Física e Filosofia
Física e Filosofia[1]
Jean- Marc Lévy – Leblond no livro Impostures Scientifiques (1998) criticou a arrogância dos físicos atuais que desprezam a filosofia da ciência. O Nobel de física Steven Weinberg, no livro “Sonhos de uma Teoria Final”[2] escreveu um capítulo denominado “Contra a Filosofia”. Citando Richard Feynman, Weinberg afirmou que a filosofia da ciência serve tanto aos cientistas quanto a ornitologia serve aos pássaros. Esta é possivelmente uma verdade, mas os pássaros em geral não atacam os ornitólogos, exceto no famoso filme de terror de Alfred Hithcock. Já Einstein em artigo publicado no New York Times Magazine de 9 de novembro de 1930 refere-se a Demócrito e Spinoza, por exemplo.
Houve um grande impacto filosófico da Revolução Científica e da mecânica de Newton. Antes mesmo da mecânica newtoniana, no século XVI, Francis Bacon propusera um empirismo pragmático, mas ingênuo se comparado ao chamado empirismo britânico que depois floresceu na esteira do êxito da mecânica – com Locke, um dos pais do liberalismo, Berkeley e Hume, apesar de este último ter sido um crítico cético da lógica indutiva do empirismo por vezes atribuído a Newton. Nesta época, em contraste com o empirismo, houve outra influência da mecânica na filosofia: a do racionalismo de Descartes e de Leibniz, eles próprios fundadores da mecânica ao lado de Galileu e Newton. A estes dois últimos vou associar respectivamente o realismo e o determinismo. Kant, talvez o último dos grandes filósofos inspirados pelo veio da mecânica newtoniana, buscou a partir do ceticismo de Hume fazer uma síntese do empirismo com o racionalismo, mas subordinando o primeiro ao segundo na sua Crítica da Razão Pura.
Enfoco aqui o conhecimento científico a partir das relações da física com a filosofia da ciência, com outras áreas do conhecimento e com a sociedade. Trato assim da relação entre o que alguns autores vêm como “duas culturas” universais paralelas na Civilização Ocidental, cujas linguagens são relativamente estanques entre si: as ciências da natureza e as humanidades. Nestas últimas são incluídas as ciências sociais e humanas, bem como, em geral, a filosofia. As ciências da natureza usam o método científico, caracterizado pela experimentação e, em alguns casos, pela teorização matemática, embora esta última seja plenamente realizada apenas nas ciências físicas. As demais ciências naturais são experimentais e usam a matemática na análise dos dados, mas nem todas as suas teorias são matemáticas. Já as humanidades não são experimentais e utilizam basicamente uma linguagem discursiva, ancorada por vezes na lógica formal, por vezes em uma lógica difusa, própria da linguagem natural. Mobilizam múltiplos métodos desde a hermenêutica até o próprio método científico e a matemática. Tal é o caso da economia, na parte em que desenvolve modelos matemáticos e computacionais, bem como da sociologia, ao aplicar técnicas estatísticas de pesquisa por amostragem. Aqui entra também em jogo a capacidade de as ciências sociais fazerem previsões e quantificarem grandezas, expressas por números, em correspondência com fatos observáveis, como as ciências da natureza. Um caso típico é o das pesquisas eleitorais, com êxito maior do que o dos modelos da economia. Mas, esta não é uma característica constante das ciências sociais, sendo mesmo negado por correntes importantes que deva ser este o seu escopo.
Tomo a palavra “tecnociência” emprestada dos construtivistas. Ela, aqui, apenas significa a junção da ciência com a tecnologia dela derivada e que retroativamente a alimenta. Devo advertir que nem tudo na tecnologia vem da ciência, mas esta tem um importante campo de aplicação na tecnologia. A palavra “cultura” foi pega emprestada da antropologia por C. Snow em um livro de 1959 para caracterizar a diferença entre humanidades e tecnociência, tomadas por ele como “duas culturas universais” . No entanto, tanto a tecnociência como as humanidades derivam do Iluminismo, que se situa no cerne da modernidade, na qual emergiu a sociedade industrial e tecnológica do capitalismo. Fala-se hoje em sociedade pós-industrial e pós-moderna, talvez pós-científica, mas não pós-tecnológica. A tecnociência, juntando a ciência com a tecnologia, impregna o mundo atual profundamente. Deste ponto de vista vejo a tecnociência e as humanidades como duas faces da mesma moeda na Civilização Ocidental e não como “duas culturas” separadas. Talvez fosse melhor caracterizar as humanidades e a tecnociência pela diferença de etos[3], palavra cujo significado na antropologia é menos forte do que o de cultura, ou apenas diferenciá-las pelas suas linguagens. Entretanto, vou buscar falar destas “duas culturas” – entre aspas, isto é, usando o termo sem rigor científico – em uma linguagem comum capaz de unificá-las em uma visão crítica, mas racional, diversa tanto da vulgarização propagandista da ciência como do anticientificismo em moda no limiar do séculoXXI, associado por vezes à pós-modenidade. Nesta concepção o termo “ciência” é restrito às ciências da natureza, excluindo as ciências sociais, ou seja, as humanidades. Em várias passagens e citações inevitavelmente uso este sentido restrito do termo “ciência”, embora mantenha um ponto de vista crítico. A filosofia da ciência tem pretendido estabelecer pontes entre estas “duas culturas”, etos ou linguagens nem sempre com sucesso. Muitos problemas atuais da filosofia da ciência têm raízes históricas e filosóficas, em geral pouco conhecidas pelos cientistas, do mesmo modo que, simetricamente, questões atuais das ciências são, por vezes, mal compreendidas pelos filósofos.
Algumas premissas ou hipóteses serão formuladas“a priori” como pontos de partida, para buscar sustentar logicamente minhas teses e confrontá-las, ao longo do texto, com a história da ciência e das teorias do conhecimento.[4] Julgo melhor usar este método do que buscar em fatos históricos escolhidos induzir empiricamente as hipóteses, “a posteriori”, para formular teorias. A primeira hipótese é a de que a ciência não se desenvolve autonomamente no plano intelectual das idéias. Seus conceitos e teorias têm uma profunda relação com o contexto histórico, tanto nos aspectos intelectual e cultural como nos aspectos econômico, social e político. Esta relação se dá em mão dupla. A ciência é influenciada pelo contexto social em que nasce e se desenvolve, de onde se nutre com os meios materiais e institucionais de que necessita e com a motivação intelectual e ética dos cientistas, tanto quanto com a demanda tecnológica e econômica pela aplicação de seus resultados e inovações. Desta demanda depende o apoio dado à ciência, na expectativa que contribua para equacionar e resolver problemas práticos. A ciência em outro sentido influi neste contexto social, seus resultados são apropriados pela sociedade, mas de modo diferenciado pelas diversas classes sociais, predominando o interesse da classe dominante em cada época. O veículo mais comum desta apropriação é, em geral, a aplicação tecnológica. Entretanto, a ciência influi também na visão de mundo dominante e é influenciada por esta, seja exportando seus paradigmas para outras áreas do saber e da prática, seja incorporando ideias destes outros campos e legitimando ideologias. Esta é a tese que procurarei mostrar, não como fazemos na demonstração de um teorema da geometria, mas através de uma análise crítica sustentada por argumentos históricos e lógicos. Espero que estes permitam ao leitor chegar comigo às conclusões que, com base em premissas claras, procurarei mostrar serem verdadeiras ou pelo menos verossímeis dentro das condições explícitas no texto.
Assim, paradigmas da ciência têm sido usados para legitimar a ordem social e econômica. É o que ocorre na justificação do capitalismo pelo paradigma que engloba desde a teoria econômica liberal clássica – influenciada pela concepção de lei natural da mecânica de Newton – até a teoria neoclássica – cujo formalismo é inspirado na mecânica analítica do século XIX. Ou têm sido usados para contestá-la, como fez Galileu, enfrentando a Santa Inquisição em nome da nova ciência, no alvorecer da Revolução Científica precursora da Revolução Industrial que consolidou o capitalismo. E também Marx no Século XIX fez o mesmo ao elaborar uma teoria crítica do capitalismo, como um modo de produção historicamente determinado e superável como os que o antecederam Sua formulação teórica do que foi denominado determinismo histórico e socialismo científico teve uma conotação indisfarçável que veio da concepção newtoniana de ciência. Por isso é compreensível o interesse intelectual de um grande número de leitores pelas questões epistemológicas, às quais os cientistas nem sempre estão atentos no afã do dia a dia da sua pesquisa. O avanço da ciência depende pouco das contendas acadêmicas entre escolas da epistemologia, exceto em situações de crises e rupturas, quando a ciência volta aos braços da filosofia, da qual nasceu. Nestas condições cientistas revolucionários se confundem com filósofos, desde Descartes,Galileu, Leibniz e Newton até Einstein, Bohr, Schroedinger e Heisenberg. Na abordagem histórica das teorias do conhecimento científico centrarei o foco da atenção na física e no método científico surgido com ela. Não há aqui uma pretensão de imitar o rigor da ciência, como pretendeu a teoria do conhecimento científico fundada na filosofia analítica. Do ponto de vista lógico, seria recorrente usar a linguagem da ciência para falar sobre a ciência de fora dela, para isto seria preciso usar uma metalinguagem, mais geral que a linguagem da ciência. Para evitar tais complicações vou fazer uma abordagem histórica e crítica.
Para definir alguns termos usados acima, posso dizer de modo sucinto que a epistemologia[5] tem como objeto de estudo o conhecimento, em particular o científico, relacionando-o à filosofia e à lógica. Assim, ela recobre a filosofia da ciência, na qual um ramo muito influente é a filosofia analítica – caracterizada pela especialização temática e pela valorização da lógica formal como instrumento. A filosofia analítica é estritamente conceitual, ou seja, trata da ciência em si sem relacioná-la ao contexto histórico quanto aos aspectos cultural, econômico, social e político. A contextualização da ciência levando em conta estes aspectos externos à ciência costumava ser denominada de abordagem externalista. Esta velha designação ganhou novo nome: ao invés de abordagem “externalista” passou a se denominar “contextualizada socialmente” em oposição à abordagem “internalista”, que passou a ser designada de “conceitual”[6], embora o velho significado destas palavras se mantenha em uso em trabalhos recentes. Apesar de estar assumindo como ponto de partida a inserção da ciência no contexto histórico e social em que se desenvolve, não pretendo relacionar cada teoria científica ou epistemológica, que veremos, aos condicionantes históricos e sociais. Não é este o escopo deste estudo, embora explicite estas relações históricas e sociais, em termos gerais, para a ciência como um todo. O que procurarei fazer é relacionar as teorias do conhecimento mais importantes às teorias científicas que nelas influíram. Vou me restringir primeiramente à história das teorias do conhecimento e à influência que nelas teve a física, abordando o determinismo newtoniano como um paradigma geral na visão de mundo hegemônica da modernidade, desde suas origens até a ruptura deste paradigma iniciada no fim do milênio, nos séculos XIX e XX. Procurarei neste caminho estabelecer uma conexão entre as principais teorias epistemológicas e o desenvolvimento da física. Uma tese que buscarei demonstrar é que a física forneceu o paradigma para as teorias epistemológicas mais influentes na modernidade[7]. A influência da física na epistemologia não se restringiu às ciências naturais, mas se estendeu às humanidades.
Vou defender a tese de que a física se incorporou em um paradigma geral de enorme abrangência e permanência na história moderna. A ciência serviu de matriz da visão de mundo dominante na modernidade e ao mesmo tempo a refletiu dialeticamente. E a física, através do determinismo newtoniano, assumiu um papel de destaque em nome da ciência como um todo. Atribuo isso a vários fatores: sua precedência histórica, no bojo das revoluções que balizaram a modernidade; a posição chave e instrumental para outras ciências e para a tecnologia; o êxito de seu método matemático-experimental, generalizado como o método científico, embora poucas áreas das ciências usem plenamente a teorização matemática fora da física. Portanto, a abordagem tem por base a física, a partir do determinismo newtoniano, desde o seu nascimento, passando por seu apogeu, até sua ruptura. A ele é associada, em geral, a previsibilidade, isto é, a capacidade de fazer previsões sob certas condições restritas. Isto permite até certo ponto controlar a natureza, projetar máquinas e planejar indústrias. Por isto correspondeu à visão de mundo da Revolução Industrial, do capitalismo e, depois, do socialismo real que existiu no Leste Europeu ou onde ainda exista.
Adiciono ainda duas teses coadjuvantes, negativas, para desfazer confusões de designações sobre a física e o seu método. Primeiro, o determinismo newtoniano não se reduz ao mecanicismode que é em geral rotulado. Bem ao contrário, Newton não foi um mecanicista como Descartes. Segundo, há outra confusão de designações: o positivismo na filosofia da ciência é uma corrente que se opõe ao realismo. Entretanto, o rótulo de positivista é dado genericamente pelas humanidades ao método da física e das ciências naturais, em contraste com as ciências sociais. Galileu e Einstein, por exemplo, batalharam pelo realismo que é o contrário do positivismo na filosofia da física. O importante nesta distinção é que o positivismo em senso estrito é associado a posições politicamente conservadoras, enquanto Galileu e Einstein não só foram realistas, mas progressistas, no sentido de que se identificaram com correntes que lutaram por mudanças que apontavam para um mundo melhor para um maior número de pessoas. Acrescento Boltzmann sob certo aspecto.
A esta altura cabe um glossário de termos, para defini-los da maneira que vou usá-los. Faço-o de modo simplificado, fugindo do rigor da filosofia da ciência, a partir das oposições:
– entre materialismo (desde os atomistas pré-socráticos até os teóricos marxistas) e idealismo (Platão, Hegel);
– entre indutivismo (Aristóteles) ou empirismo (Bacon, Locke, Berkeley, Hume) e racionalismo (Descartes, Leibniz, Kant);
– entre realismo (Galileu, Einstein) e instrumentalismo (implícito no sistema Ptolomaico e no prefácio de Osianderpara Copérnico) ou positivismo (explícito no próprio positivismo do século XIX e no neopositivismo do século XX);
– entre determinismo (Newton, tradicionalmente associado à capacidade de fazer previsões) e probabilismo (qualitativo, na filosofia clássica, e matemático, nas mecânicas estatística e quântica contemporâneas);
– entre reducionismo (explícito em Descartes) e holismo (presente na física, de certo modo, desde a abordagem fenomenológica e sistêmica da termodinâmica clássica, anterior à mecânica estatística, até a teoria da complexidade atual, inspirada na biologia).
Ao contrário do que possa parecer, este glossário não esgota o assunto. O realismo, por exemplo, ganhou outros significados. Na matemática, realismo significa atribuir aos números e às abstrações matemáticas uma realidade em si e se confunde com o idealismo de Platão na filosofia da ciência. Recentemente, os construtivistas passaram a identificar como realismo científico a própria crença do cientista na existência dos objetos de estudo da ciência. Para uma corrente do construtivismo contemporâneo não só as ciências naturais mas também seu objeto, a natureza, são puras construções mentais e não possuem realidade. Neste aspecto o construtivismo atual se aproxima do idealismo de Berkeley no Séc. XVIII. Curiosamente o pai do neoliberalismo econômico, Hayek, chamava de construtivistas os que acreditavam que a sociedade podia ter algum controle político racional sobre a economia e o mercado. Na filosofia da matemática novamente há um outro uso da palavra construtivismo, designando uma corrente que se opõe aos intuicionistas na interpretação dos conceitos matemáticos. Por outro lado, o racionalismo de Kant, para alguns autores, como os marxistas,nada mais é que uma forma do idealismo. Há ainda muitos outros “ismos”: o empiriocriticismo de Mach e o energetismo de Ostwald, ambos dentro do positivismo; o convencionalismo de Poincaré e o pragmatismo de Peirce, ambos variantes do positivismo; o fisicalismo de Carnap e o operacionalismo de Bridgman como variantes do neopositivismo; o racionalismo crítico ou o falseacionismo, atribuídos a Popper, um dissidente do neopositivismo; o racionalismo dialético de Bachelard, fora da corrente principal da epistemologia de línguas inglesa e alemã; o anarquismo metodológico de Feyerabend. Vou parar por aqui mas há outros.
No fim do milênio, englobando neste rótulo desde o fim do século XIX ao limiar do século XXI, ocorreram rupturas de paradigmas em diversas áreas do conhecimento, a começar da física. O determinismo newtoniano foi rompido parcialmente pela mecânica estatística e totalmente pela mecânica quântica. A mecânica de Newton também foi rompida em outros aspectos com a teoria eletromagnética e com a teoria da relatividade, que mudaram a idéia rígida newtoniana de matéria. Houve outras rupturas neste período: na lógica matemática com Frege, Russell e Godel; na lingüística com Wittgenstein e Chomsky; na biologia com a teoria da evolução de Darwin, com o DNA de Crick e Watson e a biologia molecular. A previsibilidade da mecânica clássica e dos sistemas dinâmicos foi rompida com a teoria do caos determinista e, hoje, a teoria da complexidade dá uma alternativa ao papel do acaso na teoria da evolução. Finalmente, a insipiente teoria da mente questiona o dualismo cartesiano entre mente e matéria.
Concomitante com este acúmulo de rupturas de paradigmas no campo do conhecimento científico, há hoje uma crise da visão de mundo dominante na sociedade, refletindo o fracasso do capitalismo e do industrialismo, inclusive no socialismo real, em resolver problemas cruciais da humanidade. Estes se estendem desde a poluição do meio ambiente, nos níveis local e global, até a exclusão social da maior parte da população mundial, passando pela insegurança dos cidadãos, mesmo nos países ricos, frente à ameaça constante do desemprego e frente à violência. A isso se somam a perda da utopia socialista após o colapso soviético, no fim do século XX, e a insatisfação crescente com o neoliberalismo e a barbárie da competição sem freios. Os sinais desta insatisfação e os frutos da violência ficam cada vez mais claros no início do século XXI, marcado por episódios trágicos, como aviões cheios de passageiros arremessados impiedosamente contra o World Trade Center em Nova Iorque e o violento revide militar norte americano no Afeganistão e, depois, no Iraque.
Embora a visão de mundo hoje dominante esteja em crise, ainda não está claro no que ela está se transformando. Mesmo incorporando dissidências, ela continua ainda a ser funcional ao capitalismo enquanto ele domina. Mas sua mudança reflete contradições do sistema e forças sociais em disputa, buscando um avanço no sentido da transformação da sociedade. Não há uma única visão de mundo. Em uma época, podem conviver várias, mas uma delas é dominante ou hegemônica – sem diferenciar bem estas duas qualificações por enquanto – e tem a ver com a ideologia que reflete os interesses da classe dominante. Tampouco utilizo uma definição precisa de “visão de mundo”, usando este conceito em uma lógica nebulosa própria da linguagem comum. Assim, a visão de mundo do socialismo é oposta à do capitalismo em muitos aspectos essenciais, mas ambas podem estar de acordo quanto ao industrialismo moderno e ao papel da ciência. A visão de mundo dominante em cada época reflete na superestrutura da cultura as condições objetivas do mundo, com sua base material e econômica e sua ordenação política e social. Assim, ela depende em primeiro lugar das condições objetivas estruturais, econômicas e sociais. A ciência fornece paradigmas que se incorporam na visão de mundo e, ao mesmo tempo, refletem estas condições objetivas. Uma vez que um destes paradigmas torna–se hegemônico e serve à ideologia dominante é generalizado e passa a influir em diferentes áreas, tal como ocorreu com o determinismo newtoniano na modernidade, desde o Século XVII aos nossos dias. Torna-se um paradigma de uso geral, inclusive fora do campo da ciência em que surgiu.
Portanto, minha última tese é de que, em substituição ao determinismo newtoniano, está em gestação um novo paradigma geral na ciência. Poderá tornar–se hegemônico e ser incorporado em uma nova visão de mundo, dependendo de fatores econômicos, políticos e sociais, além do avanço da própria ciência. No campo da ciência está ocorrendo hoje uma aproximação entre a biologia e a física, o que já está influindo em outras áreas do conhecimento. Este processo começou pela ruptura do paradigma newtoniano no âmbito interno da física, em pleno apogeu da mecânica no século XIX, com a Revolução da Termodinâmica e do Eletromagnetismo. Entretanto a ruptura completou-se no âmbito da física apenas no século XX com a Revolução da Relatividade e da Mecânica Quântica. Mas o determinismo “preditivo”da mecânica newtoniana sobreviveu até agora como paradigma geral para outras áreas do conhecimento. Seu recuo efetivo na visão de mundo dominante só está ocorrendo contemporaneamente, abalando inclusive a teoria econômica que dá sustentação teórica ao capitalismo neoliberal. Contribui para isto sua limitação em lidar com algumas questões atuais em nível global, incluindo a degradação do meio ambiente natural, afetado pela poluição, e os desequilíbrios sociais, econômicos e políticos do capitalismo. Por outro lado, ocorre na ciência a ascensão da biologia, com a biotecnologia e a engenharia genética. Sua influência em outras áreas se evidencia nos modelos computacionais – de redes neurais, algoritmos genéticos, autômatos celulares, criticalidade auto-organizada. Este caminho levou à busca de uma teoria da complexidade inspirada na biologia.
Com a difusão dos computadores, a pesquisa em uma espécie de matemática experimental permitiu a simulação da evolução temporal de sistemas dinâmicos, mesmo quando não se tem uma solução analítica para as equações que descrevem seus comportamentos. Tal é o caso de sistemas governados por equações diferenciais não lineares que se revelam muito sensíveis às condições iniciais, o que ocorre na própria mecânica de Newton, em problemas não lineares, como percebera Poincaré, na virada do século XIX para o XX, no problema de três corpos em interação gravitacional entre si. Chama-se isto de caos determinista, pois, apesar de o sistema ter seu futuro teoricamente determinado por uma equação, seu futuro é imprevisível, pois mínimas variações iniciais levam a imensas diferenças após certo tempo. Um sistema pode transitar do regime bem comportado para o regime do caos. Na fronteira entre a ordem e o caos surge o que se convencionou chamar de complexidade, caracterizada pela possibilidade de emergência do novo, do inusitado. A complexidade é associada ao fenômeno da vida, inspirando assim um novo paradigma geral para a visão de mundo, influenciado pela biologia. Examinarei com espírito crítico a pretensão de eleger o caos e a complexidade como um novo paradigma geral substituto do determinismo de base newtoniana.
Há aqui um processo histórico que comporta uma interpretação dialética. Dou dois argumentos para esta interpretação. As novas teorias biológicas que disputam o lugar da física, como paradigma geral, receberam um importante impulso da biologia molecular fundamentada na física. Ademais, embora a biologia molecular tenha ganho importância nas últimas décadas do século XX com o DNA, a crescente influência da biologia tem um marco histórico, no século XIX, na teoria da evolução originada de Darwin. Mas, a atual teorização da complexidade coloca em questão o papel do acaso inerente à teoria da evolução darwiniana.
O Quadro 1 resume os paradigmas e revoluções da física e suas relações com a filosofia.
Quadro 1 – PARADIGMAS E REVOLUÇÕES DA FÍSICA E TEORIAS EPISTEMOLÓGICAS
ÉPOCA | PARADIGMAS E REVOLUÇÕES NAS CIÊNCIAS FÍSICAS | TEORIAS EPISTEMOLÓGICAS | CIÊNCIA E FILOSOFIA |
8000 AC |
Período Neolítico Pensamento mágico |
Fetichismo – Misticismo
|
Mitos
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Séc. IV AC | REVOLUÇÃO RACIONAL
Filosofia. Geometria. Astronomia Cosmo. Causalidade. Atomismo. Lógica dos silogismos |
Materialismo X Idealismo
Método Hipotético – dedutivo (Platão) Indutivismo (Aristóteles) |
A Ciência faz parte daFilosofia |
Idade Média | Escolástica / Física Aristotélica
Astronomia de Ptolomeu/Geocêntrca Comentadores de Aristóteles |
Tomismo
Nominalismo |
|
Séc. XVI
Séc. XVII
|
REVOLUÇÃO CIENTÍFICA
Astronomia de Copérnico/ Heliocêntrica
Revolução da Mecânica de Newton Determinismo Reducionismo Mecanicismo |
Realismo (Galileu)
Racionalismo X Empirismo
Racionalismo Crítico (Kant) |
A Ciência separa-se da Filosofia
|
Séc. XIX | 1ª REVOLUÇÃO PÓS-NEWTONIANA
Eletromagnetismo e Termodinâmica Campo e Onda Eletromagnética Entropia e Caos molecular Mecânica estatística |
Materialismo Dialético
Romantismo-Filosofia Natural Positivismo Convencionalismo Pragmatismo
|
A Filosofia imita a Ciência
A Filosofia critica a Ciência
|
Séc. XX
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2ª REVOLUÇÃO PÓS-NEWTONIANA
Relatividade e Mecânica Quântica Unificação Tempo e Espaço Massa e energia Incerteza
OUTRAS RUPTURAS DE PARADIGMAS: Lógica Matemática /Teorema de Godel Lingüística / Revolução Cognitiva Mecânica / Caos – imprevisibilidade Teoria da Evolução/ Complexidade Teoria da Mente/ Crítica ao dualismo Cartesiano |
Neopositivismo
Falseacionismo Filosofia Analítica
Racionalismo Dialético
Paradigmas e Revoluções Programas Heurísticos Anarquismo Metodológico
Pós-positivismo Neopragmatismo Construtivismo Social
|
As ciências físicas nas primeiras décadas do século XX mantiveram sua hegemonia e influência com a Revolução da Teoria da Relatividade e da Mecânica Quântica, rompendo definitivamente o domínio do paradigma newtoniano. A mecânica quântica confronta-se com o determinismo, ao admitir a incerteza no movimento de uma partícula – como um elétron no átomo – e não apenas, como fazia a mecânica estatística no século XIX, em um conjunto com uma multidão de moléculas em um gás. O impacto desta nova física na filosofia se refletiu na superação do velho positivismo antiatomista do século XIX pelo neopositivismo nas primeiras décadas do século XX. Deste se originou a filosofia analítica, dominando a epistemologia de línguas inglesa e alemã como filosofia especializada da ciência.
O neopositivismo foi encarnado pelo Círculo de Viena, ao qual pertenceu Wittgenstein, célebre pela filosofia da linguagem. Como precursor está Russell, filósofo, lógico e libertário defensor dos direitos humanos. Entre os críticos do neopositivismo destaca-se Popper – um dos pais do neoliberalismo e, ao mesmo tempo, fundador na epistemologia do falseacionsmo, doutrina cujo nome vem do seu critério de demarcação das teorias científicas. De acordo com esse critério, para ser científica uma teoria tem de se expor à refutação por confronto de suas previsões com os fatos reais. O falseacionismo, por sua vez, foi objeto da crítica de Kuhn, ao teorizar os paradigmas da ciência e as revoluções científicas como fatos sociais, envolvendo disputas de poder entre grupos de cientistas, sujeitos a injunções políticas e não só epistemológicas. Lakatos conciliou o que definiu como núcleos duros das teorias científicas, submetidos aos paradigmas, com cinturões protetores sujeitos à refutação pelos experimentos. Feyerabend radicalizou com seu anarquismo negando que haja um método nas ciências. São, entretanto, todos eles herdeiros do neopositivismo que criticam.
[1] Baseado em Pinguelli Rosa, Luiz; Tecnociências e Humanidades. Paz e Terra, 2005
[2] Editora Rocco, Rio, 1996
[3] Devo esta ideia ao antropólogo Gilberto Velho do Museu Nacionalda UFRJ, em uma conversa informal; Leonardo Boffi, por sua vez, publicou livro recente com o título “Ethos do Mundo”
[4] O método julgado mais adequado neste caso se aproxima do método hipotético dedutivo empregado por Platão e das conjecturas do falseacionismo de Popper
[5]Esta palavra vem do grego,episteme (conhecimento) + logos (teoria, doutrina), do mesmo modo que ontologia vem de onto (ente) + logos e significa o estudo do ente ou do que existe, como parte da metafísica – o estudo do ser, especialmente no que está além (meta)da física, entendida no sentido amplo dado por Aristóteles
[6]Internalismo e externalismo ganharam outro significado, relacionado ao naturalismo na denominada teoria da justificação. No internalismo as condições para a justificação devem estar transparentes e explícitas; no externalismo
é a relação entre a crença e os fatos que justifica a crença, ainda que dependa de fatores aos quais não se tenha acesso [Arantes e Bensuan, em Simon (2003)]
[7]Sobre questões da física refiro: Schenberg (1984), Leite Lopes (1987), Nussenzveig, Lobo Carneiro e Pinguelli Rosa (1988), Novello (1988) e Lobo Carneiro (1989); Bassalo, 1998; Videira e Salinas (2001)