Fernando Zarif, uma obra a contrapelo
por Angela de Almeida, Bia Lessa e Maria Borba
“Fernando é único no plural”
Lenora de Barros
A frase, da poeta e artista plástica Lenora de Barros, é talvez a mais sintética, poética e perfeita tradução da trajetória artística e humana de Fernando Zarif (São Paulo, 1960-2010). Criador compulsivo, dono de uma cultura e de um senso estético excepcionais, Zarif operava simultaneamente em vários níveis de criação, empregando linguagens e suportes os mais diversos. Embora detestasse o rótulo, encarnou, em sua acepção mais genuína e plena, o papel de artista multimedia. “Orgulhosamente autodidata”, desenhava, pintava, esculpia, escrevia, tocava tabla e violão, produzia peças gráficas, videoinstalações, performances, e, se não bastasse, “bailava como Fred Astaire”. Aluno de Décio Pignatari e Hans-Joachim Koellreutter, compôs canções pop, colaborou na criação de uma ópera eletrônica minimalista, e manteve no ar um programa de rádio especializado em música erudita contemporânea. Mas foi nas artes plásticas que deixou sua marca mais evidente e profunda.
Como todo grande criador, soube imprimir em sua obra um toque autoral inconfundível. Num traço sintético ou numa explosão de cores em borrão, num ready-made, numa assemblage ou numa instalação de transparências e reflexos, enfim, do F ao Z, impossível não reconhecer a força impetuosa de sua assinatura.
Surgido na mesma época da chamada geração 80 – a que se projetou no mercado das artes (inclusive internacional) e no (re)conhecimento da mídia e do público –, nunca manteve com ela a mais vaga relação de pertencimento. Descreveu seu percurso na contramão (ou “a contrapelo”) de tudo e de todos. Desinquieto e imbuído de uma urgência vital, ignorou solenemente todas as regras, etiquetas e protocolos requeridos para se tornar um, digamos, best seller das artes plásticas. Com uma atividade intensa, irrefreável e ininterrupta, esteve sempre muito ocupado para se importar com isso. Seu apartamento do mercado de arte pode ser medido, inclusive, pelo número de exposições realizadas em vida, que absolutamente não condiz com o caráter torrencial de sua produção. De 1982 a 2009, realizou apenas nove individuais, com um hiato de onze anos entre a penúltima – a maior de todas, realizada em 1998 na Maison Des Arts André Malraux, em Créteil, França – e a derradeira, performática e efêmera Cadernos, de 2009, no Espaço Tom Jobim, Rio de Janeiro.
Tudo isto posto, claro está que, com a mesma e vulcânica sofreguidão com que se lançava na criação artística, Fernando Zarif entregou-se à vida, que o deixou, por exaustão, em 24 de dezembro de 2010.
“O Universo não se sentia muito bem naquele dia”
Fernando Zarif
Dois anos depois da morte de Fernando Zarif, a família do artista dá início ao Projeto Fernando Zarif (http://projetofernandozarif.blogspot.com.br), abrangendo a catalogação, o restauro e a difusão de sua obra, e seu acolhimento em uma casa de dois andares no bairro de Pinheiros, São Paulo, que em breve deverá se transformar em um espaço aberto à visitação e à pesquisa pelo público. O primeiro resultado concreto deste empreendimento é o livro Fernando Zarif – Uma Obra a Contrapelo, reunindo trezentas das mais de 2 mil obras catalogadas e restauradas.
Angela de Almeida
Fernando Zarif, um artista sem intermediários
De cara, a casa repleta de trabalhos de todas as formas, tamanhos e naturezas (telas, objetos de todo o tipo, e matéria-prima), e em todos os lugares: hall do prédio, hall do elevador, chão, paredes, corredores, estantes, bancada do banheiro, mesa… Tínhamos que tomar cuidado ao caminhar para não pisar nem encostar em nada e isso era uma delícia.
Junto aos trabalhos, espalhados por todo o canto, milhões de CDs desencapados empilhados um sobre o outro, vinis aos montes encostados ao pé da estante gigante, livros – abertos, fechados, rasgados, sublinhados, sujos de cinza de cigarros. Era um caos, no sentido melhor da palavra, uma bagunça visceral de coisas. Tudo aquilo junto, daquele jeito – era ele.
A porta do apto sempre aberta. Costumávamos ir depois do teatro e ficávamos muitas vezes ate de manhã. Os livros eram lidos aos fragmentos em voz alta, os trabalhos revelados durante o vai e vem entre os cômodos do apto. As pessoas iam chegando aos poucos, grupos se instalavam nos diferentes espaços – e ele caminhava por tudo. Lia, cozinhava (como ninguém), mostrava as novidades da última viagem, e ríamos muito. Tudo isso junto, era o ambiente e o artista/pessoa que estou tentando descrever aqui. Tudo isso com muita alegria, humor, generosidade e um profundo contato com a alma humana, com o amor, com o coração.
Dito isso, a lembrança da necessidade de fazer um trabalho de história para escola sobre o Renascimento, Leonardo da Vinci etc. A anotar afoitamente tudo o que ele falava em um breve telefonema. Aquele já era o trabalho, cuspido, assim de supetão por ele que, para finalizar, sugeriu fazer da capa do trabalho uma imagem da Monalisa, com um pequeno papel manteiga colado na lateral, – que poderia ser movimentado como a página de um livro sobre a imagem -, onde o bigodinho, depois acrescentado pelo Duchamp, estaria desenhado a lápis. Era assim: Dali já tinha feito um trabalho, a Monalisa com e sem bigode ao mesmo tempo – Duchamp e da Vinci juntos, num breve telefonema.
Quando descíamos do elevador no seu andar, nos deparávamos na parede, com uma pilha de pequenas moedas que, uma sobre a outra, unidas por um fio de metal que passava pelo centro de cada uma, formava como que uma estreita escultura exatamente do seu tamanho, da sua altura exata – este era ele, ali, dependurado na parede de seu hall.
Anos mais tarde, essa mesma escultura se ‘transformou’, isto é, foi feita uma segunda, também com a exata medida de sua altura, só que com chaves ao invés de moedas, e essas chaves giradas, cada uma em uma direção, formavam uma imagem rasgada, esgarçada dele próprio, que antes era lisinho e redondo como as bordas de uma moeda.
Difícil conseguir transformar em algum tipo de palavra/discurso a qualidade de sua obra, difícil sair de uma mesma retórica, imprecisa, a de que era um artista para o qual a arte, o trabalho estavam de fato dentro dele. Tudo o que via, qualquer matéria-prima, podia ser transformada, sempre com uma sofisticação/erudição técnicas e de significados sem precedentes, além do humor presente sempre.
Uma taça quebrada, em breve se transformaria em algo, caixinhas de presentes da Tiffany’s, em breve virariam obra, fora todas as telas, pinturas, desenhos, esculturas, letras de música, etc. Se não havia tinta e pincel, poderia ser utilizado cola, pasta de dente, chaves, band-aid – o que tivesse a disposição. Se faltassem objetos, utilizava seu próprio corpo – pedaços de unha, cabelo, pelo e sangue.
A série dos mapas, que se transformam em pessoas – Europa caminhando no meio do mar com uma rosa nas mãos -, o mar que vira céu, ao se pintar todos os continentes de branco como nuvens. Era sempre este jogo de significação, sofisticação e simplicidade – no sentido de que aquilo era feito num átimo, no sentido da visceralidade de algo que se transforma diretamente de dentro em algo material, e por isso, pode tomar qualquer forma, pode ser feito sobre qualquer matéria-prima. Uma materialização constante de corpo e mente, ali trabalhando juntos constantemente, a todo o momento.
Um artista sem ideia. Imagem bastante imprecisa. Um artista que produzia diretamente da alma (entendendo-se alma como corpo, mente e o que mais for necessário), numa relação direta, sem intermediários. E o produto disso era a revelação de uma alma complexa, sofisticada e profundamente humana.
Tudo isto que se diz é uma besteira, porque, ao se ver, está tudo explicado, evidenciado. O trabalho está lá e possui força, presença, vitalidade inegáveis.
É triste que estejamos agora, após a sua morte, tentando revelar o trabalho de um gênio, mas também não é triste que ele não tenha podido fazer isto em vida, porque isso faz parte de quem ele é e de tudo isto que iremos ver a partir de agora.
Para nossa sorte, toda a sua obra está muito bem catalogada em um acervo construído por sua família ao longo desses três anos desde a sua morte, e parte dela poderá ser vista no livro, cuidadosamente organizado por José Resende, Fernando Zarif – uma obra a contrapelo.
Maria Borba e Bia Lessa
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*Angela de Almeida é acessora de emprensa e escritora. Maria Borba é física e artista. Bia Lessa é encenadora.