Física e filosofia
Nesse sentido, o renomado físico Victor von Weisskopf sugeriu dividir as ciências da natureza segundo seu escopo: haveria as ciências cósmicas e as terrestres. As primeiras distinguir-se-iam das segundas pelo valor das grandezas representativas dos fenômenos sob exame – grandes massas, altas velocidades, vastas energias, largas distâncias, longas durações.
Disciplinas cósmicas seriam a astronomia e a astrofísica, a física de partículas elementares e, naturalmente a representante típica, a cosmologia. Essas ciências se ocupam dos fundamentos que sustentam o arcabouço do conhecimento científico da natureza.
Nas ciências terrestres, onde se encontram as práticas tecnológicas, que tratam das aplicações da teoria, esses aspectos filosóficos estão ocultos. Ou seja, é somente naqueles momentos onde o pensamento deixa de exercer seu poder criativo e entram em cena modos de aplicação automática de uma dada teoria que a ciência pode se declarar separada da filosofia.
Nas ciências cósmicas, a relevância da filosofia aparece sempre que uma transformação importante na descrição do mundo se processa. Foi assim que aconteceu, por exemplo, no interior da física ao final do século 19, cujas necessidades formais fez aflorar a questão causal examinada sistematicamente pelos filósofos. Tal questionamento tornou possível a revolução do pensamento científico que levou à teoria da relatividade. Isso só ocorreu devido ao aprofundamento das discussões sobre a causalidade que levaram à desconstrução da versão absoluta do mundo newtoniano.
É igualmente fácil reconhecer a importância das discussões filosóficas sobre o papel do observador em uma experiência. Essa análise permitiu o surgimento de uma interpretação do mundo microscópico produzido na mecânica quântica. Uma tal questão abriu caminho para novas interpretações do estranho mundo quântico quando os cientistas iniciaram a sistemática análise de um possível universo quantizado. Nesse momento, a interpretação tradicional dos procedimentos quânticos relacionados aos instrumentos de medida de um observador externo ao fenômeno adquire um sério obstáculo. Com efeito, o que seria um observador externo ao universo? Novas interpretações tiveram então de ser invocadas e o mergulho em questões de natureza filosófica foi inevitável.
De modo semelhante, as longas e constantes análises das origens de tudo que existe, dos diferentes modos de criação do universo e a dessacralização da natureza em diversos momentos da crítica filosófica desembocou na versão técnica da cosmologia moderna. É claro que cada uma dessas atividades guarda sua independência, associadas às idiossincrasias de seus agentes, físicos e filósofos. Mas no momento em que esses agentes se unem para explorar as múltiplas facetas do que existe é quando exibem a força do pensamento.
Exemplo memorável nesse sentido foi o encontro das ideias dos físicos Dirac e Lattes com as dos filósofos Marx e Hegel. Esse momento se deu através da análise sistemática da variação das leis físicas com o tempo cósmico, ou seja, dependência histórica das leis em um universo dinâmico. Vemos assim a importância do diálogo quando se trata de investigar os fundamentos do conhecimento científico. Em verdade, física e filosofia só se separam quando estão voltadas para si tratando do que consideram suas certezas absolutas.
Outro exemplo vamos encontrar nas modernas teorias da cosmologia, produzidas a partir de extrapolações da teoria da relatividade geral de Einstein que permite examinar temas que os filósofos têm tradicionalmente analisado, como a possibilidade de que tenha havido outros mundos. Lidar com essas possibilidades e extrair daí comentários relevantes sobre o mundo em que vivemos é uma dessas tarefas cujo intercâmbio física-filosofia permite esclarecer. Um desses princípios que tratam das origens do nosso mundo se fundamenta nas possíveis alterações que certas propriedades físicas poderiam ter e que gerariam um universo bastante distinto do que conhecemos.
Ao examinarmos essas outras possibilidades e entendermos as questões relacionadas à estabilidade e as condições mínimas que um universo deveria possuir para permitir o aparecimento da vida, nos leva certamente a conhecer melhor este nosso mundo.
Tentar responder essas questões no interior da física é importante, pois depende somente de uma razão técnica. No entanto, mais importante ainda é poder enunciá-las e desse modo abrir novos horizontes no modo de pensar e refletir sobre o que existe. Quando os pensamentos de Marx e de Dirac se encontram, essa atitude sistemática de autocrítica transparece manifestamente. É esse diálogo permanente que anima a esperança de compreendermos melhor o universo e servir de guia na caminhada da espécie humana nessa aventura cósmica que fomos lançados.