se sentem, seus hábitos e escolhas.
O retorno dos questionários enviados pelo correio durante as pesquisas em VALS foi surpreendente (86%). As pessoas simplesmente adoraram preencher os questionários e muitos foram devolvidos com bilhetes do tipo “vocês têm outros questionários que eu possa preencher?”.
Mais do que mapear os valores e estilos de vida em diferentes grupos na sociedade, a pesquisa de Stanford conseguiu documentar o momento em que surge esse verdadeiro impulso confessional que mobiliza as pessoas na atualidade.
A cultura crescente de autoconhecimento e autoexpressividade dos anos 1970 resultou num impulso narcísico em expressar publicamente seus desejos mais íntimos, pensamentos, incertezas e motivações. Um impulso confessional potencializado na atualidade pelo ciberespaço por meio de redes sociais como Orkut, Facebook e Twitter.
Autores como Richard Sennett chamam esse fenômeno de “ascetismo mundano” derivado da ética protestante tal qual descrita por Max Weber. Se na ética cristã o ascetismo de um monge é um impulso voltado para o interior, pois “um monge que se flagela a si mesmo diante de Deus, na privacidade da sua cela, não pensa na sua aparência diante dos outros” (SENNETT, 1987, p. 406.), ao contrário, na ética protestante há um componente mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a Deus, mas aos outros, a sua renúncia e sacrifício, provando a todos ser um merecedor das graças divinas. Isso se insere na cultura narcísica atual como um impulso confessional como uma performance do eu interior diante dos outros:
Ou seja, o narcisismo é o princípio psicológico para a forma de comunicação que chamamos de representação da emoção para outrem, ao invés de uma apresentação corporificada da emoção. O narcisismo cria a ilusão de que uma vez que se tenha sentimento ele precisa ser manifestado – porque no final das contas, o ‘interior’ é uma realidade absoluta (SENNETT, 1987, p. 408.)
Podemos definir esse indivíduo compulsivo em representar sua intimidade para os outros como um “sujeito fractal” (BAUDRILLARD, 1990, p. 27). Tal qual o fracta da geometria (objeto geométrico que pode ser dividido em partes, cada uma das quais semelhantes ao objeto original), é um sujeito que se torna um nódulo que apenas ratifica o que lhe é externo. A aparência narcísica de um ego grandioso encobre um esvaziamento da própria subjetividade que, sitiado, adapta-se e reproduz mimeticamente o entorno para sobreviver. É o sujeito fractal, como um fragmento que reproduz dentro de si, infinitamente, o padrão do todo.
Vulnerável e sem defesas, reproduz ideias e sentimentos como fossem originais e verdadeiros, mas não passam de reprodução repetitiva de padrões.
Cartografias e topografias de um sujeito fractal
Esse “ascetismo mundano” talvez esteja por trás desse verdadeiro frenesi atual por mapeamentos ou representações cartográficas de nossos pensamentos, hábitos, relacionamentos, escolhas por meio de redes sociais, softwares e projetos pessoais que buscam elaborar verdadeiras “geografias interiores”. Há um esforço e incentivo deliberado para que todos os usuários, espontaneamente, disponibilizem seus dados pessoais ou apresentem, por conta própria, seus mapas mentais e geografias pessoais. Temos uma série de exemplos:
1 – Inner Geographies Projecti: levado a cabo pelo geógrafo e professor da Sonoma State University nos EUA Heidi K. La Moreaux. Dividido em vários núcleos, o projeto pretende aproximar as metodologias das ciências naturais na exploração do que acontece em nossa vida interior: mente, corpo, nossas percepções de lugar e nossos mundos imaginários. Um verdadeiro mapeamento das memórias das nossas experiências emocionais e afetivas (isoladas em “lâminas” como aquelas usadas em microscópios) e mapas com a sucessão de eventos das nossas vidas como planos que se sobrepõem como os anéis do tronco de uma árvore em corte longitudinal, dando uma visão topográfica da linha da vida pessoal. Ou ainda os “Childhood Maps” (Figura 3), mapas criados por crianças representando sua “posição cosmológica”, expondo as conexões entre os lugares físicos e os “terrenos internos”. O resultado é uma série de mapas e topografias pessoais. Um projeto que não apenas reflete essa agenda tecnocientífica atual, mas que produz dados organizados que, facilmente, podem se constituir em matéria-prima para futuros softwares baseados em mapas mentais.
2- “Mundos Espelhados” ou Lifestreamii: ideia seminal de David Gelertner, catedrático de Ciências da Computação da Universidade de Yale. Em meados dos anos 90, previu: “Você vai olhar para uma tela de computador e vai ver a realidade. Uma parte qualquer do seu mundo – a cidade em que você vive, a empresa onde trabalha, a sua escola, o hospital municipal – vai aparecer lá em uma imagem nítida e colorida, abstrata, porém reconhecível, movendo-se sutilmente em mil lugares.”
Na época Gelernter pensava em um software, os Lifestreams, que substituiria os desktops de computadores: um programa de armazenamento em ordem cronológica desde documentos até suas experiências digitais. Isso não ocorreu, porém, hoje, algo similar pode ser encontrado por toda a web em diferentes formatos: blogs (verdadeiros diários eletrônicos), atualizações de notícias pessoais como o Facebook e outras redes sociais. Isso claramente permite um sociograma ou um fluxograma das relações sociais e pessoais, além de um mapeamento permanente de hábitos e atitudes, como a notícia divulgada pela BBC que os dados do Facebook revelam os períodos em que mais namoros terminamiii.
3- Life-Trackingiv: tendência recente onde os participantes fazem um meticuloso registro de tudo o que fazem por meios manuais, PCs ou smartphones: quantos cafés tomam, livros que estão lendo, horas de trabalho diárias etc. Algumas pessoas ainda usam sensores para mapear seus sinais vitais para ver, por exemplo, como estão dormindo. Gary Wolf, escritor de tecnologia e cofundador do site The Quantified Self (“O Ego Quantificado”) faz parte de um grupo de pessoas que quer usar a tecnologia para ajudá-las a identificar fatores que as deixam deprimidas, impedem que durmam ou, ainda, que afetam o seu desempenho cognitivo. Segundo relata Matt Herring em artigo para a revista The Economist já está surgindo um mercado para aparelhos autotracking. “A Zeo desenvolveu um despertador que vem com uma faixa na cabeça para medir a atividade das ondas cerebrais das pessoas à noite e exibir graficamente seu sono na Web” (HERRING, 2010, p. 37).
Considerações finais
Como explicar essa sincronicidade entre a recorrência temática da cartografia e topografia da mente nos filmes recentes e a agenda tecnológica tecnognóstica?
A primeira hipótese vem de uma expressão que, de tão repetida, tornou-se um clichê: “a vida imita a arte”. Será que a agenda de pesquisadores e cientistas poderia se inspirar nos conteúdos ficcionais dos principais roteiristas de Hollywood? A analogia culinária feita por Gondry na primeira sequência do filme A Ciência dos Sonhos – os ingredientes dos sonhos associados a itens culinários e condimentos que são acrescentados a uma panela dentro de um show televisivo no interior da mente – poderia inspirar esse anseio pragmático de manipulação de sonhos e memórias no mundo real dos institutos de neurociências?
A empresa Lacuna Inc. de “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” teria inspirado a pesquisa da dupla de neurocientistas Daniel Bendor e Matthew Wilson do Departamento de Neurociências do MIT que anunciaram o sucesso na manipulação do conteúdo dos sonhos em ratos? (BENDOR & WILSON, 2012).
Segunda e conspiratória hipótese: pensar Hollywood como um braço estratégico de uma verdadeira agenda setting para promover junto à opinião pública a agenda tecnológica estratégica dos EUA, tornando os seus objetivos naturais e aceitáveis. Sabemos que desde a Segunda Guerra Mundial, Hollywood e o MIT formaram uma espécie de complexo propagandístico-científico-militar para a política externa norte-americana. De um lado os filmes patrióticos, a promoção dos novos heróis pós-depressão econômica de um país revitalizado pela vitória na Segunda Guerra Mundial e a “política de Boa Vizinhança” com Carmem Miranda e Zé Carioca para agradar os “amigos do Sul”; do outro o desenvolvimento de novas tecnologias para aplicação militar pelo MIT – o esforço da Teoria da Informação e Cibernética de Shannon, Weaver e Wiener nas décadas de 1940-50 e suas aplicações como radar, computadores e “armas inteligentes”.
Mas tudo isso foi ainda dentro do cenário da Guerra Fria. Com o fim da ameaça simbólica do Comunismo, passam a se sofisticar os processos de controle e vigilância internos dos cidadãos: o inimigo pode estar ao lado na figura do terrorista (islâmico ou mesmo de algum supremacista branco ou fundamentalista de direita).
No final do século passado temos a profusão de filmes onde Matrix (1999) foi o ápice: filmes sintonizados com a euforia tecnológica computacional e o fascínio por realidade virtual (RV) e mundos simulados por tecnologias onipresentes e oniscientes capazes de criar simulações tão perfeitas onde os limites entre real/virtual se apagariam. É a época da euforia pela Internet e RV onde mesmo distopias como Matrix ou A Rede (The Net, 1995 – a possibilidade de o cidadão ser integralmente vigiado e controlado através da Internet) preparavam a opinião pública para os novos tempos que viriam: novas formas de socialização por meio de redes sociais, games e mundos simulados como Second Life.
A generalização da computação ofereceu um modelo de funcionamento da mente muito mais pragmático do que o modelo do psiquismo freudiano com suas complexas leituras dos sonhos por meio de condensações e deslocamentos. A mente poderia ser reduzida a uma máquina cognitiva análoga a computadores – input, output, processamento, memória etc.
Se a mente é uma questão de assimilação, processamento, codificação de informações na memória, torna-se tentadora a possibilidade prática de realizar uma cartografia (mapeamento da mente) e uma topografia (um mapeamento 3D das redes neuronais) para objetivos bem pragmáticos – primeiro na esfera micro ou pessoal: libertar-se de barreiras, constrangimentos ou traumas para ser uma pessoa mais assertiva, moralmente leve e sem culpas, liberar as potencialidades latentes e tornar-se um profissional ou pessoa bem sucedida.
E na esfera macro, a engenharia social, o monitoramento e o controle através do mapeamento dos fluxos de dados em uma Internet pensada e organizada como redes neuronais.
De qualquer forma, em ambas as hipóteses o universo ficcional da arte parece que sempre se antecipou à realidade. Veja, por exemplo, a arte surrealista e expressionista do início do século XX que pela primeira vez materializou em imagens o universo dos sonhos. Antecipou o que hoje a Publicidade e a indústria do entretenimento fazem diariamente através de efeitos especiais digitais, montagem e edição.
A diferença em relação ao cinema hollywoodiano é que roteiristas, diretores e produtores parecem estar antenados e, quase que simultaneamente, antecipam ou replicam a agenda tecnológica atual baseada no esforço das neurociências em criar modelos de funcionamento da mente e da consciência. E os sonhos são as principais janelas de acesso à alma, tanto para o cinema quanto para as neurociências.
i Disponível em: http://ecotonehistories.com/index.html (acessado em 29/03/2013).
ii Disponível em: http://cs-www.cs.yale.edu/homes/freeman/lifestreams.html (acessado em 29/03/2013).
iii Disponível em: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-fim-dos-namoros-segundo-o-facebook (acessado em 29/03/2013).
iv Disponível em: http://www.lifetracking.org.uk/ (acessado em 29/03/2013).
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Bibliografia
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SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
WILSON, Eric. Secret Cinema: Gnostic vision on film. Nova York: Continuum, 2006.
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Filmografia
ALICE no País das Maravilhas (Alice in Wonderland). Direção: Tim Burton. Produção: Walt Disney Pictures (EUA), Intérpretes: Johnny Depp, Mia Wasikowska, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Crispin Glover. Roteiro: Linda Woolverton. Walt Disney Pictures, DVD, 2011 (109 min.).
BRILHO Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind). Direção: Michel Gondry. Produção: Anonymous Content (EUA). Intérpretes: Jim Carrey, Kate Winslet, Elijah Wood, Tom Wilkinson, Kirsten Dunst, Mark Ruffalo e outros. Roteiro: Charlie Kaufman e Michel Gondry. Universal Studios Home Video, 2004. DVD (108 min.).
CIÊNCIA dos Sonhos, A (La Science Dês Revês). Direção: Michel Gondry. Produção: Gaumont, France 3 Cinema, Partizan Film (França/Itália). Intérpretes: Gael Garcia Bernal, Charlotte Gainsbourg, Alain Chabat, Miou-Miou. Roteiro: Michel Gondry. DVD independente, 2006 (102 min.).
ORIGEM, A (Inception). Direção: Christopher Nolan. Produção: Warner Bros. (EUA). Intérpretes: Leonardo Di Caprio, Joseph Gordon-Levitt, Ellen Page, Tom Hardy. Roteiro: Christopher Nolan. Warner Home. DVD. 2011 (147 min.).
PRISIONEIRO, O (The Prisoner).Direção: Nick Hurran. Produção: Granada Internacional, ITV Productions. Intérpretes: James Caviezel, Hayley Atwell, Ruth Wilson, Ian McKellen. Roteiro: Bill Galagher. AMC. DVD (seis episódios de 45 min.).
SONHANDO Acordado (The Good Night). Direção: Jake Paltrow. Produção: Good Night Productions, Destination Films (EUA/Reino Unido). Intérpretes: Martin Freeman, Gwyneth Paltrow, Danny DeVito, Simon Pegg, Penélope Cruz. Roteiro: Jake Paltrow. Califórnia Filmes, 2007. DVD (93 min.).
VANILLA Sky (Vanilla Sky). Direção: Cameron Crowe. Produção: Paramount Pictures (EUA). Intérpretes: Tom Cruise. Cameron Diaz, Penélope Cruz, Kurt Russell, Jason Lee e outros. Roteiro: Alejandro Amenábar (filme Abre Los Ojos) e Mateo Gil. Paramount Filmes do Brasil, 2001. DVD (136 min.).
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Wilson Roberto Ribeiro Ferreira, jornalista, professor da UAM, pesquisador, escritor, autor do livro “O Caos Semiótico” e do blog Cinegnose.