Escrita Infinita
Estes escritos compõem uma constelação de textos aos quais tenho chamado de Cosmos. Tomo os termos constelação e cosmos a partir da liberdade da literatura, mas eles delineiam bem este projeto. São constelações porque não seguem uma linearidade de começo, meio e fim, mas sim as bifurcações das probabilidade e dos sistemas não-lineares. Podem ser constelados em nuvens, grupos, séries, associações, bricolagens. E podem ser lidos em quaisquer direções, a depender do leitor. Por isso, inspirado na matemática, também os separei em Conjuntos, não em partes, capítulos ou seções, que soam inevitavelmente lineares. E são cosmos porque o fio condutor de todos eles é a proposição de uma cosmologia, na acepção mais abrangente que se possa dar a esta palavra. Há diversos conceitos permeando estas constelações. Muitos deles convergem para a teoria dos mesons, uma teoria geral dos meios que venho desenvolvendo há anos. Entretanto, não se trata de um livro. E, embora haja aqui alguns axiomas, tampouco estamos diante de uma unidade compacta, sistêmica e demonstrativa. Não existe aqui uma tese ou um encadeamento gradual de argumentos. Ademais, são todos escritos em forma de fragmentos. Alguns se assemelham a aforismos. Outros são mais reflexivos. Outros ainda se aproximam de miniensaios. Todos surgiram de uma proposta de escrita processual que estipulei para mim mesmo. Dessa escrita surgiu esta obra aberta, como resultado de necessidades internas à escrita e aos percursos sinuosos do pensamento. Por conta disso, defini o gênero desse tipo de escrita de um modo bem prosaico: cadernos. Essa escrita dos cadernos segue algumas diretrizes e delimitações estritas de trabalho que impus a mim mesmo. Eles começaram sendo escritos à caneta, literalmente em cadernos de anotações. Muitos deles ainda não foram transcritos. Depois migraram para anotações feitas no telefone celular. Então a primeira imposição é esta: uma escrita mais concentrada possível, entendida como uma taquigrafia do pensamento. E que se restrinja aos limites das anotações feitas na tela de um celular. Outra autolimitação que me impus são as citações. Como o leitor vai perceber, estes textos dialogam talvez com centenas de autores, obras, conceitos. Entretanto, meu objetivo era exercitar uma escrita totalmente descolada de quaisquer instituições, formalidades e, sobretudo, autoridades. Embora haja paráfrases e digressões em torno de conceitos de ciências, saber e artes, não há nenhuma citação literal e nenhuma transcrição ipsis litteris de obras, trechos, notas ou nomes. Essa exigência me conferiu a liberdade de transcrever clusters mentais sem me ater à precisão das referências. Em todos estes textos, meu objetivo sempre foi radicalizar a captação da imanência do pensamento. Deixar os conceitos e as ideias flutuarem. Fazer as imagens se assimilarem umas às outras. Descrever nuances cognitivas. Colocar em contraste percepções, movimentos, paisagens. Imprimir impressões. Destrinchar unidades. Perseguir ritmos. Dissolver e desenovelar conceitos. Escandir afetos. Pintar membranas objetivas e subjetivas. Por fim, um dos meus objetivos neste texto-processo é escrever, senão um texto todos os dias, pelo menos alguns textos por semana. Sendo assim, estes textos compõem um tipo singular de livro-vida. Como escreverei estes textos até o último dia da minha vida, estes conjuntos de textos são incompletos, pois hão de se completar apenas com minha morte. São infinitos, pois não têm começo nem fim. E em virtude de sua forma aberto e especular, esta escrita implica e mesmo pressupõe uma reescrita alheia. Por meio dela, eles podem vir a ser continuados, recombinados, apropriados e propagados indeterminadamente. São constelações de micromundos e de macroconceitos, de pluriversos e de mesocosmos, organizadas como fractais. São granulações infinitas da experiência e dos infinitos eus que nos permeiam e nos povoam, se agregam, estabilizam-se e depois se dissipam. Como a mente. Como o cosmos.
Os signos desempenham um papel central em todas as ciências e em todos os processos cognitivos, entendidos estes processos como parte do cosmos. As concepções disjuntivas de signos e referentes, de semiose e de significação, obstruíram uma compreensão mais decisiva da semiosfera para a descrição de uma cosmologia. Em um sentido mais amplo, pode-se dizer que os signos são os meios pelos quais as agências dispersas do universo encontram sua teleologia particular. Isso quer dizer que todas as agências, sejam elas infinitamente micro ou infinitamente macro, relativas tanto à incomensurabilidade dos pluriversos em suas dimensões extensivas quanto em suas dimensões intensivas, consistem em meios pelos quais o processo do universo se efetiva. A efetividade não é um dado ou uma concrescência mental ou material. É uma unidade dinâmica dessas duas instâncias e um operador que coacta todas as dualidades e todas as multiplicidades mediante vetores de singularidades. Os vetores não pressupõem teleologia. Consistem em flechas de espaço-tempo que promovem a efetividade dos seres para além de suas qualidades primárias ou secundárias e para além da constituição substancial de cada ser ou dos diversos conjuntos de seres. Nesse sentido, os signos são processos, agências e vetores. Como processos, encontram sua significação apenas no devir e na contingência que anima cada processo particular, sem possibilidade de remissão a causas abstratas ou a princípios gerais. Como agências, os signos performam o mundo e o meio que eles mesmos, enquanto signos, efetivam. Não se pode portanto conceber signos com valências preestabelecidas, fora da facticidade instituinte que cada processo de signos desencadeia por meio das condições relacionais e situadas em que se encontrem. E, por fim, como vetores, a constelação dos signos possui suas linhas de fuga e suas aberturas em direção a outras composições de signos e a outros processos que não se restringem a apenas uma dimensão dos pluriversos. Por isso, um tecido de signos encontra sua permeabilidade e sua hermenêutica sempre nos interstícios entre universos paralelos, ou seja, na esfera dos metacosmos e dos mesocosmos. Tendo em vista estes postulados, a disseminação dos signos é infinita em seu processo, em sua determinação e em sua essência. Uma taxonomia dos signos e a aspiração primeira de uma nova ciência dos signos deve ser definida como signação. A semiologia derivada dessas paisagens pretende compreender a semiose infinita. A triangulação dos signos nesse devir precisa ser reposicionada. A despeito da primeiridade, da secundidade e da terceiridade, bem como se seus respectivos estabelecimentos de mônadas, díades e tríades, a multiplicidade subjacente a todo esse processo não determina mais um campo de potências, de emergências e de evoluções que se circunscreva ao movimento ternário. Como então ocorre esse devir? Qual logos orienta esse processo? Podemos dizer que dentro de cada mônada, de cada díade e de cada tríade, temos mesons-signos que multiplicam a unidade interna de cada um desses operadores. Em outras palavras, não são o um, o dois e o três que são as instâncias gerados e o metamundo que articula e dota de coerência os infinitos mundos. O devir decorre mais da assimetria existente entre diversas composições de pluralidades umas em relação às outras. A relação primordial nesse caso não é o espalhamento infinito triangular. A relação primordial se baseia nas linhas transfinitas que ordenam os diferentes signos em diferentes universos. A semiose e a infinitização são termos correlatos para observações complementares. As linhas derivadas, tangentes ou paralelas, que facultam a possibilidade de universos transfinitos são as mesmas que se propagam e se contraem, tendo em vista a configuração parcial de cada universo singular. Essa singularização decorrente da semiose infinita não pertence nem ao monismo-monadologia, nem à diadologia e nem à dialética, embora todas as filosofias demarcadas a partir destes três continentes sejam configurações das relações primordiais mesons-signos. Esse horizonte de compreensão também não se restringe às antinomias finito-infinito, pois a distinção entre estes dois termos é apenas funcional e não essencial. Resumindo, a triangulação infinita espelha uma geometria e uma topologia das mais interessantes e potentes, haurida em uma compreensão profunda das dinâmicas da vida, da mente e do universo. Contudo, a monadologia, a diadologia e a dialetologia estão para a mesologia como um triângulo está para a totalidade da geometria. Nesses três campos percebemos virtualidades e virtudes quase infinitas. E o problema aqui talvez esteja na palavra quase. A infinitização que esta nova semiologia defende em nenhum momento se atém às aporias da unidade-multiplicidade, parte-todo, autonomia-heteronomia, dentre outras antinomias. Não se atém à simplicidade das substâncias. E tampouco reivindica o reino e a legislação imperial de uma dinâmica triangular na natureza, na mente, no universo e na vida. O fator relacional-relativo inscrito nas relatividades estrita e geral imanentes à teoria dos mesons engloba a efetividade de todos os princípios, por mais antitéticos ou distintos que sejam. Isso significa que a complexa taxonomia emergente dessa semiose triangular pode ser entendida como um mapeamento restrito e global de um universo e de uma natureza. A unidade passa à dualidade, ambas dão ensejo à ternaridade e esta retorna às duas primeiras. Esse processo pressupõe uma unidade de fundo, nos termos disjungidos no processo. De maneira diferente, os seguimentos atravessam os universos e compõem transmundos e n-dimensões. Estes seguimentos não referenciam um universo consistente como horizonte global de toda semiose. Nesses termos, o processo global da semiose não pode e não deve postular uma unidade ou apenas um metacosmos, concebido como alteridade absoluta do cosmos, agindo como um instrumento de coesão. Deve-se, sim, imaginar que esse processo triangular se refere a um universo onde a categoria do triângulo se efetivou. E devemos supor outros universos paraconsistentes para os quais essa dinâmica possa implicar outra topologia e, consequentemente, outros estratos de mundos e de realidades e existências, atuais e virtuais.
O conceito de inconsciente é vasto porque sua definição de consciência é pequena, para não dizer pobre. A grandeza de uma dimensão surge justamente pelo eclipse e a redução de outra dimensão, o que é um problema epistemológico dos mais agudos e em geral menosprezados. A filosofia padece do problema oposto: a consciência é amplificada e identificada ao logos, ou seja, aos discursos articulados como linguagem verbal. Oculta-se dessa maneira as formas e manifestações da consciência não-humana. Um novo conceito de consciência expandida tem surgido. Conectado ao animismo, ao pampsiquismo e ao oceano de emaranhamento quântico, essa nova concepção de consciência será o golpe mais duro que a psicanálise e a filosofia devem sofrer em breve. O oceano da consciência expandida recobre todo universo, desde os seres orgânicos aos inorgânicos, dos humanos aos não-humanos, os universos conhecidos e os pluriversos ainda desconhecidos. Isso quer dizer que o inconsciente, e mesmo o inconsciente coletivo, são mitologias românticas de profundidade sobre a atividade desse oceano da consciência que se expande em todas as direções e vetores. Ao passo que a noção de razão e de consciência da filosofia deve se revelar como uma mera ilha perdida no oceano do campo expandido da consciência. Uma ilha que se ilude ao legislar sobre o oceano que a ultrapassa, tendo a alma e Deus como meras miragens de estabilidade e de descanso. Essa consciência não têm fundo nem superfície. Não tem centro nem periferia. Consiste em se expandir e em se manifestar em esferas cada vez mais remotas. Imiscui-se e domina frações cada vez mais sutis do espaço-tempo. Por isso, o oceano da consciência engloba o horizonte dos seres existentes, atuais e virtuais.
Quando determinamos um conceito, uma categoria ou um operador, fazemo-lo de uma maneira que a conjunção dos dados da empiria se dissolva e se reduza a essa determinação. Disso decorre e depende a coesão e a coerência de qualquer sistema. Essa operação não se reduz à espera da atividade abstrata do pensamento e da filosofia; pode ser imanente ao processo cognitivo; muitas ações mentais desempenhadas em nosso cotidiano trazem consigo signos desse processo; nossos percursos perceptivos, à medida que nunca se estabilizam e nunca se totalizam, funcionam dessa mesma maneira: convocam unidades discretas e as chancelam, como se essas unidades pudessem neutralizar os elementos sutis e as delicadas informações que se dissipam no percurso que conduz de abstração a abstração. Por isso, chamo este continuum de processo abstrativo extensivo elementar. Ele descreve esse horizonte de eventos que circundam todo campo de nomeação e de designação. Mas a abstração extensiva elementar se concentra em mapear grandes extensões espaciotemporais e em obliterar algumas variações causais, empreendendo um movimento de homogeneização das dimensões celulares da experiência, dos seres e dos mundos. A abstração extensiva elementar produz dessa maneira uma compreensão cada vez mais abrangente dos seres e do universo. Contudo o faz em um vetor inversamente proporcional à intensividade dos nexos, das composições e das constelações. O movimento inversamente proporcional ao movimento da abstração é o movimento infinitização intensiva. Como o vetor de todo direcionamento intensivo é a ação mesma do infinito sobre, através, ao redor, dentro, nos e por meio dos seres e dos mundos, a infinitização intensiva se projeta como uma metapossibilidade de concretude e de realização. Ora, nesse caso, a possibilidade é meta porque o processo de infinitização conta com um curioso paradoxo: ele se realiza à medida mesma que não se realiza. Isso significa que o intervalo aberto no tecido relacional dos seres e dos mundos não é uma cisão ou fratura que incide sobre uma matéria ou uma substância, entendidas como uma singularidade do espaço-tempo ou como um buraco de minhoca. Esse intervalo é também infinitamente distribuído em todo tecido relacional que integra e desintegra o cosmos. Desse modo, não haveria um local de manifestação privilegiado desse processo de infinitização no cosmos. Afinal, essa distribuição de infinito, privilegiada para algumas regiões e dimensões em detrimento de outras, contrariaria o pressuposto da heterogeneidade, entendida como estado fundamental do cosmos, flutuando em um oceano de infinitização. Justamente porque a heterogênese é infinita, pode-se conceber um processo infinitamente heterogêneo, baseado em uma diferença pura. Justamente porque a diferenciação é pura, pode-se descrever a impureza dos meios que permeiam e constituem todos os pluriversos, pois a homogeneidade dos universos constelados e em devir se encontra sempre em relação a uma heteronomia, a uma heterotopia e a uma heterogenia radicais, que nunca se fecham e nunca se completam totalmente. Essa abertura instituinte e instauradora não nos guia em direção a uma transcendência ou rumo a uma esfera espaciotemporal fora da natureza ou dos pluriversos. Remete-nos, sim, à constituição mesma da urdidura da trama e do tecido dos pluriversos, relacionados uns aos outros, conectados uns aos outros e, mesmo assim, não submetidos a quaisquer regimes holistas capazes de unificar todos eles sob o signo ou as leis de um ou mais deles. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que existe aqui um dado complementar. Assim como a infinitização conduz tudo que existem para um liame e para um vetor que unifica todos os pluriversos em sua heterogênese, esse mesmo movimento de heterogênese relaciona-se com e coloca em relação tudo que existe, mas não contém e nem circunscreve todos os existentes e existências. Para circunscrever todos os existentes, neste sentido que eu lhes atribuo aqui, o infinito precisaria ser uma substância, um limite, um termo ou um ser: precisaria se adequar a acepções que lhe escapam. À medida que o fator de realização e o fator de existência são paradoxais, e tendo em vista que o processo de infinitização é inversamente proporcional ao processo da abstração extensiva, podemos supor algumas conclusões. A primeira é a seguinte: não haveria uma possibilidade de dualismo entre entidades materiais e imateriais, entre ato e potência, entre seres materiais e formais. Todas estas antinomias se mostram vazias e caem por terra. E caem pelo simples fato de imaginarmos que o vetor de realização não confere maior substancialidade a um determinado ser. Pelo contrário, quanto mais o ser adentra suas zonas de indiscernibilidade, mais se infinitiza. E quanto mais se infinitiza, mais tensiona o vetor de realização em direção às virtualidades do cosmos, acedendo a regiões para as quais convergem os processos de abstração extensiva. A abstração extensiva não consiste em um mero ato de nomear extensões, qualidades, quantidades, dimensões e topologias espaciotemporais. Caso fosse assim, teríamos aqui um movimento de distensão de uma reta infinita. Ora, a reta infinita se torna transfinita quando compreendida não mais a partir de um enquadramento potencial, mas sim a partir de sua infinitude atual. Sendo uma reta infinita atual, essa reta não se propaga infinitamente em duas direções opostas; gera em cada um de seus pontos infinitas retas que a atravessam e que a ultrapassam, sendo elas mesmas infinitas em todas as direções, contingências e sentidos. Nesses termos, a abstração extensiva é uma dinâmica complementar à infinitização intensiva e atual. Ambas coactam os dois grandes movimentos coeternos do cosmos, articulando-os por meio da atualização e da virtualização de planos de existência. Essa sobreposição de planos de existência e de mundos infinitos adquire consistência e realidade à medida mesma que esses mesmos planos e mundos se cruzam, conectam-se e se atravessam. A conexão entre esses planos gera campos de realidade e de consistência. Esses campos, seja em sua aparente totalidade seja em suas parcialidades estruturais, não podem de modo nenhum ser entendidos como a unidade do universo. São apenas meios de acesso à pluralidade aberta e não-holista dos pluriversos, em sua multiplicidade de conexões e de composições possíveis, infinitas, inexauríveis e inacabadas. A cosmologia por enquanto é o estudo da unidade dos campos e dos planos, ou seja, da unidade parcial das intersecções. A teoria dos mesons deve revolucionar a cosmologia. E essa revolução consiste em pressupor que, para declinar o cosmos, precisamos conceber que as suas leis fundamentais e todos os elementos que o estruturam são apenas um campo, um cruzamento de existências heterogêneas e em infinita heterogênese. Essa perspectiva pode vir a revolucionar o que por ora se entende e se define como universo. E deve abrir um novo horizonte inaudito para a cosmologia. Esta aprofunda a partir de então a sua vocação de ser uma ciência de tudo que existe. E passa a compreender que cada existente determina essencialmente a descrição final do todo dessa mesma existência.