Escrita Infinita (Ensaio poético)
Estes escritos compõem uma constelação de textos aos quais tenho chamado de Cosmos. Tomo os termos constelação e cosmos a partir da liberdade da literatura, mas eles delineiam bem este projeto. São constelações porque não seguem uma linearidade de começo, meio e fim, mas sim as bifurcações das probabilidade e dos sistemas não-lineares. Podem ser constelados em nuvens, grupos, séries, associações, bricolagens. E podem ser lidos em quaisquer direções, a depender do leitor. Por isso, inspirado na matemática, também os separei em Conjuntos, não em partes, capítulos ou seções, que soam inevitavelmente lineares. E são cosmos porque o fio condutor de todos eles é a proposição de uma cosmologia, na acepção mais abrangente que se possa dar a esta palavra.
Há diversos conceitos permeando estas constelação. Muitos deles convergem para a teoria dos mesons, uma teoria geral dos meios que venho desenvolvendo há anos. Entretanto, não se trata de um livro. E, embora haja aqui alguns axiomas, tampouco estamos diante de uma unidade compacta, sistêmica e demonstrativa. Não existe aqui uma tese ou um encadeamento gradual de argumentos. Ademais, são todos escritos em forma de fragmentos. Alguns se assemelham a aforismos. Outros são mais reflexivos. Outros ainda se aproximam de miniensaios. Todos surgiram de uma proposta de escrita processual que estipulei para mim mesmo. Dessa escrita surgiu esta obra aberta, como resultado de necessidades internas à escrita e aos percursos sinuosos do pensamento. Por conta disso, defini o gênero desse tipo de escrita de um modo bem prosaico: cadernos.
Essa escrita dos cadernos segue algumas diretrizes e delimitações estritas de trabalho que impus a mim mesmo. Eles começaram sendo escritos à caneta, literalmente em cadernos de anotações. Muitos deles ainda não foram transcritos. Depois migraram para anotações feitas no telefone celular. Então a primeira imposição é esta: uma escrita mais concentrada possível, entendida como uma taquigrafia do pensamento. E que se restrinja aos limites das anotações feitas na tela de um celular. Outra autolimitação que me impus são as citações. Como o leitor vai perceber, estes textos dialogam talvez com centenas de autores, obras, conceitos. Entretanto, meu objetivo era exercitar uma escrita totalmente descolada de quaisquer instituições, formalidades e, sobretudo, autoridades. Embora haja paráfrases e digressões em torno de conceitos de ciências, saber e artes, não há nenhuma citação literal e nenhuma transcrição ipsis litteris de obras, trechos, notas ou nomes.
Essa exigência me conferiu a liberdade de transcrever clusters mentais sem me ater à precisão das referências. Em todos estes textos, meu objetivo sempre foi radicalizar a captação da imanência do pensamento. Deixar os conceitos e as ideias flutuarem. Fazer as imagens se assimilarem umas às outras. Descrever nuances cognitivas. Colocar em contraste percepções, movimentos, paisagens. Imprimir impressões. Destrinchar unidades. Perseguir ritmos. Dissolver e desenovelar conceitos. Escandir afetos. Pintar membranas objetivas e subjetivas. Por fim, um dos meus objetivos neste texto-processo é escrever, senão um texto todos os dias, pelo menos alguns textos por semana. Sendo assim, estes textos compõem um tipo singular de livro-vida. Como escreverei estes textos até o último dia da minha vida, estes conjuntos de textos são incompletos, pois hão de se completar apenas com minha morte. São infinitos, pois não têm começo nem fim. E em virtude de sua forma aberto e especular, esta escrita implica e mesmo pressupõe uma reescrita alheia. Por meio dela, eles podem vir a ser continuados, recombinados, apropriados e propagados indeterminadamente. São constelações de micromundos e de macroconceitos, de pluriversos e de mesocosmos, organizadas como fractais. São granulações infinitas da experiência e dos infinitos eus que nos permeiam e nos povoam, se agregam, estabilizam-se e depois se dissipam. Como a mente. Como o cosmos.
O conceito de inconsciente é vasto porque sua definição de consciência é pequena, para não dizer pobre. A grandeza de uma dimensão surge justamente pelo eclipse e a redução de outra dimensão, o que é um problema epistemológico. A filosofia padece do problema oposto: a consciência é amplificada e identificada ao logos, ou seja, aos discursos articulados como linguagem verbal. Oculta-se dessa maneira as formas e manifestações da consciência não-humana. Um novo conceito de consciência expandida tem surgido. Conectado ao animismo e ao pampsiquismo, essa nova concepção de consciência será o golpe mais duro que a psicanálise e a filosofia devem sofrer em breve. O oceano da consciência expandida recobre todo universo, desde os seres orgânicos aos inorgânicos, dos humanos aos não-humanos, os universos conhecidos e os pluriversos ainda desconhecidos. Isso quer dizer que o inconsciente, e mesmo o inconsciente coletivo, são mitologias românticas de profundidade sobre a atividade desse oceano da consciência que se expande em todas as direções e vetores. Ao passo que a noção de razão e de consciência da filosofia deve se revelar como uma mera ilha perdida no oceano do campo expandido da consciência. Uma ilha que se ilude ao legislar sobre o oceano que a ultrapassa. Como a alma não existe e Deus não existe, essa consciência não têm fundo nem superfície. Não tem centro nem periferia. Consiste em se expandir e se manifestar em esferas cada vez mais remotas. Imiscui-se e domina frações cada vez mais sutis do espaço-tempo. Por isso, o oceano da consciência engloba o horizonte dos seres existentes, atuais e virtuais.
Em geral, quando determinamos um conceito, uma categoria ou um operador, fazemo-lo de uma maneira que a conjunção dos dados da empiria se dissolva e se reduza a essa determinação. Disso decorre e depende toda coesão e toda coerência de qualquer sistema. Essa operação não se reduz à espera da atividade abstrata do pensamento e da filosofia; pode ser imanente a todo processo cognitivo; muitas ações mentais desempenhadas em nosso cotidiano trazem consigo signos desse processo; nossos percursos perceptivos, à medida que nunca se estabilizam e nunca se totalizam, funcionam dessa mesma maneira, ou seja, convocam unidades discretas e as chancelam, como se essas unidades pudessem neutralizar os elementos sutis e as delicadas informações que se dissipam no percurso que conduz de abstração a abstração. Por isso, chamo este continuum de processo abstrativo extensivo. Ele descreve esse horizonte de eventos que circundam toda nomeação e toda designação. Mas a abstração extensiva se concentra em mapear grandes extensões espaciotemporais e em obliterar algumas variações causais, empreendendo um movimento de homogeneização das dimensões celulares da experiência, dos seres e dos mundos. A abstração extensiva produz dessa maneira uma compreensão cada vez mais abrangente dos seres e do universo. Contudo o faz em um vetor inversamente proporcional à intensividade dos nexos, das composições e das constelações. O movimento inversamente proporcional ao movimento da abstração é o movimento infinitização intensiva. Como o vetor de todo direcionamento intensivo é a ação mesma do infinito sobre, através, ao redor, dentro, nos e por meio dos seres e dos mundos, a infinitização intensiva se projeta como uma metapossibilidade de concretude e de realização. Ora, nesse caso, a possibilidade é meta porque o processo de infinitização conta com um curioso paradoxo: ele se realiza à medida mesma que não se realiza. Isso significa que o intervalo aberto no tecido relacional dos seres e dos mundos não é uma cisão ou fratura que incide sobre a matéria ou uma substância, entendidas como uma singularidade do espaço-tempo ou como um buraco de minhoca. Esse intervalo é também infinitamente distribuído em todo tecido relacional que integra e desintegra o cosmos. Desse modo, não haveria um local de manifestação privilegiado no cosmos desse processo de infinitização. Afinal, essa distribuição privilegiada de infinito para algumas regiões e dimensões em detrimento de outras contrariaria o pressuposto da heterogeneidade, entendida como estado fundamental do cosmos, flutuando em um oceano de infinitização. Justamente porque a heterogênese é infinita, pode-se conceber um processo infinitamente heterogêneo, baseado em uma diferença pura. Justamente porque a diferenciação é pura, pode-se descrever a impureza dos meios que permeiam e constituem todos os pluriversos, pois a homogeneidade dos universos constelados e em devir se encontra sempre em relação a uma heteronomia e a uma heterogenia radicais, que nunca se fecham e nunca se completam totalmente. Essa abertura instituinte e instauradora não nos guia em direção a uma transcendência ou a um fora da natureza ou dos pluriversos. Remete-nos, sim, à constituição mesma da urdidura da trama e do tecido dos pluriversos, relacionados uns aos outros, conectados uns aos outros, e, mesmo assim, não submetidos a quaisquer regimes holistas capazes de unificar a todos eles sob o signo ou as leis de um ou mais deles. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que existe aqui um dado complementar. Assim como a infinitização conduz tudo que existe para um liame e para um vetor que unifica todos os pluriversos em sua heterogênese, esse mesmo movimento de heterogênese relaciona-se com e coloca em relação tudo que existe, mas não contém e nem circunscreve todos os existentes. Para circunscrever todos os existentes, neste sentido que eu lhe atribuo aqui, o infinito precisaria ser uma substância, um limite, um termo ou um ser, ou seja, precisaria se adequar a acepções que lhe escapam. À medida que o fator de realização e o fator de existência são paradoxais, e tendo em vista que o processo de infinitização é inversamente proporcional ao processo da abstração extensiva, podemos supor algumas conclusões.
A primeira é a seguinte: não haveria uma possibilidade de dualismo entre entidades materiais e imateriais, entre ato e potência, entre seres materiais e formais. Todas estas antinomias caem por terra. E caem pelo simples fato de imaginarmos que o vetor de realização não confere maior substancialidade a um determinado ser. Pelo contrário, quanto mais o ser adentra suas zonas de indiscernibilidade, mais se infinitiza. E quanto mais se infinitiza, mais tensiona o vetor de realização em direção às virtualidades do cosmos, regiões para as quais convergem os processos de abstração extensiva. A abstração extensiva não consiste em um mero ato de nomear extensões, qualidades, quantidades, dimensões e topologias espaciotemporais. Caso fosse assim, teríamos aqui um movimento de distensão de uma reta infinita. Ora, a reta infinita se torna transfinita quando compreendida não mais a partir de um enquadramento potencial, mas sim a partir de sua infinitude atual. Sendo uma reta infinita atual, essa reta não se propaga infinitamente em duas direções opostas; gera em cada um de seus pontos infinitas retas que a atravessam e que a ultrapassam, sendo elas mesmas infinitas em todas as direções, contingências e sentidos. Nesses termos, a abstração extensiva é uma dinâmica complementar à infinitização intensiva. Ambas coactam os dois grandes movimentos coeternos do cosmos, articulando-os por meio da atualização e da virtualização de planos de existência. Essa sobreposição de planos de existência e de mundos infinitos adquire consistência e realidade à medida mesma que esses mesmos planos e mundos se cruzam, conectam-se e se atravessam.
A conexão entre esses planos gera campos de realidade e de consistência. Esses campos, seja em sua aparente totalidade seja em suas parcialidades estruturais, não podem de modo nenhum ser entendidos como a unidade do universo, pois são apenas meios de acesso à pluralidade aberta e não-holista dos pluriversos, em sua multiplicidade de conexões e de composições possíveis, infinitas, inexauríveis e inacabadas. A cosmologia por enquanto é o estudo da unidade dos campos e dos planos, ou seja, da unidade parcial das intersecções. A teoria dos mesons deve revolucionar a cosmologia. E essa revolução consiste em pressupor que, para declinar o cosmos, precisamos conceber que as suas leis fundamentais e todos os elementos que o estruturam são apenas um campo, ou seja, um cruzamento de existências heterogêneas e em infinita heterogênese. Essa perspectiva pode vir a revolucionar o que por ora se entende e se define como universo. E deve abrir um novo horizonte inaudito para a cosmologia. Esta deixa de ser uma ciência de tudo que existe. E passa a compreender que cada existente e cada existência determina essencialmente a descrição final do todo dessa mesma existência.
O ser humano não pode ser considerado uma poeira interestelar porque ainda isso seria um eufemismo para com o universo e um narcisismo para com o humano. Talvez dentro de todos os regimes e medidas da microscopia, possamos estabelecer a variante de indeterminação exponencializada ao infinito para poder medi-lo. Por quê? Porque as dimensões humanas podem ser efetivas dentro de um escopo restrito. Mesmo com o conhecimento adquirido até agora, a medida do universo ainda é uma unidade potencial relativa às medidas humanas. E a mente se arrisca a palmilhar e a mapear seus recônditos como se eles fossem acessíveis ao nosso mundo. Entretanto, a cada novo giro da espiral dos seres se agregam novas constelações; a cada movimento de descontinuidade se interpõe um novo hiato, cheio de ressonâncias e abreviações; a cada novo ser dissipado e recomposto, em outro espaço-tempo de milhões de anos-luz daqui, meu corpo se reconforta e eu o ignoro. Assim como ignoro que essa decomposição sibilina de energia de uma galáxia distante ocorre exatamente aqui, agora, dentro das reentrâncias e dos recôncavos de minha anatomia, no momento em que me reclino para admirar o sol, curvo-me para pegar a caneta, acaricio meu gato e me curvo de novo na cadeira, tecendo estas palavras sobre a tela preta que se recorta contra chuvas de verão. Em todos estes gestos e em cada microgesto uma fenda se anuncia; não são camadas profundas de uma realidade misteriosa, cheia de sombras e de enigmas; não são sequer realidades alternativas que se bifurcam e se abisma em um horizonte de vertigens e de pontos abscônditos fora de nossos rastros de afeto e de nossos signos. Quando esse mundo-meio se abre e o adentramos, permanecemos aqui, agora, neste mesmo espaço-finito. Não são dobraduras para a eternidade e nem sublimes tempestades de qualia que povoam esta minha esfera-vida. São apenas e tão-somente as mesmas formas e as mesmas superfícies que se tocam, abrem-se para uma nova luz e se recompõem, desenhando-se na retina e nas águas escandidas nas vidraças, sem nenhuma mensagem, nenhuma cifra, nenhum mito. Ainda está por ser criada essa geometria, fugaz e furiosa. Essa geometria de sangue e silêncio, imanente à respiração, aos atos mais banais da mente, às nossas tristes palavras do dia a dia. Ainda estamos por compreender esta dimensão que, heterogênea, proteica e infinita, em nenhum instante transviada de minhas mãos, evanescente em minha pele, circula pelas veias e se expõe sozinha ao sol do meio-dia. O enigma do universo é o fato de o universo não possuir enigma nenhum. O fundo da vida pode ser compreendido na pluridimensionalidade de cada partícula, não na expansão geodésica de cada corpo e de cada ser em direção a um espaço e a um tempo que nunca fora concebido ou imaginado e que jamais o será. Estes tempos e espaços também estão aqui, pulsando em cada granulação da experiência, em cada microtom de cada microcor de cada infinidade de pontos dispersos pelo oceano da linguagem e dos ritmos. Quanto mais conseguirmos desvendar esse fundo sem fundo, essa partitura natural de aves e de estrelas, emersas das regiões sem nome dos astros, mais poderemos abandonar de vez a necessidade de situar o conhecimento sempre para fora de nosso mundo tão pequeno e passageiro. O nosso mundo, às avessas, pode se revelar como se fosse feito de outra substância, uma natureza pulsante e desmedida, tocada desde o começo dos tempos por um gesto imemorial que o esculpiu e o informou, em um misto de amor, acaso e indiferença. Quanto mais tocamos a cadeia dos seres e adentramos sua esfera concêntrica de rastros e de nexos, de ninhos e de ranhuras, de vinculações e de promessas, mais adentramos o segredo latente, adormecido em cada singularidade. Essa é a passagem estreita, entretanto efetiva e miraculosa, entre o singular e o universal, buscada por tantos ascetas, por tantos guias, por tantos pensadores, por tanta ciência e por tantas filosofias. Essa passagem não é destinada apenas a um humano ou a um ser. Ela é reservada a uma singularidade e a um estado da mente perceptiva. A cada novo estado, novos acessos surgem, para que surjam novas, milhares, uma pletora de linhas e de rizomas. Derivam tentaculares, fozes, rios, veias, fluxos livres e capilaridades iridescentes, todas emaranhadas em tecido desdobrado, linho a linho, em direção ao sol e aos quasares e às redes de seres e imagens que nos povoam desde a origem do universo até o fim deste dia de eclipse, em um dezembro de lilases e de um fino azul oriental. Tudo isso é aqui, agora, para sempre e desde o futuro, eterno e imemorial, escrito nas fuligens opacas das estrelas e deste corpo-pergaminho. Tudo isso é o enigma do universo, indiferente e vivo. O enigma do universo é o claro e alvo enigma de um cristal: um meio-dia a pino.
Os eventuais problema das articulações ente relacionalidade e infinito podem decorrer de uma compreensão parcial de ambos os termos em questão. A relacionalidade não pressupõe correlacionismo. Diferente das filosofias antinômicos e das determinações baseadas em estruturas gradualista de equivocidade, que definem quase foda filosofia ocidental, a relacionalidade é a forma por excelência de um pensamento que aborda o pluralismo para além das necessidades de unidade. Em outras palavras, as relações unidade-pluralidade ou totalidade-multiplicidade não são relações antinômicas, pois do ponto de vista da teoria que desenvolvo aqui as condições emergentes da unidade e da totalidades estão inscritas no pluralismo e na multiplicidade, não havendo uma simetria ou uma bipolarização entre ambos. A unidade nada mais é do que uma heterogênese que se estabilizou. A totalidade nada mais é do que uma unidade traduzida em termos dedutivos e transcendentais. Nestas sendas que desenho para o leitor, não faz sentido equivaler pluralismo-multiplicidade e unidade-totalidade. Isso ocorre porque as condições de possiblidade dos mesons pressupõem a forma relacional como instância emergente de todos os sistemas, composições, derivadas, coordenadas, leis e ordens, independente das dimensões espaciotemporais de cada pluriverso ou de cada intersecção, conjunto ou continente de pluriversos. Por meio dessa premissa, as estruturas duais se dissolvem. Por mais que queiramos definir o devir pluralista como codependente da determinação formal de um conceito de unidade, essa codependência efetivar-se-ia apenas se concebêssemos uma formulação final, um limite do cosmos ou um termo dos emaranhados de sistemas e universos. Como esse limite, esse fim e esse termo são sempre apenas designações parciais dentro da estrutura fundamental pluralista, não se pode produzir uma equivalência entre esses postulados.
E esse é um dos axiomas do sistema: toda unidade imanente dos seres depende de uma dedução transcendental, seja ela substancialista, eidética ou fenomênica. Essas deduções trazem em si um problema cuja solução final depende das antinomias. E, da mesma forma, as estruturas antinômicas retroalimentam a necessidade de supor que a verdade seja uma contrafigura da empiria. Ora, essa razão é profundamente falaciosa. Os diapositivos formais de transcendência da empiria podem funcionar como modelos explicativos de noções que de fato prescindem da experiência para se efetivarem. Essas noções existem e são em uma quantidade bastante consistente, o que ajuda àqueles que pretendem conduzir a empiria a um esgotamento. Entretanto, o dilema nuclear desses axiomas não diz respeito à existência ou à inexistência de condições de conhecimento e de verdade que não se fundem sobre a empiria. O problema central desses enunciados é seguinte: o fato de haver verdades não deduzidas da empiria não demonstra a necessidade de fundar todo conhecimento em uma dimensão transcendental ou metaempírica.
Se imaginarmos que o horizonte da experiência é coextenso aos pluriversos; se concebermos esse horizonte da experiência como coeterno a esses mesmos pluriversos que se desdobram nos ciclos e nos éons de cada universo; se postularmos que as condições transcendentais de determinação das unidades parciais são as bases e os alicerces para a construção de uma totalidade global de todos os pluriversos e de todas as dimensões transfinitas; se reconhecermos que, para haver uma determinação de uma unidade transcendental a todos os regimes parciais de cada entidade perceptiva, é preciso neutralizar as condições efetivas e a facticidade de cada esfera e de cada universo, pois apenas assim podemos edificar uma totalidade extensa a todos os mundos e universos em questão – apenas mediante a afirmação universal e a comprobabilidade suficiente de todos estas condições conseguiríamos provar que a unidade-totalidade pode ser sustentada como fundamento racional de tudo que existe. Contudo, como deve ter ficado claro nas entrelinhas desta argumentação, não há nenhuma possibilidade de que exista, em nenhum universo e em nenhum mundo, alguma condição capaz de ser convertida em lei global do cosmos, dos mundos e dos pluriversos como um todo. A negativação da experiência, entendida como demanda interna à razão, não passa de um mecanismo ilusionista. Parte do pressuposto de que todas as camadas da experiência, inclusive aquelas residuais, possam ser eliminadas pelas estruturas antinômicas e pelas supressão da contingência. E aqui reside o paradoxo e o principal problema. Para negativarmos a função da experiência no processo interno de autoconstituição da razão, seria preciso negativar a totalidade da própria experiência e não apenas algumas de suas condições. Como a negação da totalidade da experiência depende da constituição de um conceito de unidade que não pode prescindir da experiência, essa negação se funda sobre uma tautologia. E, mais do que isso, mesmo se a experiência seja parcialmente negativada, o fato de não poder ser negativada por completo produz esferas residuais da empiria que não podem ser absorvidas pela dedução transcendental. Nesse sentido, mesmo se o horizonte global da razão explicasse todos os fenômenos e todos os pluriversos como uma expansão fenomênica contingente e não-totalizável, ainda assim essa matriz conceitual estaria comprometida em seu âmago, pois não teríamos como determinar que as condições transcendidas dependem das condições residuais não-transcendidas para fundar a razão em suas dimensões puras e práticas, para o entendimento e para a sensibilidade. Diante desse elemento opaco, dessa região do cosmos avessa à unificação dos conceitos e do ser, a melhor explicação seria imaginarmos que essa região pode não ser a exceção, mas sim o centro de emissão de sentido de um dado sistema ou conjunto de sistemas. Esse postulado altera as relações de determinação entre necessidade e contingência, assentando nesta e não naquela o fundamento final de todos as bifurcações da natureza, de todos os seres e de todas as leis do cosmos. Nesse sentido, diante da impossibilidade de constituição de leis globais para o cosmos, o mais racional seria sempre termos em mente que todas as leis são extrapolações. E que toda unidade é uma homogeneização de um processo de heterogênese infinita, não uma substância ou uma arquitetura transcendental. Desse ponto de vista, todo sujeito transcendental e todo transcendentalismo das formas passam a ser compreendidos como unidades parciais relativas, subordinadas aos Princípio da Relatividade Global (PRG), tal como eu o concebo. Este princípio orienta as configurações de unidades em diferentes mesocosmos, mas compreende cada uma destas unidades não mais a partir dos modelos de uma unidade transcendente ou de um devir imanente. Compreende, sim, todos os meios, universos e mundos a partir de uma excentricidade radical que nunca foi e que nunca será transcendida ou unificada. Essa excentricidade é o modo mesmo de existência do cosmos mediante os transfinitos e os processos de infinitização. O oceano que circunda essa excentricidade é o oceano não transcendido e não transcendível da experiência. Um oceano que não se situa nem fora do cosmos e que tampouco se esgota em um plano de imanência, entendido como sinônimo de um cosmos em devir.
Quanto mais a percepção se expande em novas formas e se dilata em esferas concêntricas cada vez mais amplas, mais se sutiliza cada poro e cada ponto e cada ato perceptivo. Por sua vez, quanto mais a percepção de adensa e se intensifica em um ponto, em um poro e em um ato, mais se verticaliza a possibilidade de captação de seres e camadas ainda não percebidas. Surge aqui um problema: tanto a expansão quanto a retração da esfera perceptiva dizem respeito à captação de campos de percepta, ou seja, agregados que compõem esses diversos horizontes, seja em sua dimensão extensiva ou intensiva. Todos os campos que extrapolam os movimentos extensivos ou intensivos da percepção participam privativamente da percepção. Eu não perceber as estrelas mortas, os fundos do oceano, as franjas do universo ou os abismos subterrâneos da Terra não que dizer que eu não me relacione de alguma maneira com estas entidades. O universo é uma combustão infinita de eletromagnetismo, gravidade, forças nucelares fortes e fracas, diversas dimensões, topologias e linhas de força que me cercam, me atravessam e me compõem. Como poderiam estar fora do meu campo perceptivo? Essa crença deu ensejo a uma das concepções mais limitadas de percepção. Ela se baseia em uma adequação da percepção aos limites dos sentires e dos sentidos. E define o horizonte perceptivo como aquilo que é percebido de modo consciente. Ora, temos aqui um duplo reducionismo da percepção. O primeiro reduz a percepção aos sentidos. O segundo reduz a percepção aos atos conscientes e à intencionalidade. A percepção não depende dos sentidos. Os sentidos são apenas a face exterior e mais setorizada da percepção. Há fluxos, linhas, corpos e estruturas que são percebidas sem que se recorra à empiria ou às categorias da sensibilidade. A percepção mesma de formas abstratas ou a percepção de esquemas não se esgotam necessariamente aos recursos dos sentidos. Há também o problema dos corpos e das intensidades. Há muitos corpos e intensidades e forças e fluxos que podem estar latentes em nossa percepção, sem uma definição sensitiva ou sensorial que os especifique e os singularize. Nesse sentido, somos circundados e atravessados por um vasto campo, um oceano virtualmente infinito, de unidades não-discretas de percepta. Se esses percepta não se emolduram ao aparelho sensorial e motor definido pela fatalidade de nossa biologia, não que dizer que não tenhamos uma cognição-percepção desses corpos e dessas unidades. Por outro lado, o problema da redução da percepção à consciência é ainda mais grave. À medida que postulamos a consciência como conjuntos de atos intencionais que circunscreve uma esfera de facticidade, todos os atos são atualidades. Mais do que isso: são atualidades vazias do ponto de vista das virtualidades perceptivas, pois a intuição de entidades ausentes pode sugerir a existência destas formas, latentes na percepção. Como essas formas não se atualizaram nas relações noema-noesis-noemata, elas ainda não existem como formas efetivamente percebidas. Trata-se, nesse caso, de uma visão reduzida de consciência, adstrita ao campo fenomênico da facticidade. Entretanto, precisamos tomar cuidado com esses afunilamentos do campo e da compreensão global da percepção. O melhor conexão nesse caso entre percepção e consciência seria não partir da estrutura e do eîdos de uma consciência fenomênica e presencial. Uma articulação produtiva seria conceber a consciência como as esferas concêntricas de atualizações-virtualizações, esferas concêntricas e potencialmente infinitas em seus desdobramentos, multiplicidades, coimplicações e heterogeneidades que se estendem e se propagam pelo cosmos, em todas as duas topologias transdimensionais. A consciência seria um continente transcodificador, atravessando os pluriversos e participando de todas as suas morfologias sem contudo concorrer para uma unificação transcendental. Nesse caso, a consciência seria o regime perceptivo distribuído ao longo de todas as topologias e de todas as dimensões dos pluriversos, tanto em suas esferas micro quanto macro. A ubiquidade da consciência nos pluriversos se manifestaria na infinita gradação e distribuição de regimes e mundos perceptivos ao longo de todos os universos. Nesse sentido, nem mesmo faria sentido utilizar o termo consciência. Podemos utilizar apenas preensão: a capacidade de seres dispersos pelos pluriversos captarem percepta, independente de suas constituições, de seus diversos regimes de sentido, de significação e de legalidade. Essas seriam maneiras de mitigar a insuficiência das correlações entre percepção, sentidos e consciência. Por causa desse campo estendido, dessa coimplicação e dessa coevolução percepção-cosmos, a arte desempenha um papel decisivo para a constituição do campo da cosmologia. E a cosmologia é um dos eixos tratores mais potentes para expandir os limites de criação e de definição da arte. As relações entre arte e cosmologia definem as condições de possibilidade de nomear a percepção e a existência de entidades, seres, mundos, meios e cosmos. E esse é um campo emergente e um horizonte de abertura para o pensamento. Em virtude de tudo que expus, o leitor deve imaginar o desafio e a enormidade dessa tarefa de equacionar de modo equipolente essas duas grandes categorias: percepção e cosmologia. Essa odisseia começa pela impossibilidade de mensurar a dimensão perceptiva em termos globais ou locais. Não há globalidade perceptiva à medida mesma que não há possibilidade de subsumir a heterogênese inerente aos processos perceptivos a unidades globais, sejam elas categorias abstratas ou morfologias globais propriamente perceptivas. Toda extensão dos percepta apenas se articula e se unifica por meio dos vetores intensivos da percepção. Em outras palavras, os processos abstrativos, ainda que produzam unidades e morfologias perceptivas globais, apenas adquirem consistência quando vetorizados em algum campo perceptivo singular. Como não existe percepção de generalidades e como não existe cosmologia sem percepção, uma cosmologia consistente exige que entendamos o cosmos como uma unidade formal vetorizada e afunilada em campos perceptivos que lhes sejam imanentes. Em outros termos: uma cosmologia paraconsistente. Isso implica a possibilidade de demonstração ou de axiomatização daquela antiga intuição humana: o cosmos se expande e se infinitiza para dentro de cada um dos seus poros e pontos. A infinitização potencial, em direção à uma exterioridade homogênea, era o sonho de controle de mentes que sempre tentaram domesticar o cosmos, tornando-o um espelho embaçado de nossa triste finitude. Por outro lado, se os pluriversos nada mais são do que um oceano transdimensional e flutuante de percepta, todo processo abstrativo que produz mundos, meios, galáxias, composições, universos e continentes não tem absolutamente nada de abstrato. Todo conjunto de entidades, mundos e universos constelados nos pluriversos são percepta: seres percipientes que se afetam e se participam, em um jogo infinito de potências e de capturas, de formalizações e dissoluções. Essa vastidão de seres, mundos, entidades e universos são percipientes na mesma proporção em que são percebidos. Em nada disso existe nenhum signo, sombra ou sinal de um deus ou de um meta-ser capaz de unificar todos esses processos perceptivos infinitos e não-discretos por meio de sua mente e de seu campo perceptivo. Nesse sentido, Deus seriam apenas mais uma das entidades atuais-virtuais, dispersa e em constante heterogênese, multiplicado e fracionado ao infinito, nesses pluriversos de percepta e de preensibilidade, sem começo nem fim.