Frankenstein, de Mary Shelley – Entre literatura e ciência
Introdução
Na relação ciência-literatura, “a física não permite estabelecer uma hierarquia existencial absoluta entre o real e o virtual”, afirma a proposta do seminário Cosmos e Contexto, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), organizado pelo Prof. Dr. Mario Novello, no qual este texto seria apresentado.[1]
Para demonstrar a impossibilidade de se fixarem fronteiras rígidas entre real e virtual, partiremos da obra de terror romântica Frankenstein; or, a Modern Prometheus (Frankenstein: um Prometeu moderno), de 1818, de Mary Shelley. Herdeiro da literatura “gótica” inglesa, ou de terror, o romance apresenta a criação de um ser humano monstruoso pelo Dr. Victor Frankenstein, natural de Gênova e aluno da Universidade de Ingolstadt, na Alemanha.[2] Ele descobre o “segredo da vida” em suas leituras de alquimistas, como Cornelius Agripa, Albertus Magnus e Paracelso (2004, Cap. 2, posição 268), e, após estudos de eletricidade baseados em Luigi Galvani, torna-se miraculosamente capaz de formar a “criatura”, em segredo, devido às opiniões contrárias dos professores e do pai sobre aquelas pesquisas. E isso combinando partes de corpos retirados do cemitério, e em segredo. Como é característico do Romantismo, a ênfase da obra é no psicológico, e não na verossimilhança da imaginação com a realidade.
Dessa forma, notamos que ciência e imaginação são postos no mesmo nível de “veracidade”, como dois sistemas ou paradigmas intercomunicáveis. Isso é resultado da visão do Romantismo sobre o mundo, sempre valorizando as emoções subjetivas, e não a verossimilhança com o real. É totalmente inverossímil que apenas essas leituras tenham possibilitado a criação de um ser humano, embora tosco e de estatura desproporcional, com aparência aterrorizante, de aproximadamente dois metros e pouco de altura e aparência simiesca, apavorante (ver Lobo, 2000). O monstro é uma espécie de Calibã, de A Tempestade (1623), de Shakespeare. Mas, enquanto este servia de metáfora para um canibal das Antilhas, Frankenstein representa um serial killer, que odeia e assassina. Contudo, isso só ocorre porque ele é rejeitado por todos, inclusive quando faz o bem, ao salvar uma criança e ser acusado e perseguido com uma arma, ao devolvê-la à família.
A autora mostra que a “criatura” aos poucos consegue aprender a falar e a ler, adaptando-se aos hábitos sociais humanos. Suas leituras de O paraíso perdido, de Milton, dizem muito das referências religiosas da obra, na qual se destaca o conflito entre o bem e o mal e à queda do homem, ao infringir as leis da Ciência. Em Milton, a queda é causada pela desobediência dos homens por terem querido conhecer a ciência. Pois Belzebu, Lúcifer e Mefistófeles eram anjos do Senhor antes de caírem em desgraça e virarem demônios. O filho do Dr. Frankenstein também é chamado por ele de “demônio”, “criatura” e “desgraça”, palavras de origem bíblica.
Ele não tem nome no romance, mas, nos livros, filmes e peças teatrais posteriores baseados em Shelley passa a ser denominado pelo nome do seu criador, o cientista Dr. Victor Frankenstein.[3] Ele é dotado de poderes extraordinários, sendo capaz de deslocar-se pela Europa em poucos movimentos, independente de tempo ou espaço, e possui uma intuição acima do normal: descobre onde estão aqueles que persegue, que querem assassiná-lo, como o próprio pai cientista, que se arrependeu da sua criação. Nas entrelinhas, surge o questionamento muito atual sobre os limites da invenção humana no campo das Ciências. O próprio título retoma o mito de Prometeu, o titã grego, que roubou dos deuses o fogo sagrado para dá-lo à humanidade, e foi severamente punido (Jaeger, Paideia, 1945). O Dr. Frankenstein também foi punido, não pelo demiurgo, mas pelo seu “filho” e por ele mesmo, ao se arrepender de sua criação, e quando todos os seus entes queridos são mortos pelo monstro.
No conflito entre ciência e religião, Mary Shelley tem consciência da liberdade subjetiva pregada pelo Iluminismo, aprendida com seu pai, William Godwin, famoso jornalista, escritor e filósofo político. De seu lado, sua mãe, a famosa feminista Mary Woolstonecraft, publicou Direito das mulheres, contrapondo-se às constantes publicações intituladas Direitos dos homens, defendidos mesmo antes da Revolução Francesa. Obra controversa, no entanto, pois tratou-se de um plágio de uma publicação inglesa assinada por “Sofia”, que por sua vez havia plagiado François Poulain de la Barre, na sua obra De l’égalité des deux sexes (Da igualdade dos dois sexos, 1673).[4]
A estrutura da obra
O romance se inicia por quatro longas cartas do capitão Robert Walton a sua irmã, Sra. Elizabeth Saville, na Inglaterra, de dezembro de um ano não especificado do século XVIII até agosto do ano seguinte. Em longas divagações poéticas e emocionais, que refletem, com certeza, o pensamento de Mary Shelley, ele relata que está avançando de São Petersburgo (Carta 1) para Arcângelo. Esta cidade fica à margem da baía Dvina, no mar Báltico. Ali (Cartas 2 e 3), aluga um navio para enfrentar os “pathless seas” (mares sem saída). Quer encontrar uma, como aventureiro. Já no mar, relata que seu navio ficou preso no gelo (Carta 4), e vê passar, longe de qualquer povoado, no gelo, um estranho ser “de estatura gigantesca” num carro baixo puxado por um trenó atrelado a cães. Claro, é o monstro.[5] Duas horas depois, surge outro viajante – o pai – num transporte semelhante, em que só um cão sobrevivera – mas sobre um fragmento de gelo que se despregara, e flutuava no mar. Walton e sua tripulação o recolhem, e ele, combalido, nos próximos dias, passa a relatar sua história ao capitão durante o dia, que ele anota, à noite.
Aqui temos de notar três aspectos relativos à verossimilhança. Em primeiro lugar, para uma obra em três volumes, esses relatos contados de dia e anotados à noite pelo capitão, levariam meses, e talvez mais de um ano, para serem anotados só à noite. E principalmente se considerarmos os pormenores da narração, comentários sobre todo tipo de assunto, e assim por diante. Portanto, não há preocupação da autora com esse aspecto inverossímil.
O segundo aspecto também diz respeito à preocupação da escritora com a verossimilhança, uma vez que lança mão do subterfúgio da literatura epistolar, muito usada no século XVIII. Esta permite conhecer uma história através de outra personagem. É o caso, já que o protagonista do romance, Dr. Frankenstein, termina por falecer a bordo, e não poderia terminar de relatar sua história em primeira pessoa. Mas o capitão termina por surpreender o filho, que penetrara no navio, chorando diante do leito do pai. Ele salta e foge, voltando a apresentar perigo para a humanidade.
O último aspecto ligado à verossimilhança dessa primeira parte do livro é, portanto, além do uso da literatura epistolar, o uso do mise-en-abîme – uma história dentro de outra história, como ocorre no desdobramento de um sistema em outro, como em Gödel (1931) e Kuhn (1962). Segue-se então a história relatada, em flash-back, pelo capitão Robert Walton, mas em primeira pessoa, pois se trata do relato do próprio cientista, a qual é reportada em cartas. Temos vários desdobramentos aí. Neste ponto a autora mostra nova concessão à verossimilhança, quando afirma que o livro talvez não seja acreditado, pois o capitão Walton pode já estar enlouquecido em sua interminável viagem ao escrever suas cartas sobre a vida do Dr. Frankenstein e seu filho.
Frankenstein teve uma primeira edição, anônima, em 1º de janeiro de 1818, obtendo uma venda de 100.000 exemplares! O livro teve imenso sucesso de público, apesar de não obter boa recepção pela crítica. Já a segunda edição, de 1823 teve poucas correções, gramaticais, e saiu com seu nome, após a morte do marido, em 1822. Foi grande a sua luta para publicar a obra em seu nome, com a ajuda jurídica de seu pai, pois todos acreditavam que o autor era seu marido, o famoso poeta Percy Bysshe Shelley. E seus romances posteriores não fizeram sucesso. A publicação sob pseudônimo foi um recurso amplamente usado pelas escritoras do século XIX, como George Sand – Amandine-Aurore-Lucile Dupin – para escapar ao preconceito da crítica exercida por homens contra a produção literária de mulheres.
Já na terceira edição, de 1831, Mary Godwin Shelley explica a gênese do livro, numa longa introdução. O romance foi, inicialmente, um “conto de fantasmas”, num desafio proposto por Byron, para ocupar seus hóspedes, em seu castelo de Genebra, na Suíça. Em 1816, Mary Shelley se evadiu da Inglaterra com Shelley, então um homem casado, e ambos se hospedaram no castelo de Byron. Depois se juntou a eles John William Polidori, médico de Shelley. Ela transformou seu conto num romance. Posteriormente, John Polidori publicou The Vampyre (O Vampiro, 1819), primeira aparição da famosa personagem na literatura de terror.
Frankenstein pertence à literatura gótica ou de terror, iniciada por Ann Radcliffe, com o seu romance Os mistérios de Udolfo (1794). Este lança o gênero de terror como forma metafórica de expressão dos sentimentos vitimizados recalcados das mulheres, que viviam à sombra na sociedade patriarcal, dominadas por pais e maridos ou familiares. Contos de donzelas presas na torre são antigos, e podiam ser metafóricos ou referenciais. Tais situações não cessaram, no entanto, como mostra a obra The Madwoman in the Attic. The Woman Writer in the 19th Century Literary Imagination (1979), de Sandra Gilbert e Susan Gubar. Ali, vasta pesquisa de diários, depoimentos e obras pouco lidas de mulheres ignoradas pela literatura canônica representam um verdadeiro catálogo de terror, constando de situações psicóticas, ou de encarceramento, reais ou imaginários.
Segundo a feminista Ellen Moers (1976), Mary Shelley representou, na personagem Frankenstein, o aborto que sofreu, assim como a culpa por ter provocado, indiretamente, o suicídio da mulher de Percy Bysshe Shelley, grávida, quando ela fugiu com o marido dela. Só depois os dois se casaram. Os horrores por que passa o Dr. Frankenstein materializam seus próprios sentimentos na sua vida.
A mimese
O Romantismo foi pioneiro, na modernidade, em propor mundos inverossímeis, sem se preocupar com a impossibilidade de os fatos descritos ocorrerem no mundo real. Os autores criavam paradigmas imaginários (Holub). As formas de representação do mundo na literatura são definidos por Luiz Costa Lima em Mímesis e modernidade (1980, p. 171), como podendo ser de primeiro ou de segundo grau quanto a seu afastamento do mundo real. Na mimese de segundo grau, ou de produção, a desvinculação é bem maior, como na poesia de Mallarmé, que apresenta uma criação linguística autônoma em relação ao real exterior. Não pretende espelhar o real, como queria Gyorgy Lukács, para quem a literatura deveria ser didática e revolucionária (ver Mímesis, in Estética, v. 2, 1963).
Na mimese de primeiro grau, ou da representação, como se dá no Frankenstein, restam ainda alguns pontos no enredo que criam uma ponte com a referencialidade. O autor busca adequar sua história à realidade. Mesmo assim, o leitor de Mary Shelley tem de acreditar que é possível Frankenstein viajar da Alemanha para a Inglaterra e a Escócia por vários meios de transporte, em poucos dias sem chamar a atenção, levando-se em conta o seu físico grotesco. Afinal, atinge com a mesma facilidade as ilhas Oarkney. Além de sobreviver por meses viajando pelo Ártico, perguntar se a personagem Frankenstein e suas ações são verossímeis ou possíveis seria inviabilizar a leitura da obra. Mas por que o leitor não o questiona? Por que lemos o livro até o fim, sem perguntar como esse universo pode ser possível, e sem que isso nos atrapalhe a leitura? Exatamente porque acreditamos na veracidade das regras internas da obra, que criam seu universo próprio.
No Romantismo, ocorre o que Samuel Taylor Coleridge denominou “a temporary suspension of disbelief” (uma suspensão temporária da descrença. Ver Lobo, 1987, p. 201). Essa atitude implica em nos deixarmos levar pela imaginação, ao lermos uma obra romântica, a ponto de não a compararmos com o nosso universo de conhecimento cotidiano, no mundo exterior. Entramos, assim, sem espírito crítico, na criação imaginária como numa espécie de universo paralelo.
De fato, há um pacto entre autor e leitor, durante todo o período da leitura, conforme o define Philippe Lejeune em Pacto autobiográfico (1975), e que é fundamental na literatura. Não pode haver quebra da “suspensão temporária da descrença”, na definição de imaginação romântica de Coleridge.
Na década de 1920, O fluxo da consciência (stream of consciousness) surge como técnica literária praticado por James Joyce, Katherine Mansfield e Virginia Woolf, a partir de uma obra de Édouard Dujardin, no final do século XIX. Essa técnica dá realidade ao pensamento, ao retratá-lo como se ele tivesse realidade psicológica, numa linguagem relativamente livre da sintaxe do discurso racional e organizado. Ele vai além do monólogo interior de Proust e Flaubert, que tem enunciado lógico. A técnica do fluxo da consciência, ao contrário, deriva da noção de espaço-tempo da Física de Einstein, e se escreve do ponto de vista do pensamento de cada personagem dando-lhe uma estrutura tão real quanto a do mundo exterior. Assim, o pensamento cria seus próprios parâmetros, ganha uma “realidade” própria, segundo a interpretação de cada personagem, de forma autônoma ao real externo a ela. Nesse tipo de técnica literária experimental, pressupõe-se a equiparação do universo psicológico, imaginário, do “mundo possível”, com o universo real. E ele suas bases no Romantismo e no Impressionismo, do século XIX.
No conto “El jardín de los senderos que se bifurcan” (O jardim dos caminhos que se bifurcam, 1944), Jorge Luís Borges desdobra a personagem em duas, com base na teoria da relatividade de Albert Einstein, quando este propõe uma quarta dimensão para a observação da Terra. Um homem caminha ao mesmo tempo em duas aleias do jardim, e persegue a um outro. Eles se cruzam pelo ar, suspensos num jardim. O primeiro deles está armado com um revólver, e avista o outro numa segunda aleia. Persegue-o, atira e o mata. Contudo, na verdade mata a si mesmo, pois o outro era a projeção dele mesmo numa outra dimensão ou realidade virtual. Borges apenas concretizou no enredo a teoria da relatividade de Einstein, trazendo-a para o plano cotidiano da geometria euclidiana.
Estrutura semelhante, de criação de um mundo autônomo e paralelo ao real, é adotada por Julio Cortázar no conto “El Perseguidor” (O Perseguidor, 1959), no qual um homem da plateia se sente perseguido pelo músico de jazz, e este acaba descendo do palco e o perseguindo pelas ruas escuras noturnas de uma cidade qualquer. Tal enredo tem forma aleatória, sem lógica, como no Surrealismo, ou na literatura do Absurdo.
As possibilidades abertas pela proposição do axioma de Gödel foram do conhecimento do argentino Jorge Luís Borges no conto “Del rigor de la ciencia” (Do rigor da ciência, 1946). Este cria um simulacro do axioma, ao desdobrar, indefinidamente, mais e mais mapas, inicialmente de uma província, e que depois se estendem a todo o país. Cada mapa tem de incluir o anterior, para ficar mais perfeito, e assim sucessivamente. Com o tempo, tornaram-se farrapos e trapos abandonados, pisoteados pelos cidadãos, sem nem mais se darem conta disso. O conto funciona como uma metáfora negativa, avant-la-lettre, do “Google maps”, em que só temos acesso a um trechinho de cada vez – senão a totalidade do mapa ocuparia toda a memória de todos os computadores.
O mesmo axioma rege a escrita do conto “A biblioteca de Babel” (1944), de Borges. Nesta narrativa, uma bibliografia quer organizar um catálogo o mais completo possível, e, portanto, cada catálogo tem de incluir a si mesmo, indefinidamente. Mas é impossível completar qualquer sistema, como afirma Gödel, e nas palavras de Wagner Lannes:
Este trecho pode ser visto como um desdobramento do Teorema de Gödel, aludido pela presença nas prateleiras da biblioteca da demonstração da falácia do catálogo verdadeiro. O personagem acredita na totalidade da biblioteca e não percebe a impossibilidade desta totalidade ao contar a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro na sua prateleira. Seguimos com a apreciação e, da narrativa de Borges, emerge um exemplo do comportamento humano culturalmente herdado da matemática “pré-Gödel”. Quando se proclamou que a biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens sentiram-se proprietários de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloquente solução não existisse: nalgum hexágono (ver Borges, “A biblioteca de Babel”, 1995, p. 88).[6]
O pressuposto, nesse tipo de literatura filosófica, é o questionamento do real, não pela comparação com o mundo externo, mas pela criação de mundos com parâmetros próprios, no plano da imaginação ou da virtualidade. Também a ficção científica lida todo o tempo com esse tipo de invenção, uma vez que relata viagens espaciais a partir de questões científicas.
O axioma de Gödel já estava intuitivamente presente nos paradoxos atribuídos a Zenão de Eleia, na Grécia Antiga. Aquiles jamais venceria a tartaruga numa corrida – uma vez que o espaço da distância até o marco final pode ser, hipoteticamente, dividido em infinitos espaços, indefinidamente. Assim, Aquiles jamais sairia do lugar. Da mesma forma, a flecha jamais atingirá o alvo, pelo mesmo motivo. Essas especulações mostram dimensões invisíveis e possíveis, do ponto de vista da lógica matemática e filosófica, mas que vão contra o bom senso da prática. Mas elas aparecem na literatura, como a antimatéria ou mundos paralelos, pois, ao contrário da ciência, independem da exigência de comprovação. É o que ocorre no Frankenstein, de Mary Shelley.
Segundo o axioma de Gödel, nunca se completa a compreensão de um conjunto matemático ou do universo, pois sempre haverá algo que se desdobrará nesse sistema, provocando a criação de um novo sistema, indefinidamente. Raciocínio semelhante rege a escrita do conto “Las ruinas circulares” (As ruínas circulares, 1940, in Ficciones, 1944), de Borges. Nela, um ser semelhante a um deus dorme à beira de um rio, sonhando com a criação da humanidade. É ambíguo se este ser ou deus já criou o homem, e está sonhando; ou se ele é realmente um deus; ou se o mundo se reduz a isso: um deus nos sonhando – caso em que nós, humanos, não teríamos realidade concreta.
Podemos recordar aqui a antológica cena do filme Sonhos (1990), de Akira Kurosawa, no quinto Sonho, intitulado “Corvos”. Um estudante de arte, que está num museu observando os quadros de van Gogh, repentinamente entra no último quadro que pintou, Campo de trigo e corvos. Então o pintor lhe pergunta o que está fazendo ali dentro, em lugar de pintar o cenário, tão bonito. Toda a cena é acompanhada da segunda parte do Prelúdio em dó sustenido menor, op. 28, número 15, de Frédéric Chopin. Essa cena é hiper-realista, pois dilui as fronteiras entre o real e o onírico. Há nele várias camadas de mimese: um filme (1), no qual há um quadro (2) a personagem sai do museu para dentro do quadro (3) o pintor ganha vida (4) ambos são observados pelo público do filme (5). Aqui a mimese é realmente de segundo grau, bastante mais complexa do que o Livro VII, do Mito da Caverna, no diálogo República, de Platão. Ela rege o pós-moderno e o uso do hiper-realismo ou realidade virtual, que é equiparada ao universo exterior, sem estabelecer diferenciações ou fronteiras.
Posteriormente, Woody Allen refez a cena de Kurosawa, como pastiche, em A rosa púrpura do Cairo (1985). Neste, o próprio ator e diretor sai da tela do filme para o “cinema” – mas ele entra num desdobramento da primeira realidade, pois continuou dentro do filme, evidentemente. Entretanto, não há diversas camadas de universos autônomos e intertextuais entre cinema e arte, como em Sonhos de Kurosawa, que tem maior desdobramentos dos universos (Gödel).
São cinco níveis de mimese, sobrepostos, numa mimese de produção, segundo Costa Lima (1980, p. 171), não uma simples representação do tipo “imitação”, como a mimese foi interpretada até a Idade Média, como nos mostra esse autor.
Para entendermos a relação entre literatura e ciência, e como a obra Frankenstein unifica essa dualidade, precisamos recorrer à noção de mimese. Luiz Costa Lima mostra-nos que o conceito de mimese grego foi corrompido na Idade Média, pela Igreja Católica, ao reduzi-lo à ideia de representação. Tal movimento continua presente em muitas religiões, como no Islã, onde, até agora, é proibido representar-se a figura humana, pois isso constituiria um atentado à superioridade do Criador, igualando-se o artista com ele. É como na alegoria da caverna, do livro VII, da República, de Platão. Os homens vivem encerrados na sombra de uma caverna. Na dialética platônica (que nada tem a ver com a de Hegel), eles aos poucos acendem uma fogueira, e assim percebem as sombras, tomando-as pela realidade. Depois se voltam para a entrada da caverna e a luz do sol, mas esta ainda não é a verdadeira realidade. Pois, para Platão, a verdade está no mundo das ideias, do demiurgo, e tudo que há no mundo é imitação daquelas formas puras (mimese). A verdadeira aletheia, ou conhecimento puro, só pode ser alcançado, para Platão, pelos matemáticos, que entenderão que tudo que nos cerca, no dia a dia, é mera sombra ou cópia do verdadeiro mundo, o mundo das ideias, do demiurgo.
O tema da mimese é retomado por Platão no Livro X da República, quando, estranhamente, para um autor de sua magnitude, expulsa o poeta da cidade (a pólis é uma cidade-Estado, então). Ele o faz demonstrando que tudo que há no mundo é a representação do mundo ideal do demiurgo. Portanto, quando o poeta decide escrever representando ideias de sua imaginação, ele vai contra o permitido, pois se coloca como um deus criador. É uma mimese de segundo grau, em termos de distanciamento do real (não no sentido de Costa Lima). Neste caso, a palavra imita um objeto, que já é a imitação do mundo das ideias. Essas ideias se prolongam em Santo Agostinho e permeiam a Idade Média, quando a representação da figura humana era condenada na pintura, que pintava os homens de forma deformada (em parte pela falta de técnica, que será desenvolvida no Renascimento, em parte por imposição da Igreja).
Essa pureza do sentido do universo, que só seria atingida pelo filósofo ou pelo matemático, conforme Platão, no diálogo República, permanece na sociedade europeia medieval, embora Platão em si só tinha sido conhecido na Europa através das traduções pelos árabes Averróes e Avicena, no Renascimento. Mas a noção de obediência cega a Deus permanecia, e durante toda a Idade Média a Igreja proibiu a cópia exata das imagens e dos seres humanos na pintura, pois isso significaria imitar a criação divina. Isso explica por que as figuras aparecem deformadas nos quadros – e por que, nas sociedades islâmicas, até hoje a figura humana ou de animais não pode ser representada na arte (mas aparecem no cinema!).
Já no chamado “Realismo mágico”, o texto ganha “realidade” própria, como na trágica novela Pedro Páramo (1955), do mexicano Juan Rulfo. Os diálogos se passam num cemitério, que é erigido em mundo autônomo, onde os mortos conversam entre si, desde suas tumbas. Conversación en la Catedral (Conversa na Catedral, 1969), do peruano Mario Vargas Llosa e principalmente Cién años de solitud (Cem anos de solidão, 1967), de Gabriel García Márquez, nas décadas de 1960-1970, propuseram um mundo totalmente imaginário, sem apelo à verossimilhança externa, buscando criar a ilusão realista desse mundo fechado em si. Através da magia, as propostas desses livros passaram a ser “o real”.
É inevitável compararmos esse tipo de autonomia mimética com a literatura pós-moderna, com Paul Auster, Salman Rushdie, Peter Roth, John Barth ou Ian McEwan. Todos têm uma dívida imensa não só com o Surrealismo, mas com as teorias da Física, como no caso de Jorge Luís Borges, dentro das propostas do Realismo mágico sul-americano.
Na década de 1970, esse traço autônomo da literatura romântica foi levado ao extremo, na “condição pós-moderna” (Lyotard, 1979), quando os enredos enfatizam a hiper-realidade, mostrando enredos regidos por virtualidades que substituem totalmente o paralelismo com a realidade exterior. Por exemplo, em “The Invention of Solitude” (A invenção da solidão, 1980-1981, pub. 1982), Paul Auster escreve uma autobiografia em que as memórias ligadas ao pai se transformam numa história de crime e anti-heroísmo, o terceiro conto “The Locked Room” (O quarto fechado, 1986), terceiro conto da New York Trilogy (Trilogia de Nova York). Aqui, o leitor tem de aceitar a veracidade do mundo apresentado. Fanshawe abandona a mulher e o filho pequeno, e desaparece para sempre. Deixa apenas os manuscritos para trás. Ao final do livro, está vivo, mas sempre trancado num quarto. Como consegue trocar de identidade, nos Estados Unidos, como sobrevive financeiramente e como comprar uma casa? Essas perguntas sobre o mundo real não interessam à criação do escritor.
Todo o conto, em primeira pessoa, circula em torno da questão do duplo. O narrador, que é um escritor frustrado, inúmeras vezes se queixa que Fanshawe “desaparece” dentro dele, ou que ele “derrete” dentro de Fanshawe. Como em “William William”, de Poe, são amigos de infância. Toda a vida do narrador se resume a editar e publicar os livros do sumido Fanshawe. Casa-se com a mulher dele, adota seu filho, e até ama a sogra de Fanshawele – num traço um tanto parodístico, pois já é uma senhora, e parece ser uma tentativa de recapturar sua infância com o amigo.
Essas histórias pós-modernas são urdidas numa espécie de redoma ou mundo paralelo, absurdo, que se multiplica em novos aspectos do enredo, como ocorre no axioma de Gödel (1931). Também The Floating Opera (A ópera flutuante, 1956; revisto 1967), de John Barth, um autor que se diz influenciado por Machado de Assis, depois de tê-lo estudado no seu curso de Letras, nos Estados Unidos, há uma cena num hotel em que um quadro representando uma paisagem de um barco na praia substitui uma janela para o mundo real. Assim, a representação se sobrepõe à realidade.
A substituição da realidade pela ilusão é um pressuposto para a leitura em A morte de D.J. em Paris, de 1975, de Roberto Drummond. Só ao final o autor dá a perceber que se trata de uma “viagem” onírica ou por drogas da personagem, que está presa no seu quarto, diante de um pôster de Paris. O mesmo recurso ilusório, do sonho ou da loucura sustenta as obras mais conhecidas de Heloísa Maranhão, com Lucrécia (1979), Dona Leonor Teles (1985) e A rainha de Navarra (1986), em que as personagens vivem num mundo fantasioso, supondo-se personagens famosas, e até rainhas. No último destes, a personagem está vestida de “rainha da escola de samba” e está sendo transportada no que ela crê ser uma carruagem para um hospício, que ela crê ser um castelo. Criar um mundo visionário, através de uma representação mimética de primeiro grau, como simulacro do mundo real, e depois romper o pacto, é muito comum na literatura. Mas Mary Shelley vai adiante, pois não rompe o pacto de credibilidade e da verossimilhança. Ao contrário, sendo uma história de terror, insinua que Frankenstein continua à solta para assassinar as suas vítimas.
Industrialização, evasão romântica e Psicanálise
A industrialização, que se iniciou no século XVIII, na Inglaterra, implicou a devastação das florestas para a produção de carvão, para acionar máquinas de trens e de fábricas. Faíscas dos trens queimavam as florestas. Havia uma nostalgia da natureza, lentamente destruída pelo progresso industrial. O fenômeno do progresso industrial levou à fuga da geração dos Poetas do Lago ingleses (oriundos do Lake District, de Cumberland e Westmoreland). Dela faziam parte lorde Byron, Percy Bysshe Shelley e Mary Shelley, além de Wordsworth, Coleridge e Southey Wordsworth e Southey também visitaram a Suíça.
Wordsworth, outro romântico, mostrou sua nostalgia e vontade de fuga em seus poemas “The Excursion” (A Excursão, 1814) como parte do poema maior “The Recluse, a Poem” (O Recluso, o poema, 1880), e “The Prelude” (O Prelúdio, 1798).
Ao contrário do Romantismo, a maioria dos escritores realistas do século XIX se preocupou em justificar a criação de seu universo imaginário, apresentando a descrição de fatos e pormenores para acentuar a verossimilhança em relação ao mundo real. No caso de Charles Dickens, por exemplo, ele sempre incluiu na narrativa descrições de locais e situações cotidianas, com perfeita noção do tempo cronológico, de forma a simular, da forma mais exata possível, o que ocorre na vida real. Nesse caso, a narração (invenção) se torna escrava do narrado (significado) e o autor pressupõe uma fronteira entre a realidade e a ficção, que deve ser escrita em função da realidade.
O Realismo se contrapõe, portanto, ao Romantismo, que usa de mais liberdade para criar personagens e situações inusitadas. A obra de Mary Shelley chegou a receber algumas análises sob o ângulo da ficção científica, numa tese um tanto forçada, pois ela não entra nos pormenores científicos da fabricação do monstro.
Nos vários filmes baseados no livro Frankenstein, sempre houve a preocupação em fornecer uma explicação científica para a criação do monstro – uma vez que o cinema lida com imagens concretas, portanto mais realistas que os signos literários, que são abstratos. Assim, o roubo de restos mortais no cemitério ou a montagem de um laboratório com várias máquinas, ou a colocação de parafusos na testa do monstro surgem como formas rudimentares de darem verossimilhança a algo que era inexplicável. Muitos filmes e livros foram realizados a partir de Frankenstein, e sempre enfatizaram o tétrico, com o roubo noturno de cadáveres no cemitério, ou a forma de criação do monstro, com acréscimo de detalhes mecânicos. O Romantismo, ao contrário, pressupunha que a “irrealidade” do mundo imaginário era tão real quanto a que vivemos no mundo exterior.
Em 1866, Lewis Carroll publica Alice no País das Maravilhas. A personagem vive uma história fantasiosa, imaginativa, autônoma, num mundo que só se sustenta pela verossimilhança interna. Contudo, ao fim do livro, Carroll faz Alice acordar de um sonho e retornar ao mundo real. Mostra, assim, que valoriza a verossimilhança ou ligação com a realidade. A ilusão se desfaz, retornando-se ao cotidiano realista, e rompe-se o sonho, o universo de imaginação.
O recurso de criar universos imaginários e paralelos, como os de Mary Shelley e de Lewis Carroll – para não mencionar a poesia, e em especial O Paraíso perdido, de Milton, que o monstro lê durante o seu aprendizado – está presente também no pré-romântico Xavier de Maistre. Em Voyage autor de ma chambre (Viagem ao redor do meu quarto, 1794), de forma bastante pioneira para seu tempo, todo o livro se reduz aos pensamentos delirantes e experiências passadas da personagem autobiográfica, que permanece cerca de 40 dias trancado num quarto, em prisão domiciliar, determinada pelo Exército. A noção de sujeito e de imaginação eram bastante recentes em literatura, graças à liberdade individual adequada com o Enciclopedismo e a recente Revolução Francesa.
Machado de Assis, leitor de Xavier de Maistre, é um clássico do Realismo, no Brasil. Seu primoroso conto “A chinela turca” (1875) se volta para Duarte, que tem um sonho cheio de peripécias, numa viagem em busca de uma chinela turca, atravessando terras exóticas. No entanto, o escritor também rompe o encanto ao mostrar que tudo não passa de um sonho que acomete Duarte. Ele acorda na sala, formalmente vestido para uma recepção, mas adormecera no sofá, surpreendido por uma visita que lhe lê um manuscrito de mais de uma centena de páginas.
Noutro conto de Machado, “Noite de almirante” (1884), são as fantasias de que se gaba o marinheiro, em terras distantes, que ninguém poderia comprovar. Em Machado, até as metáforas criadas se inserem no Realismo, como se dá em Dom Casmurro, seu livro mais psicológico, em que “os olhos de ressaca” de Capitu não rompem o espaço realista do enredo – ao contrário de Lewis Carroll, com sua lebre louca e o chá das cinco.
Não há em Machado a criação de um universo fantasioso e por assim dizer autônomo, como lemos no Romantismo de Edgar Allan Poe, por exemplo, quando a personagem William Wilson encontra um colega de classe também chamado William Wilson, nascido no mesmo dia, mês e ano que ele (“William Wilson”, 1839). Todo o enredo se desenvolve a partir dessa premissa absurda – num prenúncio da literatura surrealista e, também, policial ou de crime – e o leitor é convidado a entrar nesse mundo fantástico. Com tintas psicológicas, antecipando a Psicanálise, o inglês Robert Louis Stevenson cria a novela Dr. Jekyll e Mr. Hyde (1886), que marcou época. Novamente, a maldade e a bondade se alternam, com resultados nefastos, na trama. Mas o leitor imerge na narrativa, sem se perguntar se todo esse universo narrado é real ou se foi inventado pelo narrador.
Um recurso muito utilizado, que vemos em Bram Stoker no seu Drácula (1897), é usar a literatura epistolar. Sendo o estilo epistolar descritivo, aumenta a verossimilhança. A carta serve de testemunho e confirmação para tudo que afirma o narrador. À medida que a personagem masculina do enfrentador de vampiros em castelos arrepiantes escreve cartas, pode-se duvidar de sua veracidade e de sua saúde mental, preservando uma obediência de primeiro grau à realidade exterior. Neste caso, se o leitor não quiser “acreditar” na existência de um drácula, poderá interpretar que a personagem enlouqueceu. Criam-se, assim, dois paradigmas, um em que o sistema é crível e uma alternativa em que o sistema é dado por impossível, no plano do real.
Ao lado de Edgar Allan Poe, com “O gato preto”, “Os crimes da rua Morgue”, “O poço e o pêndulo”, “O barril de Amontilhado”, e tantos contos de terror, temos Guy de Maupassant. Ambos criaram as primeiras histórias de detetive, exatamente porque essa profissão só passou a existir em 1850, nos Estados Unidos.[7]
O duplo como base do terror
Em Mary Shelley, o duplo, do tipo o “médico e o monstro”, está aqui representado na figura do cientista, que se vê incarnado na sua “criação”, condenada por Deus. Esse “demônio” incarna tudo o que a Ciência encerra de ameaçador e interdito do ponto de vista ético, e funciona como uma grande metáfora do conflito arte e fé versus ciência e racionalidade, tão atual no mundo pós-moderno em que vivemos. No primeiro Romantismo, mais lírico e subjetivista, a que pertence Mary Shelley, essas ideias psicológicas ainda eram muito intuitivas, pois nem Freud nem Charcot tinham ainda escrito suas teorias sobre a psique humana. Mary Shelly rompe com as barreiras entre real e virtual, criando um mundo com suas formas absurdas e autônomas, sem se preocupar com a impossibilidade da existência do monstro no mundo real. Ao final, atravessa o norte da Rússia, rumo ao Ártico, de trenó. Por sinal, no seu encalço, seu criador, um simples ser humano, também anda de trenó pelo gelo, guiado por cães – o que seria bastante difícil em nosso mundo real. Nessa parte final da narrativa, não é o monstro que persegue os humanos, para matá-los, mas seu pai, o cientista, que o persegue para exterminá-lo, dado o perigo que apresenta para a humanidade.
A problemática do duplo já foi muito utilizada na literatura, no passado, como, por exemplo, na temática da troca do príncipe rico por seu irmão pobre, o rei e o mendigo, e noutras situações dramáticas, no teatro, através de disfarces, em que uma personagem se passa por outra. Na própria Mary Shelley, o monstro é um duplo do Dr. Frankenstein, já que se desdobra dele, embora sem seu nome.
Antecipando os estudos sistemáticos em Psicanálise, o medo que é próprio do inconsciente, desloca para os seus sentimentos mórbidos e maus para fora, criando um duplo, que passa a encarnar de forma concreta aquele mal inaceitável no eu. Ao se incarnar na instância do ego e da realidade, liberta o id, ou inconsciente da personagem principal. No gótico, fica claro que as fronteiras entre a imaginação e a realidade física são tênues.
Ao final da obra, o cientista é socorrido pelo capitão Robert Walton, em seu navio. Mary Shelley preocupou-se com o eixo da verossimilhança, pois seria realmente incrível que a narrativa, até ali em primeira pessoa do singular, pudesse continuar narrando após a própria morte. Portanto, mesmo nesses universos inventados, há de haver, senão uma verossimilhança externa, ao menos uma verossimilhança interna, uma coerência nas regras de criação – exceto na literatura do absurdo, no Surrealismo, ou nos contos de fadas e fábulas.
Um recurso muito utilizado, que vemos em Bram Stoker no seu Drácula (1897), é usar a literatura epistolar. Sendo o estilo epistolar descritivo, aumenta a verossimilhança. A carta serve de testemunho e confirmação para tudo que afirma o narrador. À medida que a personagem masculina do enfrentador de vampiros em castelos arrepiantes escreve cartas, pode-se duvidar de sua veracidade e de sua saúde mental, preservando uma obediência de primeiro grau à realidade exterior. Neste caso, se o leitor não quiser “acreditar” na existência de um drácula, poderá interpretar que a personagem enlouqueceu. A narrativa, em si, se sustenta na mimese de segundo grau, uma criação fora da realidade física, euclidiana e cotidiana.
As fronteiras
A literatura romântica tem muito mais liberdade de criar parâmetros autônomos, ou o que Thomas Kuhn, em 1962, denominou paradigma. Kuhn afirma que novos sistemas, padrões ou modelos sempre substituem os antigos. Essa noção se assemelha ao axioma de Gödel, que propõe universos desdobráveis, que vão criando mundos, praticamente realidades paralelas. Autora romântica, o enredo se constitui de fatos absolutamente inverossímeis. A autora aproveita a obra para lançar questões éticas, ligadas ao direito sobre a vida de outro ser, e a forma de aceitação do outro, ou questões humanistas ligadas à ciência. Seu universo de criação teve em Frankenstein um enredo inverossímil e fantasioso, que no entanto ela tornou crível e “real”, tal foi a força de sua imaginação.
Ela mostra grande interesse pelo aspecto de aprendizagem do ser, como ele aprende, aos poucos, a se comunicar, a falar e a ler – numa preocupação com a verossimilhança em relação ao mundo exterior. Sua obra não se reduz a um enredo de terror, que já era abundante na Inglaterra de então. Na concepção romântica de Mary Shelley, já encontramos a noção de permeabilidade entre o real e o fictício. Eles se misturam, o que vai além do simplesmente psicológico. Real e imaginário, figura real ou androide, clone ou vítima de um experimento científico – essas fronteiras com a ciência se misturam, na obra.
Na poesia pré-romântica de Thomson, no século XVIII, ou no romance gótico, passado em castelos em ruínas, habitados por fantasmas, como em The Monk (O Monge, 1796), de Matthew Gregory Lewis, e em Ann Radcliffe, com Os mistérios de Udolfo (1794), ou no pré-Romantismo alemão, com o Fausto, de Goethe – principalmente a primeira parte, com sua noite de Walpurgis, das bruxas –, as cenas de terror retornam ao medievo. O Dr. Frankenstein chega à descoberta do segredo da vida estudando Paracelso e outros esotéricos e alquimistas medievais, contra a vontade dos professores de Ingolstadt, na Alemanha. Nesse ponto, o livro de Mary Shelley levanta a questão da dicotomia entre ciência e crença.
O grupo dos “Modernos”, no Romantismo, efetuou um retorno à Idade Média e a valores da mitologia local, como a germânica, à história medieval da Inglaterra e França, em detrimento do conservadorismo do grupo dos “Antigos”, que desejavam continuar presos à mitologia greco-latina, como André Chénier. Apolo, Vulcano, Vênus, ninfas, elfos.
Em Frankenstein, há o mito enciclopedista do bom selvagem, tão bem aprendido por Mary Godwin com seu pai. O bom selvagem se corrompe no contato com a civilização. Frankenstein, igualmente, era bondoso. Contudo, depois de ser sempre rejeitado por sua aparência horripilante e quase assassinado, passa a assassino. No entanto, o móvel do mal é a negação do pai em lhe dar uma parceria, ou fêmea, com quem poderia procriar e multiplicar indefinidamente sua espécie. Isso é o que provoca a vingança do filho contra o pai, e seu empenho em persegui-lo para matá-lo, ao mesmo tempo em que o pai decide igualmente persegui-lo até o Ártico, para exterminá-lo.
São os pensadores pré-românticos do enciclopedismo francês, como Rousseau, Diderot, ou Montesquieu, que propõem, talvez pela primeira vez, um sujeito da história que discute e expõe seus pontos de vista pessoais. Na Idade Média, não existia tal subjetividade. E no pensamento clássico, como em Homero, todos os pensamentos eram atribuídos aos deuses. Basta ver como os ataques na guerra, na Ilíada, eram ordenados por deuses que batalhavam entre si, controlando os humanos do alto. A vida na Terra era dominada pela vontade divina.
Tudo isso deriva do pensamento metafísico, presente no pensamento transcendentalista alemão, expresso por Kant, Schelling e Hegel. Principalmente Hegel explica a sociedade por poderes divinos, externos ao humano. A sociedade seria movida por um espírito da história (Geistesgechichte), que conduziria as sociedades, numa dialética constituída de afirmação, negação e síntese, levando a nova afirmação, que formaria a nova tese.
O aspecto metafísico próprio do Romantismo expressa o desejo romântico do sobrenatural, do super-humano, do herói, expresso na posterior grandiosa ópera de Wagner, com sua música total, na invenção de personagens sobre-humanos, da mitologia escandinava moderna. Esses super-heróis levam à ideia de um sublime que eleve o homem até Deus, como Victor Hugo discute no prefácio a sua peça Cromwell (“Do grotesto e do sublime”, 1828), aquilo que Vaclav Cerny chamou de “titanismo” ou desejo de superação e elevação transcendente e metafísica, acima do eu cotidiano. Este é o principal recurso do livro Frankenstein para se alçar acima da média dos enredos banais que conhecemos. O ser sem nome que acabamos chamando pelo nome do pai, Frankenstein, não é alguém de ações medíocres. No livro, tudo é grandioso, desmesurado e para além do real e do verossímil. Pura imaginação, pela impossibilidade de sobrevivência, quer do pai, quer do filho, senão na fantasia.
Walter Scott também enaltece a mitologia nacional, medieval e celta da lenda do rei Artur e seus cavaleiros da Távola Redonda. Em seu Ivanhoe, esses valores nacionalistas da “cor local” europeia são idealizados e levam ao abandono da mitologia greco-latina, considerada uma cultura antiga, superada. Esta consiste no enaltecimento dos valores nacionais e culturais dos países da Europa moderna e abandono dos ideais e da mitologia greco-latina.
Na sequência, houve os estudos delirantes de Wagner sobre as raças puras, a mitologia autêntica germânica; a poesia ultrarromântica dos nobres revolucionários que apoiaram a Revolução Francesa, as revoluções de 1830 e de 1848, de cunho republicano, com Vigny, Musset e Vítor Hugo.
Conclusão
A visão de Mary Shelley supõe a criação de um novo paradigma literário (Holub). O imaginário é o móvel desse enredo, sem preocupação com a demarcação de um eixo comparativo com o verossímil, aquilo que acreditamos em nossa vida cotidiana. É preciso aceitar o universo de Frankenstein como ele se apresenta para nós, ou então abandonar a leitura do livro. O mundo ficcional do livro de Mary Shelley se sustenta por si, tem coerência interna entre os capítulos.
O livro nos remete para uma grande questão metafísica – transcendental –, algo que está além da física ou do entendimento do vulgo – ao colocar, implicitamente, o limite de poder de criação do ser humano: podemos nos igualar a Deus, criar pessoas, nos responsabilizarmos por sua ética e ações? No romance, a questão é hipotética, pois não havia qualquer possibilidade de criar um clone, então. Mas, como em qualquer obra de arte importante, a questão permanece até hoje, quando já vislumbramos condições para fazê-lo.
Clones e cyborgs, que são a versão concreta, no plano real, dos séculos XX e XXI para os autômatos, que já fascinavam os autores no século XIX, como nas obras de terror de um E. T. Hoffmann, repleta de autômatos e máquinas. A criação mais aterrorizante é a de criar seres, para o bem ou para o mal. Remete para um “admirável mundo novo” (H. G Wells), que poderia que poderia nos destruir, se se voltassem contra seus criadores. Representam novos paradigmas, que, à época de Shelley, eram representados como seres disformes e animalescos.
Evidentemente, a resposta de Mary Shelley, em seu tempo, foi condenar a criação de um ser humano por Victor Frankenstein, pois ninguém pode se equiparar a Deus. Mas hoje, o dilema religioso poderia ser visto como a proibição de utilizar embriões humanos, na ciência. A questão da natureza, primordial ao Romantismo e aos poetas do Lago, agora se coloca no plano da cultura e suas leis.
Frankenstein, além de herói das histórias em quadrinhos, também pode antecipar uma personagem do futuro, da ficção científica, capaz de deslocar-se à velocidade do pensamento, sem ser visto por ninguém.
O cientista termina por morrer, a bordo do navio do capitão Walton. E ele surpreende a “criatura”, que penetrou no navio, chorando pelo pai, de forma humanizada e bondosa. Em seguida, foge pelo Polo Norte. A autora deixa a história neste ponto, sem desmanchar as ilusões e situações inusitadas do livro, e deixando pairar dúvida sobre a veracidade dessas cartas, pois o capitão já poderia ter enlouquecido, preso nas geleiras do Polo Norte, devido ao frio e à fome. Assim, Mary Shelley nos mostra um universo perfeitamente autônomo, que se explica em si mesmo, baseado nas suas próprias assertivas discursivas, como se fossem reais.
Mary Shelley foi, assim, pioneira na diluição das fronteiras entre Ciência e imaginação literária, propondo-nos o imaginário como sistema de pensamento, seja científico, seja ficcional.
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[1] Este texto se baseia na palestra que eu faria, no dia 16 de abril de 2020, caso o seminário não tivesse sido cancelado, devido à pandemia.
[2] Não haverá uma contradição no nome de origem alemã, na Silésia, inspirado a Mary Shelley numa família que realmente existe, e o narrador afirmar, logo no início do Capítulo 1, que toda a sua família é natural de Gênova? São detalhes realistas que o Romantismo despreza ou ignora: “I am by birth a Genevese, and my Family is one of the most distinguished of that republic. My ancestors had been for many years counsellors and syndics, and my father had filled several public situations with honour and reputation.” (Shelley, 2004, Posição 260). [Sou, por nascimento, genovês, e minha família é uma das mais distintas da república. Meus ancestrais foram, por muitos anos, conselheiros e síndicos, e meu pai ocupou vários postos com honra e boa reputação”.] Minha tradução.
[3] A primeira vez em que o monstro, filho do jovem cientista, Dr. Victor Frankenstein, é chamado pelo nome do pai é num filme de 1931, dirigido por James Whale. Já no cartaz da Universal Studios o nome Frankenstein vinha ao lado de sua foto, anunciando-o como “o monstro”.
[4] No Brasil, Nísia Floresta, por sua vez, traduziu Mary Woolstonecraft, pensando tratar-se de obra original, e a crítica considerou seu famoso livro Direito das mulheres como ensaio original ensaística da escritora rio-grandense-do-Norte por muito tempo – e ela não o desmentiu. (ver Lobo, Guia, 2004, p. 224).
[5] Trata-se do monstro, que ele e seus marinheiros observam com seus “telescópios”. Interessante notar que o telescópio foi inventado em 1608, e os binóculos apenas em 1825, bem depois desta obra.
[6] Wagner Lannes, A incompletude além da matemática: impactos culturais do teorema de Gödel no século XX. 2009. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, UFMG, p. 151. Disponível em:
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/VGRO-82THEU/1/wagner_lannes.pdf. Acesso em: 10 junho 2021.
[7] Muitas das primeiras feministas preferiram escrever romances de crime, uma vez que antigamente não havia detetives mulheres. É o caso da escritora Sonia Coutinho (1939-2013), com seu Atire em Sofia (1990), O caso Alice (1991) e Mil olhos de uma rosa (2001). Em seus enredos, as protagonistas-narradoras eram as próprias vítimas dos crimes.