Fim e ressurgimento do éter
A ideia simplista de que toda ação sobre um corpo deve ser exercida por contato levou a dificuldades na proposta de Newton de considerar a força gravitacional como a ação de corpos massivos distantes. Para compatibilizar essas duas hipóteses, criou-se uma estrutura ficcional, o éter que seria um intermediário a permitir ações de corpos não contíguos. O éter aparece como uma necessidade em conciliar a ideia de que não existe ação entre corpos que não estejam em contato e a noção newtoniana da interação gravitacional de longo alcance, como a força do Sol sobre a Terra.
Ou seja, a proposta newtoniana de entender a força gravitacional como uma ação à distância foi assimilada graças à entrada em cena, no cenário da física, de um meio material que permearia todo o espaço: o éter.
As propriedades desse éter sempre foram, desde então, motivo de comentários críticos, exibindo dificuldades em conciliar efeitos mecânicos e eletromagnéticos. As propostas de Poincaré, Lorentz e outros, permitindo a formulação da teoria da relatividade especial, em 1905, por Einstein, foi saudada amplamente como o fim definitivo da hipótese de existência do éter.
No entanto, em uma conferência pronunciada na Universidade de Leiden na Holanda em 1920, Einstein argumentou, para grande surpresa de seus pares físicos, a afirmação de que …”the special theory of relativity does not compel us to deny ether,” e acrescenta (para uma futura explicação) que a maior justificativa para isso se torna clara com os resultados da teoria da relatividade geral, uma nova proposta de compreensão da gravitação, distinta da versão newtoniana.
E acrescenta, nessa linha de pensamento: “The special theory of relativity forbids us to assume the ether to consist of particles observable through time, but the hypothesis of ether in itself is not in conflict with the special theory of relativity. Only we must be on our guard against ascribing a state of motion to the ether. »
A teoria especial da relatividade nos proíbe de assumir que o éter consiste em partículas observáveis através do tempo, mas a hipótese do éter em si não está em conflito com a teoria especial da relatividade. Apenas devemos estar atentos para não atribuir um estado de movimento ao éter.
Por outro lado, argumenta ainda Einstein, a ideia de eter parece uma hipótese vazia, sem sentido, desnecessária para explicar os fenômenos. Com efeito, na teoria eletromagnética de Maxwell só aparecem as quantidades campo eletromagnético e a densidade das cargas. Assim, não há nenhuma função que esse eter poderia ter para nossa compreensão desses fenômenos.
Esse comentário parecia ser um outro modo de pôr fim à noção de eter.
No entanto, ato seguinte, Einstein sugere uma nova compreensão do problema, argumentando que, contrariamente ao que poderíamos pensar, baseados nas críticas acima, existe um argumento de peso em favor da hipótese do eter.
Diz ele que negar o eter é aceitar que o espaço vazio não tem nenhuma qualidade, o que cria imensos problemas de compreensão da mecânica e da caracterização do que chamamos, desde Newton, espaço (para ele, absoluto).
A partir de comentários de Ernst Mach, Einstein sugere uma nova interpretação para a noção de éter, diferindo radicalmente das antigas ideias do cenário de Newton, Fresnel e mesmo de Lorentz. Mach entende o eter como gerando condições para o comportamento da inércia dos corpos, e, simetricamente, sendo também condicionado por esses corpos.
Essa ideia de Mach ganha uma sólida construção formal com a formulação da teoria da relatividade geral. A ideia de que o espaço vazio poderia ser influenciado pela matéria em regiões distintas dá à noção de eter uma compreensão métrica. Essa forma de conceber o eter difere enormemente de sua noção primitiva, associada à teoria ondulatória da luz.
Ou seja, o eter da relatividade geral deve ser identificado com um meio desprovido de qualquer qualidade mecânica e cinemática, mas um importante auxiliar na determinação dos eventos mecânicos e eletromagnéticos. Ao transformar a ação à distância newtoniana a uma contigua influência sobre a geometria do espaço-tempo, a noção de éter que Einstein reaproveita, reformulando-a, torna-se clara: trata-se somente de um estado da geometria do mundo.
Com efeito, Einstein termina sua alocução de Leiden com as seguintes frases
Recapitulating, we may say that according to the general theory of relativity space is endowed with physical qualities ; in this sense, therefore, there exists an ether. According to the general theory of relativity space without ether is unthinkable, for in such space there not only would be no propagation of light, but also no possibility of existence for standards of space and time (measuring-rods and clocks), nor therefore any space-time intervals in the physical sense. But this ether may not be thought of as endowed with the quality characteristics of ponderable media, as consisting of parts which may be tracked trough time. The idea of motion may not be applied to it.
Recapitulando, podemos dizer que, de acordo com a teoria geral da relatividade, o espaço é dotado de qualidades físicas; neste sentido, portanto, existe um éter. De acordo com a teoria geral da relatividade, o espaço sem éter é impensável, pois em tal espaço não só não haveria propagação de luz, mas também nenhuma possibilidade de existência de padrões de espaço e tempo (réguas e relógios), nem, portanto, qualquer intervalo de espaço-tempo no sentido físico. Mas este éter não pode ser pensado como dotado das características de qualidade dos meios ponderáveis, como consistindo de partes que podem ser rastreadas através do tempo. A ideia de movimento não pode ser aplicada a ele.
Ou seja, depois de dar razão à destituição da importância da noção de éter na compreensão da propagação ondulatória dos efeitos eletromagnéticos, Einstein a reinterpreta como um importante estado físico associado à estrutura métrica do espaço-tempo. É a universalidade da interação gravitacional que permite identificá-la com a geometria.
Nos dias de hoje, os físicos não utilizam, em geral, esse termo “éter”. Na teoria da gravitação de Einstein, o termo geometria do espaço-tempo é usado, mesmo em uma configuração vazia de matéria.
A dificuldade aqui é de outro tipo e está associada ao fato de que na teoria da relatividade geral, a geometria é determinada pela distribuição de matéria e energia existente. No entanto, essa geometria, que possui uma dinâmica, não pode ser identificada nem como matéria, nem como energia. Ou seja, não é uma verdadeira substância. Dizer que se trata de uma realidade nova, dissimulada através do termo “geometria”, só faz aparecer uma denominação que não resolve essa indefinição.
Tentando contornar essa dificuldade, nos últimos tempos, os físicos procuraram modos distintos de caracterizar a geometria do espaço-tempo como um campo de forças, em analogia com o campo eletromagnético.
A forma de descrevê-lo como geometria, deveria ser assim entendida simplesmente como um modo matemático, elegante, de representar esse campo de força, através de uma estrutura típica da matéria: um campo tensorial, um campo escalar ou um campo spinorial.
Desse modo, o éter de Einstein faz aparecer uma nova forma de substância, semelhante a todas as formas conhecidas, que o termo “geometria” esconderia.
Isso se dá através da formulação – dita “de campo” – da relatividade geral, na qual a componente geométrica básica, a métrica, é decomposta em uma métrica característica da ausência da gravitação (métrica de Minkowski) e uma outra parte, caracterizando a gravitação como um campo se propagando naquela métrica (de Minkowski) de fundo.
Os detalhes dessa formulação de campo da relatividade geral é por demais técnica para ser desenvolvida aqui. As pessoas interessadas podem acompanhar as referências. Em particular as lições de Feynman, onde a ideia de interpretação da relatividade geral em termos de um campo aparece em livro pela primeira vez; mas mais importante ainda é o trabalho de Grishchuk et al onde modificações importantes da relatividade geral é apresentada. Recentemente, Novello e Toniato fizeram uma revisão critica dessas teorias de campo gravitacional, tanto aquelas que se limitam a reproduzir a relatividade geral (Feynman e Deser), bem como as alternativas (Grishchuk et al.).
Referências
R. P. Feynman, Feynman lectures on gravitation (Addison-Wesley, Reading, 1995).
S. Deser, “Self-interaction and gauge invariance,” General Relativity and Gravitation 1, 9–18 (1970).
L. P. Grishchuk, A. N. Petrov, and A. D. Popova, “Exact theory of the (Einstein) gravitational field in an arbitrary background space-time,” Communications in Mathematical Physics 94, 379 – 396 (1984).
M. Novello e Junior D. Toniato in An overview of field theories of gravity (2023) (em fase de redação).