Ernst Mach e Henri Bergson: por uma nova ciência, por uma nova Metafísica
A partir da modernidade, a ciência será reconhecida como o legítimo campo de saber para a produção do conhecimento e, simultaneamente, a metafísica será reduzida a um discurso vazio e ineficaz – esta concepção domina a história do pensamento dos últimos quatro séculos. Henri Bergson e Ernst Mach, filósofos que propõem um novo caminho para o pensamento, se empenham em mostrar os limites da prática científica e, por conseguinte, as ilusões advindas de suas ambições e resultados, notadamente marcados pelos interesses humanos. Ao desconstruir esse paradigma que parece tão solidamente assentado, estes autores realizam uma original aproximação entre ciência e metafísica, em que estas, livres da condenação à relatividade e à especulação abstrata, ganham um novo sentido. Uma nova metafísica e uma nova ciência tornam possível a adequada compreensão da natureza, deixando de lado as representações insuficientes e artificiais que impedem ou atrapalham o ato livre de pensar.
1 O Cientificismo
1.1 A emancipação das ciências
A distinção entre o mundo da ciência e o mundo da filosofia remonta aos séculos XVI e XVII, momento da emergência das ciências naturais, como campos do saber autônomos. O Renascimento trouxe para a civilização ocidental uma ruptura expressiva com o paradigma clássico, assentado na autoridade religiosa e na verdade revelada. O pensamento moderno nasce com a necessidade de se encontrar novos fundamentos para a construção da verdade. Diz Foucault que o século XVII vai marcar “o desaparecimento das velhas crenças supersticiosas ou mágicas e a entrada da natureza na ordem científica” (1990, p. 69-70).
Encontrando-se insuficiência nos antigos hábitos do pensamento, nos seus usuais princípios e teorias, faz-se necessário reformular a prática do pensamento. Fará parte dessa prática a construção de um novo caminho para a prática do conhecimento: o próprio sujeito. Os homens terão que estar preparados para encontrar por si mesmos e em si mesmos as novas referências para suas ideias. O sujeito será aquele que, ao mesmo tempo, duvida das grandes ideias metafísicas e se apresenta como o construtor das novas certezas, capaz de realizar a pretensão de uma ciência universal.
O êxito da ciência moderna é devido ao chamado método experimental que, aliás, Roger Bacon, já no século XIII, tinha antecipado, mas que será plenamente desenvolvido na Modernidade. Todo o discurso que se aliar a esse método e a essa técnica será dito científico, distinguindo-se do campo filosófico, meramente especulativo. Nada que não pudesse se relacionar com a experiência desfrutava da perigosa tendência a ser considerada um dogma, razão pela qual os homens de ciência preventivamente tentarão se afastar de alguns conceitos e teorias. A ciência como saber autônomo caracteriza-se pela interatividade, sendo baseada na experiência direta, no experimento, na descoberta e afirmando-se anti-dogmática.
É daí que surge a equívoca pretensão de afastar ciência e metafísica, acreditando-se que o discurso científico puro seria possível e mais do que isso, apenas ele favorável à verdade e ao progresso humano. Mais do que desconfiança, a filosofia (e a metafísica em particular) passam a ser objeto de autêntica repulsa. Com esse completo e preciso afastamento, se elaboraria um ‘ceticismo anti-metafísico’, teorias científicas nas quais, como parece claro, a metafísica não teria lugar. Ou seja, o discurso comum do alvorecer da ciência moderna definirá a idade positiva da ciência, em contraposição à sua pré-história ou idade metafísica.
Construída pela razão e apoiada por uma técnica, a ciência nascente se erigirá como o saber confiável, o único genuíno para enunciar as verdades, posto que apartado das abstrações filosóficas. Enquanto a metafísica estaria voltada para as causas ocultas, misteriosas, a ciência positiva teria como referência as relações empiricamente observáveis. O cientificismo tomará a filosofia como sua adversária e considerará que este campo do saber nada tem a lhe oferecer, mas antes, estaria cercado de problemas que lhe atrapalhariam e mesmo impediriam a busca e obtenção do legítimo conhecimento.
No século XIX, após a emancipação das chamadas ciências humanas, ocorre um novo ‘esvaziamento da filosofia’, quando novos objetos do conhecimento também alcançam a mesma pretensão de serem estudados de modo técnico e objetivo, diferenciando-se de um campo do saber desacreditado e condenado à especulação vazia, à desimportância e mesmo à morte. É assim que a filosofia no XIX fica reduzida a um lugar mínimo: a de ser crítica da ciência. A ela só restaria esse trabalho – nada mais vil e obtuso! Ou seja, essa distinção comum de lugares entre a filosofia e a ciência é um equívoco e uma tolice.
1.2 Retificando o lugar da Filosofia – a Filosofia travestida
Antes de tudo, portanto, é preciso retificar o lugar da filosofia. É preciso compreender que seu papel não é o de ser crítica da ciência. Ela sempre é o solo onde a ciência se levanta. Ela plasma o pensamento em todas as suas expressões e todo e qualquer discurso que se pretenda científico nasce a partir de princípios e ideias filosóficas, mesmo aqueles que se arrogam puro. A filosofia é mais do que indissociável à ciência: é a sua própria natureza! A filosofia não a influencia, ela a constitui; ela não a critica, ela fornece sua base conceitual. E mesmo a vontade de se autonomizar que a ciência moderna expressa nada mais é do que a filosofia reagindo contra si mesma. Como se ela virasse do avesso e suscitasse a sua própria aniquilação.
Ou seja, a filosofia, em determinado momento histórico, passa a reagir contra a sua própria natureza, apaixona-se pela crença de que pode produzir verdades definitivas por meio da razão transcendental e da técnica experimental e se traveste de outra natureza. A ciência não enxerga esse travestismo, porque a ciência é sempre crédula.
2 A prática científica – recolocando o lugar da ciência.
Bom, o pensamento moderno é dominado pelo cientificismo, pela ideia de que a explicação científica comporta a precisão absoluta e uma evidência completa, o que satisfaz plenamente o sujeito, orgulhoso do que vem a ser uma construção sua, sem o auxílio ou intervenções transcendentes. A razão humana, incuravelmente presunçosa, imagina possuir por direito de nascimento (inato) ou por direito de conquista (adquirido) todos os elementos essenciais do conhecimento da verdade e é isso que institui a sua prática científica.
Ora, é preciso então investigar o que é a prática científica. O que significa o modo de proceder científico? Como efetivamente ele se caracteriza? E mais: qual o seu papel? O que ela busca realizar?
Aristóteles, logo na primeira linha de sua Metafísica, afirma que todos os homens, por natureza, tendem ao saber (I, 1, 980 a). Há um pressuposto ingênuo que perpassa toda a história ocidental: o instinto do conhecimento e da verdade é natural ao homem. Após o domínio cientificista na modernidade, acrescentou-se um novo pressuposto, tanto ingênuo quanto, de que o discurso científico é o único discurso verdadeiro. Ora, como esclarece Nietzsche, não é exatamente o instinto da verdade que se encontra no homem, mas antes um instinto de crer na verdade (1984, 180, p. 106). O que ocorre é que o discurso científico almeja produzir verdades. A ambição científica, e isso desde os gregos e não apenas desde a modernidade, é a de produção de um discurso universal, inequívoco, que tira o homem do campo confuso e múltiplo da opinião. Châtelet diz que Platão é um paranóico, porque um homem de ambições desmesuradas (1997, p. 32), um homem que afirma ser possível sair do erro e do engano e atingir com segurança a verdade. Essa é competência da razão que, a partir da modernidade se autonomizará de toda transcendência. Então, não se trata de dizer que o discurso científico é o discurso verdadeiro; mas antes, que o discurso científico, possui a verdade como alvo e ambição.
2.1 A ciência como fruto do interesse humano
E por que a ciência tem essa ambição? Bergson e Mach darão respostas muito semelhantes a esse respeito. Para Bergson isso ocorre porque a ciência tem uma função utilitária, isto é, uma função útil à vida do homem: a função da previsão. Para cumprir esta função a ciência se serve da faculdade da inteligência, faculdade esta que dirige a conduta do homem frente ao meio que o cerca, frente às condições de existência que lhe são dadas. O ato primeiro da inteligência é a fabricação de conceitos: ideias gerais, abstrações, sínteses da multiplicidade. Diz Bergson: “Formar uma ideia geral é abstrair das coisas diversas e cambiantes um aspecto comum que não muda ou que pelo menos oferece para a nossa ação um flanco invariável” (BERGSON, 2006b, p. 108).
A inteligência é um instrumento do homem para sua segurança e sobrevivência: ela triunfa quando constrói um caminho utilitário, um caminho onde ele pode apoiar o seu agir, onde pode prever se os elementos dados em cada situação lhe são ou não favoráveis.
A ciência é a auxiliar da ação. E a ação visa um resultado. A inteligência científica pergunta-se portanto o que precisará ser feito para que um certo resultado desejado seja atingido ou, de modo mais geral, que condições é preciso obter para que um certo fenômeno se produza. Vai de um arranjo das coisas para um rearranjo, de uma simultaneidade para uma simultaneidade.
(BERGSON, 2006c, p. 144)
Para prever, ela extrai e retém do mundo o que pode ser repetido e calculado (BERGSON, 2006a, p. 5), o que pode ser estabelecido como um enunciado duradouro, sempre idêntico. Por conseguinte, o fluir que não se repete é por ela eliminado e o mundo inerte torna-se ao mesmo tempo, o resultado de sua abstração e o seu ideal. Ela reduz o mundo para facilitar a influência do sujeito sobre as coisas. A ciência se destina a preparar e a iluminar a ação do homem sobre as coisas, pretende compor um mundo no qual o homem possa agir, mas para a comodidade desta ação, alguns efeitos devem ser escamoteados (BERGSON, 2006a, p. 6). Ora, para tratar da atividade própria do homem e das condições nas quais ela se exerce, ao invés de se abarcar a totalidade da realidade, a ciência desvia o olhar daquilo que não é de seu interesse, do que não serve às exigências fundamentais da vida. Desse modo, a faculdade de conhecer pode ser compreendida como “uma potência de extrair o que há de estabilidade e de regularidade no fluxo do real” (BERGSON, 2006b, p. 108).
Ou seja, a ação do homem só pode se dar sobre pontos fixos, logo, é a fixidez que a inteligência procura (BERGSON, 2006a, p. 8; 9). O indivíduo supõe que quando estuda algo, este algo permanece estaticamente o que é, porque a vida estática se presta melhor às exigências da lógica e da linguagem. Transição e mobilidade não podem estabelecer o idêntico, logo o verídico, de modo que são deixadas pela inteligência. Toda representação intelectual busca paradas, retenções, justaposições, posições, descontinuidades; todo o resto é negligenciado. Conclusão: a inteligência não representa o mundo, mas sim o que lhe convém representar.
A imobilidade é uma necessidade do sujeito e quanto mais ele conseguir representar o mundo por pressupostos de imobilidade, melhor acredita que o compreende (BERGSON, 2006d, p. 165). Quanto mais o homem estabelece o estável, mais acredita triunfar na compreensão da natureza e, de invenção em invenção, ele caminha, certo de que a experiência lhe dá razão.
2.2 A ciência como fruto da auto-conservação
Mach, da mesma forma, fará a mesma interpretação de Bergson, a partir de sua leitura e influência de Darwin, pensador que ele diz ter reavivado todas as ciências (MACH, 2010, p. 165). Mach se serve das teorias do pensador inglês para explicar a própria origem do conhecimento – este faz parte dos comportamentos capazes de garantir a sobrevivência biológica da espécie humana: “o desenvolvimento da vida representativa comporta, antes de tudo, vantagens para a vida orgânica” (MACH, 2017, p. 141). Os processos psíquicos da vida consciente e, sobretudo, as faculdades representativas do homem são considerados como instrumentos que a progressiva evolução da espécie colocou à sua disposição (SIGISMONDI, 2002, p. 19), e foi graças a isso que pode o homem adaptar-se às diversas situações que encontrou ao longo de sua história, bem como atingir um pleno domínio sobre o ambiente natural. Diz Mach que os primeiros conhecimentos nascem da necessidade de auto-conservação (2010, p. 184). Ou seja, os processos vitais de um indivíduo visam a conservação da vida, mas a atividade intelectual, representativa, do homem também possuem o mesmo objetivo, também buscam a mesma conservação. São suas palavras: “assim, o pensamento científico completa a linha contínua de evolução biológica que se iniciou com as primeiras, simples, manifestações vitais” (MACH, 2017, p. 69).
Dizer que o homem realiza uma série de atividades voltadas pela sua conservação e adaptação ao meio ambiente não é uma novidade. O que há de interessante aqui é a ideia que a ciência não se destacaria com uma finalidade distinta de tais atividades – também ela estaria voltada para a conservação e reagiria em prol dessa conservação, do seu modo mais bem adaptado, do seu interesse mais confortável. Assim, todas as leis, conceitos, teorias científicas apareceriam como subsídios econômicos para por o homem em uma relação suficiente com o seu meio ambiente, transformando o que o cerca em instrumento de ação e antecipação do futuro.
Os processos psíquicos da vida consciente do homem são instrumentos econômicos que a progressiva evolução da espécie colocou à sua disposição (SIGISMONDI, p. 19). Ou seja, o próprio processo evolutivo do homem o levou à desenvolver sua faculdade intelectual objetivando sua melhor adptação e sobrevivência. Com isso ele consegue um grande domínio sobre o ambiente natural e pode se adaptar a situações diversas.
Ao invés de ler a realidade como uma duração, isto é, como uma continuidade indivisível de movimento, como um fluir dinâmico e ininterrupto, a inteligência capta instantâneos que se prestam às exigências de seu interesse que podem calculados e expressos na linguagem corrente. “A inteligência deforma, transforma, constrói seu objeto ou só toca a sua superfície ou só apreende sua aparência” (BERGSON, 2006a, p. 37). Em outras palavras, ela manipula a matéria, mas não lhe toca o fundo.
A inteligência só se sente à vontade diante da matéria inerte. Claro, o homem deseja tirar partido da matéria, mas se esta se mostrar movente, diferente a cada instante, imprevisível em suas expressões, como o homem realizará o que deseja? Para guiar a ação do seu corpo sobre os corpos circundantes o homem fabricou instrumentos e a ciência levou este trabalho o mais longe que pode (BERGSON, 2006a, p. 36-37). O que o homem objetiva é se assenhorar da matéria, preparar a sua ação sobre ela, garantir-lhe a efetividade de sua autoridade. Assim, o valor que uma teoria científica tem e, por conseguinte, a confiança que inspira está diretamente ligado à solidez do poder que ela promete ao homem (BERGSON, 2006a, p. 37).
2.3 O processo abstrativo do conhecimento
Para servir ao homem, a inteligência constrói ideias gerais, abstrações intelectuais cujo conteúdo pode ser conhecido por todos os homens e se mostram necessários para a sua vida. São interesses que, embora atendam ao indivíduo e à sociedade, são artifíciosos; são produções intelectuais que possuem uma serventia, mas que não correspondem ao funcionamento da vida, do mundo, do universo. Por uma inversão interesseira, aquilo que é necessário se torna o real; o que é útil ao homem se torna a legítima face da vida.
A ciência necessita que o seu objeto seja estável, caso contrário não pode realizar sua base sólida de operação conceitual. Ao estudar qualquer ato mental, a ciência necessita supor que ele permaneça o que é, sendo toda variação encontrada, considerada uma multiplicidade quantitativa, e a análise final consideraria seus elementos imutáveis. Assim, o resultado da investigação científica é um ponto de vista sobre as coisas, em que sua organização real é substituída por reconstituição esquemática que responde à uma escolha, que recorta do objeto o que no homem desperta o seu interesse particular. Diz Bergson: “geralmente, não visamos conhecer por conhecer, mas conhecer para tomar um partido, para extrair um proveito, enfim, para satisfazer um interesse” (2006e, p. 205). Ao olhar um objeto, o homem, antes de tudo, se pergunta o que deve fazer com ele e o que ele pode fazer pelo homem, isto é, que gênero de ação ou atitude é possível (BERGSON, 2006e, p. 206). Em outras palavras, o conhecimento produzido é um conhecimento orientado em certa direção, ele revela uma análise do proveito que o homem pode extrair do que o cerca. Ocorre que o sujeito considera esses esquemas, que servem aos seus anseios adaptativos, definitivos. Ele acredita que esse resultado esquemático efetivamente reconstitui o real, isto é, que a vida obedece a esse modo de ver as coisas que é típica da inteligência, e se afeiçoa a esta imagem fictícia do universo.
A crença espontânea do senso comum é que a ciência domina todos os aspectos que se propõe estudar, quando, na realidade, ela recompõe o mundo artificialmente, ela o deforma. Esta recomposição “corresponde a um recorte da realidade segundo as linhas que cabe seguir para agir comodamente sobre ela. O mais das vezes, distribuem os objetos e os fatos segundo a vantagem que deles podemos extrair, jogando atabalhoadamente no mesmo compartimento intelectual tudo o que diz respeito à mesma necessidade” (BERGSON, 2006a, p. 34).
Daí Nietzsche dizer que o entendimento do homem é uma força de superfície, uma força superficial: seu pensar é um classificar, um nomear, isto é, “qualquer coisa que diga respeito ao arbitrário humano e não atinge a própria coisa” (1984, 54, p. 37).
O espírito humano tem a irresistível tendência de considerar que quanto mais uma ideia serve ao homem, mais é considerada clara e legítima (BERGSON, 2006e, p. 212). Desse modo, forma-se um círculo vicioso entre um modo de conceber a realidade (por meio de paradas e imobilidades) e as ideias cientificamente respeitáveis: um reforça o outro e durante toda a história do pensamento ocidental esse reforço fez construir uma imagem clássica que penetra todos os campos do saber, imagem esta que despreza as nuances e gradações da natureza.
Mach ensina que no processo abstrativo do conceito as singularidades são esquecidas em proveito do geral, do comum, de modo a facilitar, inclusive, a transmissão do conhecimento. Diz ele:
quando consideramos pela primeira vez um grupo de fatos ele nos parece multiforme, desigual, intricado e cheio de contradições. Inicialmente não podemos prestar atenção senão em fatos singulares, sem colocá-los em correlação entre si… Mas, pouco a pouco encontramos os elementos simples e constantes do mosaico, que nos permite compreender no nosso intelecto o inteiro complexo dos fatos (MACH, 2010, p. 182).
E o que move esse processo de abstração é o interesse do cientista: “Não reproduzimos nunca os fatos na sua inteireza, mas somente naqueles aspectos que são importantes para nós, em vista de um objetivo nascido direta ou indiretamente de um interesse prático” (MACH, 1883, p. 471 apud SIGISMONDI, 2002, p. 22). Ou seja, o que determina o caminho da abstração e a consequente seleção das propriedades de um fenômeno é o interesse que o motiva. “A linguagem e o pensamento inteligível, que tem com ele relação de reciprocidade, fixando nas coisas o que considera mais importante e deixando de lado o que é indiferente, compõem, ao modo de um mosaico, uma imagem estável da fugaz realidade do mundo” (MACH, 2010, p. 180). No processo de abstração que caracteriza a formação do conceito o que está em pauta não são todos os detalhes do fenômeno, mas sim as circunstâncias que interessam ao homem, tendo em vista sua adaptação biológica. Os conceitos têm como objetivo conduzir o homem pelas estradas mais cômodas e mais seguras (MACH, 2017, p. 187).
Daí que os juizos científicos não são proriamente embasados sob critérios de verdade e falsidade, mas antes sob sua utilidade para a vida e as pretensões do homem. E, nesse sentido, cria-se um apego às construções intelectuais e teóricas e não tanto à realidade. Ainda que não sejam adequadas para tornar compreensível a natureza, a defesa dessas ideias faz-se a todo custo, ainda que a preço de se colocar uma venda ao olhar para o universo. Diz Mach: “subordinando um fato a um conceito nós o simplificamos, porque excluímos todos os caracteres inessenciais ao objetivo (ao interesse)” (MACH, 2017, p. 179).
Ou seja, o processo do conhecimento opera por generalização idealizante, que fornece a base para constituir as expectativas em vistas das quais o homem agirá no mundo e satisfará as suas próprias necessidades (SIGISMONDI, 2002, p. 22). A atividade intelectual do cientista com seus critérios de simplicidade descritivos e de economicidade se tornam uma estratégia biológica adaptativa tendo em vista objetivos práticos. A ciência é a máxima expressão do esforço adaptativo do homem (SIGISMONDI, 2002, p. 7), uma tarefa tipicamente humana.
O ensinamento científico contém sempre uma descrição sintética, que é a reprodução conceitual de uma experiência que se quer divulgar (MACH, 2010, p. 181), mas quando se esquece que elas derivam de interesse, que se relacionam com a natureza biológica do homem, a ciência se torna um grande e complexo discurso, mas privado de realidade. Tal discurso só faz fomentar pseudo-problemas irresolvíveis.
Mach denuncia a antropomorfização da natureza, ou seja, a generalização projetiva de processos que o indivíduo percebe em si mesmo. O próprio conceito de causa e efeito nasce do esforço de reproduzir os fatos do pensamento (MACH, 1883, p. 473 apud SIGISMONDI, 2002, p. 42) Não se deve olhar para a natureza e querer lhe impor um desdobramento de si mesmo, de sua própria constituição. Assim só se fica num jogo especular, numa bolha especular. Só se produz mais do mesmo: mais do homem, o mesmo que o homem. Se ao homem é dado a pensar, é porque ele deve, antes de tudo, saber sair de si, ultrapassar a sua condição, lançar o seu olhar um pouco mais longe de si, como pergunta Mach. (2010, p. 166).
Ora, se a ciência não trabalha com os fatos na sua concretude, mas antes com uma imagem abstrata e idealizada deles, esta ciência não estaria muito distante do que ela própria combate. Como um narcisita às avessas, o homem de ciência no esforço de criar o que se diferencia do que combate, produz um o análogo daquilo que combate. E não faz isso por cinismo; o faz por ignorância mesmo.
A ciência estaria sempre no domínio da contingência e nunca da necessidade, mesmo porque todos os enunciados científicos seriam formulados a partir de motivações históricas, hábitos mentais, interesses circunstanciais. Daí ele dizer que não haveria distinção radical entre ciência e senso comum, sendo a primeira apenas um refinamento do segundo. A ciência é um instrumento de adaptação da espécie humana, e um instrumento provisório, sempre pronto à reformulação. Diz ele: “que nos acostumemos logo, então, ao fato de que a ciência é algo inacabado e mutável” (2014, p. 33). Isto é, ela seria um uso e não uma revelação isenta, imparcial que a iluminação da razão vem, inequivocamente, demonstrar.
Ou seja, a mente humana é limitada e interessada. São dois balizamentos que reduzem o papel e o alcance da ciência, tirando-a do lugar que ela ansiou pertencer.
Em sua obra História e raízes do princípio de conservação de energia, Mach se esforça em demonstrar que o princípio de exclusão do movimento perpétuo, sustentantado pela Mecânica, é independente da natureza. Ele afirma (2014, p. 73) que a perspectiva mecanicista, sendo oscilante e precária, não oferece qualquer fundamento seguro para esse princípio, o que o faz não fundado sobre um conhecimento positivo. Entretanto, ele possui força convincente para dominar os maiores pesquisadores. Onde repousaria, pois o princípio de onde ele retira tal força? Sua formulação nada mais é do que uma obediência à lei da causalidade (2014, p. 83) e, como tal, embora sustentado amplamente, infrutívero para se pensar a natureza. Tal princípio é uma expressão doméstica bastante cômoda, “facilmente apreensível e muito pertinente à natureza econômica do ser humano” (MACH, 2014, 86). A lei de inércia ganhou a dignidade e a intocabilidade de um dito papal (MACH, 2014, 89). Para ele, em tal lei, na ideia de que ‘todo corpo manterá sua direção e velocidade enquanto essas não forem alteradas por forças exteriores’, reside uma grande indeterminação.
Sigismondi diz que “ pensamento de Mach representou…. a crítica radical desta impostação transcendental do pensamento oitocentista que já via a ciência dotada de uma indubitável e permanente estrutura lógica, conceitual e empírica” (2002, p. 5).
Há outras faculdades no homem que não estão a serviço da utilidade prática e que são capazes de apreender a vida em sua complexidade múltipla e movente, mas para que tal faculdade possa aflorar, é necessário se dedicar não ao que é útil à ação humana. Enquanto a vida estiver contida pelas exigências do intelecto o pensamento não pode aflorar. Só ultrapassando os interesses da prática humana que o pensamento pode nascer. É nesse sentido que Heidegger afirma: não começamos a pensar ainda (2002, p. 111 e seguintes).
O que o homem comumente acredita ser pensar é uma reflexão para a ação. E é nesses moldes que a inteligência reina absoluta. Mas pensar é outra coisa. Entre a realidade concreta e a reconstrução artificiosa da ciência, que distância! (BERGSON, 2006a, p. 93). “A inteligência inteiramente pura é um encolhimento de uma potência mais vasta” (BERGSON, 1979, p. 50) – entre a criação contínua de imprevisível novidade que desenrola-se no universo e a representação pobre e esquemática da inteligência há uma brutal diferença.
Não se percebe essa diferença porque o homem como que se encontra hipnotizado frente aos poderes da ciência e da inteligência. Amoldado à imagem de um universo artificial, autoadulado pelo que constrói, com facilidade ignora a novidade sempre renascente, a movente originalidade das coisas. Em uma atitude de certo modo delirante, o intelecto se impõe sobre a vida, fixando seus interesses e, no processo de autoadulação que o caracteriza, acredita ter o melhor e o mais claro domínio do que ela é, quando, em realidade, apenas formula o que pede suas exigências próprias e o que o seu entendimento suporta demonstrar.
3 Duas metafísicas
A ciência operaria, portanto, a partir de conceitos fantasia, como ele chama, ainda que tais conceitos sejam úteis para o desenvolvimento da ciência e do conhecimento. Esses conceitos fantasia, de modo geral, provêem de um solo metafísico, a partir do qual toda ciência é erigida. São ideias pré-concebidas que acabam por sustentar a própria prática da experimentação. Claro, todo discurso científico, mesmo o que se pretende o mais puramente empírico, é construído sobre um discurso metafísico que, por sua vez, possui seus princípios a priori. Como diz Kant, por trás de toda ciência da natureza há uma metafísica da natureza (1990, p. 15, A 7). Todo cientista teria que partir desse solo que acabam por balizar, delimitar e apontar o próprio caminho da ciência. É um solo conceitual que serve como princípio-guia para a ciência, solo este que a ciência não pode se libertar. Por isso é preciso renovar a ciência, de tirá-la desse agir reducionista, o que implica dizer que é preciso partir de uma nova metafísica. Usando ainda os termos de Kant, para uma ciência da natureza que não seja uma idealização ou um reducionismo, é preciso uma metafísica da natureza renovadora, que parte de outros pressupostos e faça o pensamento caminhar em outra direção.
É bem verdade que todo comentador de Mach gosta de reforçar a ideia de que ele é um feroz combativo da metafísica e que seu projeto é afastar de suas ideias quaisquer perspectivas metafísicas, conforme suas próprias palavras (2014, p. 27). Mas é preciso, antes de tudo, entender o apelo de Mach. Qual o sentido dessa repugnância? Certamente afastar do seu pensamento uma perspectiva que o diminua e o limite. Ora, isso não é propriamente afastar o seu pensamento de toda e qualquer perspectiva metafísica, mas sim de uma certa orientação metafísica (diga-se de passagem, da visão mais presente e comum na história da filosofia), mas não a única existente.
É preciso, pois, compreender o que seria estar livre de uma influência metafísica. Se por metafísica entende-se a sua natureza clássica, comprometida com a verdade, a estabilidade e a permanência de todas as coisas de modo a se construir um discurso perfeito e irrefutável sobre a vida, em outras palavras, uma metafísica dogmática, sem dúvida esta está bem distante das ideias de Mach. Ocorre que nem toda metafísica é comprometida com esse ideal clássico. Assim, quando Mach diz que deve estar longe da metafísica, este enunciado deve ser entendido em um sentido muito preciso.
A crítica de Mach à metafísica certamente à crença de ser um discurso capaz de determinar o fundamento último e definitivo para o conhecimento, sobretudo a partir da crença de causa final. Para ele, respostas definitivas ao pensamento não são possíveis, ainda mais quando se penetra em determinadas questões como a natureza da alma ou a origem do universo. Perguntar sobre a natureza última das coisas seria uma inutilidade e um perigo, levando a uma interrogação estéril e despropositada.
Mach é um físico do século XIX, portanto inserido no novo paradigma e voltado para o legítimo mundo do conhecimento que deve ser com suficiência diferenciado de um saber vago e abstrato. Entretanto, ainda que um cientista, ainda que um físico alinhado com as novas referências que surgiram na modernidade, ainda que um combativo do velho modelo metafísico, Mach não terá com a ciência uma relação de servidão e obediência. Antes, ele se empenhará por mostrar suas limitações e ilusões, de modo que não se perfilará entre os que a vêem como um saber absoluto e onicompreensivo do mundo, o que o torna também um crítico da ciência e um homem destacado dos dogmas de sua própria época.
Ou seja, ao se distinguir dos velhos caminhos metafísicos Mach não se enamora cegamente das promessas científicas do seu tempo. Ao contrário, ele sabe o quão limitado e dissimulados são os fins e os meios da ciência. O pensamento de Mach é um chamamento a uma outra forma de pensar, que também se distancia das pretensões do discurso científico. Toda a sua obra tende para a abolição da verdade indiscutível, da eliminação de tudo o que impedia o livre desenvolvimento do pensar.
Porque se a metafísica clássica não oferece meios para o livre pensar, a ciência, com a sua prática dogmática disfarçada de neutra e rigorosa, tampouco oferece. Determinadas concepções científicas, por mais divulgadas e partidários que tenha, além de não serem insubstituíveis, podem, até mesmo, criar obstáculos no processo de conhecer.
Se, contudo, tal modo de representação é tão limitado e inflexível que não permite acompanhar a multiplicidade de aspectos dos fenômenos, então ele também não mais há de ser usado como fórmula e começará a ser para nós um entrave ao conhecimento dos fenômenos (MACH, 2014, p. 63).
Como exemplo, ele sugere o modo espacializado (em três dimensões) de se pensar os elementos químicos. Quando se pensa em um espaço de três dimensões, o número de distâncias pensáveis é maior que o número de distâncias possíveis se o número de pontos for maior que quatro. Para uma molécula constituída de cinco átomos haveria dez distâncias possíveis, mas num espaço de três dimensões, apenas nove são possíveis (2014, p. 67). Diz ele:
esse exemplo mostra o tanto que procedemos de modo limitado quando pensamos nos elementos químicos espacialmente (em três dimensões) e como uma série de relações dos elementos assim nos escapa se insistimos em apresentá-los numa forma que não consegue apreendê-los (2014, p. 68).
Aliás, é necessário destacar que a concepção clássica de metafísica é que permeia o próprio ideal científico que Mach vem combater. E, nesse sentido, o que seria necessário a ele seria uma base metafísica nova, capaz de alterar os preceitos da ciência e algumas de suas ideias fantasmagóricas. Ora, nesse sentido, será aliada e mesmo necessária ao pensamento machiano uma outra perspectiva metafísica, onde encontram-se os princípios que permitirão a adequada compreensão da natureza, deixando de lado as representações insuficientes, representações insensatas e ultrapassadas, intraves ao pensamento, como ele próprio diz. Essa nova perspectiva metafísica não é uma rival da ciência, mas uma outra forma de ocupar o espírito, uma outra direção para o pensamento, que caminha em busca dos aspectos múltiplos da realidade, de sua complexidade dinâmica e de sua riqueza inesgotável.
Esta nova metafísica livraria o pensador das limitação desnecessária que o sujeito se impõe, tirando-lhe da condição de subserviência absoluta aos parâmetros da ciência. Ela assim se torna imprescindível, na medida em que faz o cientista desdobrar seus joelhos frente ao mundo que o cerca.
4 A crítica de Mach
É muito raro encontrar um sujeito que faça uma análise crítica e clara do seu próprio mundo; mais raro ainda quando esse mundo é o mundo da ciência, o mais iluminado dos saberes, desde que alcançou esse posto no século XVIII. Mach tem esse importante ensinamento a nos ofertar: ele ocupa um lugar inesperado entre os homens de ciência e de forma lúcida, expõe a natureza do mundo científico sem se deixar seduzir por seu apelo dogmático. Ao contrário, de modo muito franco, fala de suas limitações e fantasias; de seus artifícios e simulacros. Mach põe às claras o modo de proceder científico, tomado por simplificações, limitações e mesmo ilusões.
Nesse sentido, seu pensamento é precioso, porque desvela, já no final do século XIX, uma postura que a ciência só tem feito cultivar e que, por consequência, lhe traz o impedimento de pensar, posto que reproduz um discurso dogmático travestido de discurso científico.
O cientificismo, de modo geral, trabalha a partir da ideia de evolução: as teorias, as doutrinas, avançariam ao longo da história em direção a um conhecimento aprimorado e verdadeiro, deixando para trás o que depois se teria revelado equivocado. Assim, os primeiros passos da ciência nada mais seriam do que especulações mitológicas, que se disfarçam de ciência e que se contraporiam enormemente ao que se constrói hoje no campo científico. Mach destrói essa ingenuidade pretenciosa. Diz ele que a ciência grega de Tales e Pitágoras pode ser tomada como uma mitologia da natureza, pois contém numerosos elementos fantasiosos. Mas essa mitologia da natureza, animística e demonológica, se transforma, pouco a pouco, em uma mitologia da matéria e da força ou em mitologia dinâmica (2017, p. 155). Ou seja, não ficou para trás o tempo da puerilidade ou do engano. Tais características permanecem no horizonte científico em todos os tempos, incluindo o tempo de hoje. Todo o desenvolvimento tecnológico não garante sua distinção frente a outros saberes. Mach convida os seus leitores a essa clarividente e, exatamente por isso, desconcertante compreensão da ciência e do seu desenvolvimento. Suas suas considerações levam a uma crítica da ciência e não a uma crença sem limites nela. Há mesmo uma disposição de Mach em tomar a ciência como algo incompleto, sempre pronta a ser reformulada, a ter seus conceitos e doutrinas alteradas.
Uma das orientações metodológicas de Mach, por assim dizer, é a impossibilidade de compreensão da totalidade da natureza. Não está no horizonte de compreensão do homem de ciência esta ambição e, portanto, deve ser abandonada. Mach claramente não crê no valor transcendente da ciência. Ele a vê como um saber incompleto, sempre aberto à reformulação, calcado em fantasmas representativos e, inevitavelmente sustentado em pressupostos metafísicos que já moldam e dirigem todo o processo investigativo ou experimental. E mais ainda, tais pressupostos são, de modo geral, redutores e limitativos, não abarcando a natureza em sua multiplicidade ou diversidade.
5 Mach empirista
Mach se afirma e sem dúvida é um pensador empirista, dado que as ideias centrais de Hume – a quem dedica a obra Conhecimento e erro, (ideias estas desconstrutoras da metafísica clássica) estão explícitas em suas obras e ele reconehece essa proximidade (2010, p. 242).
Para Hume, tudo o que existe são percepções que se sucedem umas às outras em perpétuo fluxo e movimento. A identidade que atribuímos ao espírito humano, às coisas externas ou a Deus é uma identidade fictícia (HUME, 2001, I, I, VI, p. 40; I, II, II, p. 56).Da mesma forma, Mach afirma que as coisas, o eu e a causalidade não existem como entidades ontológicas ou substratos materiais. Eis suas palavras: “o mundo não é composto por ‘coisas’, como sendo seus elementos, mas por cores, tons, pressões, espaços, em resumo, pelo que nós normalmente chamamos de sensações” (MACH, 1919, p. 483, tradução nossa).
Como empirista, Mach afirma que o conhecimento deriva e tem como único conteúdo a experiência sensível. São suas palavras: “não tem dúvida que o universo não é outra coisa que a nossa sensação” (2010, p. 192). O empirismo de Mach se deve, inicialmente, à leitura de Kant aos 15 anos, que lhe causou “impressão forte e indelével” (o próprio Kant obteve essa mesma impressão de Hume). Kant ensina que o espaço e tempo não são realidades em si, mas formas puras da sensibilidade, isto é, condições a priori sob as quais o sujeito percebe o mundo. São condições da percepção humana e não realidades ontológicas.
Afirma o próprio Mach:
Minha relação com Kant é peculiar. Seu idealismo crítico foi – eu admito ser-lhe profundamente devedor – o ponto de partida de todo o meu pensamento crítico; mas me foi impossível manter minha fidelidade com ele. Eu me aproximei mais do pensamento de Berkeley…de Hume (1914, p. 367-368, tradução nossa).
Mach, reproduzindo a lição empirista, afirma que o pensamento (mesmo o pensamento científico) opera por construção de conceitos, que são abstrações, símbolos com os quais o sujeito representa a natureza, com os quais pensa as relações entre os objetos. Ocorre que o conceito não designa uma substância verdadeira, de existência incondicional, uma coisa em si. A influência de Kant em Mach também foi definitiva nesse sentido. Jamais atingiremos a coisa em si (o númeno), mas apenas o fenômeno, isto é, a coisa tal como se apresenta para mim. E tal como se apresenta para mim significa dizer dependente da apreensão pela faculdade da sensação e das sínteses da faculdade do intelecto, direcionadas pelo meu interesse frente ao mundo.
A preocupação em distinguir-se de um metafísico advém do combate que Mach faz com os seus conceitos fundamentais: substância, eu, causa, lei. Mas há uma metafísica que igualmente quer renovar esses conceitos. Uma metafísica empirista, pois destruir essas três grandes ideias terminais da metafísica foi a tarefa de David Hume (DELEUZE, 2006, p. 213).
5.1 O eu
Mach mostra que o eu nada mais é do que um conjunto de representações, e não uma entidade empírica coesa. O eu seria um conjunto de vivências, de representações, uma síntese convencional, um puro nome. Diz ele: “sem dúvida, o eu só tem uma estabillidade relativa. A aparente estabilidade do eu reside principalmente na continuidade, na lentidão com que ele se transforma” (MACH apud FULGÊNCIO, 2016, p. 202).
5.2 A causa
Se Mach se opõe tão radicalmente contra a metafísica, sobretudo se deve à ideia de causa como característica maior da metafísica clássica. Aristóteles (2002, p. 73) enuncia que toda ciência é ciência da causa: “não conhecemos a verdade sem conhecer a causa” (II, 1, 993, 20). Desde então esta ideia motivou toda e qualquer pesquisa científica em seus diversos campos e métodos.
A lei de causalidade foi bem enunciada por Fechner ao afirmar que “por toda a parte e a qualquer momento, na medida em que as mesmas circusnstâncias ocorram novamente, o mesmo novamente se sucederá; e, na medida em que essas mesmas circunstâncias não ocorram novamente, o mesmo não se sucederá (apud Mach, 2014, p. 74). Ela, deduz Mach, é a pressuposição de uma mútua dependência dos fenômenos (2014, p. 75), em que dadas as mesmas circunstâncias (em qualquer tempo e em qualquer lugar), seguem-se os mesmos efeitos. Isso significa que por todo o tempo, na medida em que retornam as mesmas circunstâncias, retornam os mesmos acontecimentos, o que traz para a compreensão da natureza a ideia de identidade, de repetição exaustiva, e, por conseguinte, de falta de criação.
Ao combater a ideia de causalidade, Mach considera algumas questões: em primeiro lugar, o traço singular dos acontecimentos da natureza. Mach afirma textualmente que “a natureza não se repete” (MACH, 2010, p. 185), ou ainda que “nenhum fato da experiência se repete exatamente” (MACH, 2017, p. 299). Logo, se quiséssemos encontrar na natureza as iguais condições que produziriam iguais resultados, isso, por si só, ja não seria possível.
Em segundo lugar, é preciso compreender a complexidade das relações dos fenômenos: na natureza não existem relações simples, mas uma intricada e complexa multiplicidade de relações que não podem ser compreendidas através das categorias de causa e efeito. Usar tais categorias para caracterizar os fenômenos e suas relações nada mais é do que uma arbitrariedade, “na natureza, as conexões são raramente muito simples, de maneira que se possa fornecer, num dado caso, uma só e mesma causa, um só e mesmo efeito” (MACH, 1886, p. 88-89). Dada a complexidade da natureza, revela-se a falta de precisão do conceito de causalidade: “chamamos causa a um evento que é invariavelmente ligado a um outro evento (o efeito). Certamente se pode ver que se trata de uma relação concebida de modo muito superficial e imperfeita” (MACH, 2017, p. 294).
O que se chama de causa são eventos que ocorrem juntos no mesmo espaço e tempo, mas eventos que se destacam e ganham a atenção do observador. Se se modifica essa atenção, isto é, se a seleção dos eventos torna-se outra, a causa também se torna diversa, podendo até mesmo o que antes era causa se tornar efeito e vice-versa. Ou seja, o que se se chama nexo causal não passa de uma concatenação de eventos, nada mais é do que a seleção de um elemento entre os múltiplos envolvidos na intricada rede de elementos que constituem cada evento. Ou seja, por detrás de simples relações subsiste uma multiplicidade muito mais ampla de relações, elementos que nem se consegue ver ou destacar.
A assim dita causa não é outra coisa que um elemento complementar de um inteiro complexo de circunstâncias que determinam o assim dito efeito. Por isso, segundo o que se leve em consideração e se destaque este ou aquele elemento constitutivo do complexo, o elemento complementar em questão será muito diverso” (MACH, 2017, p. 295).
Mach está demonstrando a insuficência do conceito de causalidade, seja porque despreza a novidade sempre presente nos eventos da vida, seja porque desconsidera a complexidade de tais eventos, seja porque não passa de uma eleição intelectual que nem pode considerar (porque sua limitação não o permite) todas as forças que permeiam cada acontecimento do mundo. Em consequência, “a lei de causalidade é vazia e infrutífera” (MACH, 2014, p. 78).
Isso que chamamos causa e efeito não são outra coisa que as características salientes de uma experiência, que tem maior importância que as outras na reprodução que dele fazem o nosso intelecto… Se eles parecem ter uma relação de necessidade é porque as inserimos mais vezes entre os termos conhecidos e por isso têm para nós maior valor (MACH, 2010, p. 185, tradução nossa).
Ainda que a ideia de causalidade domine o imaginário científico, ela resulta apenas do trabalho de abstração do intelecto humano, de sua imitação esquemática ao se voltar para a descrição dos fatos. Diz Mach: “na pesquisa da natureza, trata-se apenas do conhecimento das conexões dos fenômenos. O que representamos como algo que está por trás dos fenômenos existe tão somente em nosso entendimento” (2014, p. 63). Assim, os pressupostos de acontecimentos iguais em circunstâncias iguais existem apenas na abstração, posto que na realidade não é possível encontrar repetições exatas de casos iguais e nem mesmo relações de necessidade. Portanto, estes conceitos não existem na natureza, são apenas construções psicológicas.
E assim ele propõe substituir o conceito de causa pelo conceito de função. Enquanto o primeiro designa um estado de coisa de modo provisório e incompleto, o segundo trabalha na perspectiva da multiplicidade, da heterogeneidade e mesmo na admissão das contradições. O conceito de função representa a dependência dos elementos de modo mais perfeito e preciso que os conceitos de causa e efeito (MACH, 2017, p. 295). Aqui se não se trata de uma mera mudança terminológica. A função seria a interdependência dos fatos, pois Mach compreende que onde existe dependência imediata de dois ou mais elementos, cada elemento é função do outro. Ou dito de outra maneira: causa e efeito podem trocar de lugar um com o outro. Ele dá o exemplo com dois corpos condutores de calor: quando estes se tocam, as variações de velocidade de um é a causa da outra e vice-versa. “Se se consideram com exatidão e em detalhe os processos da física, parece que todas as dependências imediatas podem ser vistas como complementares e simultâneas. Para os conceitos comuns de causa e efeito vale o exato oposto” (MACH, 2017, p. 295-296). É preciso compreender uma rede de dependências, a complexa situação da natureza, a relação entre infinitesimais elementos, muito além da simplificação de causa e efeito.
Quando falamos de causa e efeito, colocamos arbitrariamente em evidência aqueles aspectos que chamam a nossa atenção, em vista de um resultado para nós importante. Mas na natureza não existe causa nem efeito…. A repetição de casos iguais em que A é sempre ligado a E, ou seja, o representar-se idêntico dos efeitos sob as mesmas circunstâncias existe só na abstração feita para reproduzir os fatos (MACH, 1977, p. 472 apud SIGISMONDI, 2002, p. 36).
A relação de causa e efeito se funda apenas numa certa regularidade da experiência que produz no sujeito um hábito, onde se geram crenças em que se confia, no momento em que se tenta conhecer o mundo. Causa e efeito são úteis ao pensamento humano porquem permitem prever as mudanças do nosso meio ambiente que se anuncia com determinados signos antecipatórios, mas “nas ciências altamente desenvolvidas o uso dos conceitos de causa e efeito é sempre mais limitado, sempre mais raro” (MACH, 2017, p. 295).
5.3 A lei
Habitualmente se acredita que as leis da natureza são as regras pelas quais se movem os processos naturais e, nesse sentido, elas seriam invioláveis. Mach afirma que são as intuições e os conceitos humanos que prescrevem as leis da natureza. Diz ele: “originalmente, as ‘leis da natureza’ são limitações que prescrevemos, orientados pela experiência, à nossa expectativa” (MACH, 2017, p. 441, tradução nossa).
A espécie humana considera importante a transmissão do conhecimento e esse processo só se torna possível quando enunciado a partir de leis: “as leis da natureza, como nós as interpretamos, são um produto da nossa necessidade psicológica de orientar-se na natureza, de não assumir uma posição de estranheza e de desordem frente aos seus processos” (MACH, 2017, p. 444). Consistem, portanto, em
uma série de teoremas prontos para a aplicação, escolhidos em conformidade com esse uso. A ciência pode ser concebida como uma espécie de coleção de ferramentas para integrar mentalmente os fatos parcialmente disponíveis e para restringir o mais possível a nossa expectativa em casos futuros (MACH, 2017, p. 446).
A lei advém, pois, de uma necessidade de previsão, de controle do futuro, de antecipação de fenômenos. Para Mach, com o auxílio da lei o homem está apto a prever o futuro (MACH, 2010, p. 167). Ela é antes uma necessidade humana e não um dado epistemológico. O objetivo da ciência é fazer o pensamento reproduzir conceitualmente os fatos sensíveis e a lei é precisamente o meio que facilita essa reprodução. Daí ele dizer que a ciência é uma ferramenta do ser humano. Diz ele: “a missão biológica da ciência é proporcionar o mais completo desenvolvimento individual do ser humano com os meios, os mais perfeitos possíveis, para orientá-lo” (MACH, 1886, p. 37 apud FULGÊNCIO, 2016, p. 72).
“É pelo esforço dirigido a uma adaptação vantajosa às condições de vida, e não através do conhecimento puro e completo com finalidade em si, que se constituem as representações e os conceitos que o homem comum forma do mundo e que se impõem a ele” (MACH, 1986, p. 31 apud FULGÊNCIO, 2016, p. 80). Ou seja, ao homem é impossível apreender a totalidade da natureza, menos ainda a sua reprodução. Seu olhar já colhe do mundo aquilo que lhe é importante, que lhe atenda ou pressupõe atender a um interesse prático, que o torne mais ágil na sua ação sobre o mundo.
A memória humana não retém todos os diversos acontecimentos do mundo. Então, a lei faz como que um alargamento da memória, que é ajudada pelos constantes conservadas por escrito. Auxílio biológico do indivíduo, a lei é um artifício a ele necessário, mas na realidade uma redução do mundo: “uma lei contém sempre menos que o próprio fato; porque só reproduz os seus aspectos principais, abstendo-se da enumeração completa, seja de propósito, seja por necessidade das coisas” (MACH, 2010, p. 182).
Uma lei obtida pela observação factual não pode abarcar o fato inteiro na sua infinita riqueza, na sua inesaurível complexidade, nos dando somente um esboço, colocando unilateralmente em evidência um aspecto importante para o objetivo técnico ou científico que se tem em vista (MACH, 1977, p. 102 apud SIGISMONDI, 2002, p. 46).
Na enunciação de uma lei sempre há aspectos, características, propriedades sacrificadas em razão da necessidade do homem de ciência.
A lei não pode conter senão a noção sintética e condensada de um fato; além disso, essa contém sempre menos do fato mesmo, porque só reproduz os aspectos principais abstendo-se da enunciação completa, seja de propósito, seja pela necessidade das coisas (MACH, 2010, p. 182, tradução nossa).
O cientista tira dos acontecimentos apenas aquilo que lhe interessa, aquilo que é importante para as suas ideias, o que torna toda e qualquer representação uma simplificação, um arremedo da natureza. Fecha-se os olhos para a inexaurável multiplicidade da vida, oferendo não mais que um esboço da natureza, ou da vida, onde o que se destaca é o que está a serviço da conveniência humana. E é por isso que quanto mais rapidamente o cientista chega a suas metas e ambições a partir de uma hipótese ou teoria, mais ele tende pra afirmar e defender a veracidade desta tese.
Ora, se, como já foi dito, não há invariância na natureza, não se poderia falar em lei ou leis naturais seriam antes um contradictio in adjecto. Afirma Mach: “é impossível que uma lei adquirida pela observação direta abarque o conjunto do fato na sua riqueza infinita e na sua inesgotável complexidade” (1919, p. 78). Toda lei nada mais seria que uma redução e uma abstração dos fenômenos.
uma lei consiste sempre em uma limitação da possibilidade, seja que se a considere como delimitação do agir, seja como guia invariável dos acontecimentos naturais, seja como indicador para as ideias e para os pensamentos que integram o acontecimento, antecipando-o (MACH, 2017, p. 442).
Portanto, a enunciação de uma lei e dos conceitos a ela correlatos que instrumentalizam a ciência clássica, não passam de idealizações, nada mais que uma descrição econômica que se volta para as características e conexões estáveis (ou aparentemente ao espírito estáveis) dos fatos e, por isso, “os defeitos da nossa previsão são sempre notáveis” (MACH, 2010, p. 167).
A vida só pode ser compreendida como suficientemente uniforme porque o pensamento humano precisa se adaptar ao meio ambiente que o cerca. Ou melhor dito, só há sentido falar em lei para contentar as ambições humanas de domínio da natureza, suas expectativas de previsão e controle do mundo que o cerca. Se, por vezes algumas leis parecem reais e mesmo incotestáveis, é porque a mudança da natureza é tão sutil e o intervalo da história do conhecimento tão pequeno que tudo parace igual ao que era precedentemente. É nessa ilusão de imobilidade e permanência que se construiu a história da ciência. Afirma Mach: “todas os conceitos e leis gerais da física, o conceito de raio, de leis diótricas, a lei de Mariotte, etc, são obtidas mediante idealização” (MACH, 2017, p. 226).
5.4 substância
Assim como o conceito de causalidade é uma exigência da vida humana, da mesma forma o conceito de substância, tão fundamental na metafísica clássica, também o é. “Substância é fenômeno possível, uma palavra cômoda para uma lacuna em nosso pensamento” (MACH, 2014, p. 62), um meio do homem poder dominar os fenômenos que a ele se apresentam, estruturando e sistematizando a experiência.
A crítica machiana ao conceito de realidade ontológica ou substância no sentido metafísico refere-se exatamente à ideia de uma individualidade espaço-temporal sempre idêntica a si mesma. Para Mach, tal ideia provém quando se retém um certo evento ou fato constituído por características conectadas entre si que dão a impressão de estabilidade. Diz ele: “Procurei esclarecer como a estabilidade constante das conexões entre sensações diversas tenha levado à hipótese de uma estabilidade absoluta que é chamada de substância” (MACH, 1983, p. 217 apud SIGISMONDI, 2002, p. 42).
Mas o fato é que não há no mundo das sensações nenhuma impressão que corresponda a este conceito. O núcleo do conceito de substância reside na constância das relações, aquilo que subsiste incondicionalmente. Ora, um subsistir incondicionalmente não existe. Todos os casos constatados de subsistência são subsistência de relações, conexões provisórias de elementos. Ou seja, o conceito de substância não exprime algo de permanente na realidade, isto é, algo de propriamente substancial. Se se pode falar em permanência, é tão somente permanência de um grupo de dependências funcionais, de relações e não de uma unidade individuada.
A própria ideia de coisa é uma abstração, um símbolo para um complexo relativamente estável aos olhos do homem. Em consequência, tal conceito é um autoengano, um modo de ver a natureza economicamente e pronta para os seus usos e benefícios. As sinteses que envolvem um complexo de elementos em um único objeto não passam de pura comodidade: “cada conexão estável é somente o produto de uma operação intelectual de caráter econômico, fundada sob a abstração e sob seleções generalizantes, de modo que a persistência é uma característica condicionada e mediada pelos interesses intelectuais e não uma propriedade ontológica da realidade” (SIGISMONDI, 2002, p. 43). São as conexões constantes que servem de base para a ideia de uma constância absoluta ou substância. (MACH, 2017, p. 293).
A linguagem, o intelecto, ao se fixarem no que é importante e deixando de lado o que lhe é indiferente, compõem como que um mosaico, uma imagem estável da fugaz realidade do mundo (MACH, 2010, p. 180). Diz Mach: “todos os nossos esforços para espelhar o universo no nosso intelecto seriam vãos se não nos fosse dado descobrir na múltipla variação algo de constante. E daí deriva o nosso esforço para produzir o conceito de substância” (2010, p. 186).
“Representamos um corpo separado do ambiente variável em que ele se move, isto é, isolamos da massa flutuante das sensações um grupo de sensações relativamente mais constantes, às quais o nosso pensamento adere mais fortemente. Mas a inalterabilidade desse grupo não é absoluta” (MACH, 2010, p. 186). Em consequencia, o conceito se substância sempre se mostrará insuficiente – sempre se sacrifica alguma coisa de sua inteireza de acordo com o que a necessidade exige (MACH, 2010, p. 189-190).
Mach é muito claro quanto ao processo de conhecimento, que é sempre um processo de abstração e redução do mundo. Enquanto a percepção nos traria uma variedade quase que infinita de impressões, as representações que fazemos do mundo se limita a conceitos e teorias que perdem exatamente essa exuberância e essa variação, sendo, portanto, sempre uma limitação que não corresponde à totalidade do que é representado. Nada na natureza é invariável; ao extrair-se elementos que se destacam e que podem dar a ideia de estabilidade, um complexo variado de elementos é abstraído.
Daí que a ideia de singularidade é sempre mal vista. A lei cumpre a tarefa de espalhar a mesma cognição para eventos singulares. Se são dadas certas condições, a expectativa é regulada e restrita entre limites das leis, substituindo um esquema menor por um outro mais vasto. E é por isso que o que se pensa ser potência da ciência nada mais é do que simplificação e limitação.
Porque a vida, na sua complexidade, apresenta a cada instante um número incalculável de fatos concretos e cada fato concreto, por sua vez, possui uma multiplicidade inexaurível de detalhes, todos eles diversos entre si. E é essa multiplicidade irredutível que não pode ser abarcada pelo processo da memória e da razão. Não há como abarcar e conservar a totalidade da experiência e, por isso, o proceso de conhecimento e sua comunicação ao outro é sempre uma redução, um recorte e uma diminuição e “o imperfeito conceito de substância… se demonstra sempre insuficiente” (MACH, 2010, p. 188).
6 A autoadulação do sujeito
A inteligência se habituou a operar a serviço da vida prática, eliminando o que há de vivo e fluido, o que há de múltiplo e criador. Ao contrário, o rigor e a admiração que as construções intelectuais recebem residem na adesão imediata, sem esforço, que o homem comum lhe devota. Em realidade, toda prática intelectual é uma prática de contentamento do e para o próprio homem. Em uma palavra, uma autoadulação.
Sendo esquemática, simbólica e artificial, essa forma de saber sempre fracassará. Por mais confiante que esteja o homem diante de suas verdades, cedo ou tarde ele terá que admitir sua impotência e seu fracasso, porque a realidade é, antes de tudo, mobilidade. “Não existem coisas feitas, mas apenas coisas que se fazem, nada de estados que se mantêm, mas apenas estados que mudam. O repouso nunca é mais do que aparente, ou antes, relativo… Toda realidade é, portanto, tendência, se conviermos em chamar tendência uma mudança de direção em estado nascente” (BERGSON, 2006e, p. 218-219).
7 Violentar o espírito
A questão é que todo conhecimento é sempre um ponto de vista do finito, o que nada mais é do que uma ilusão. Como diz Paul Klee, “em todo o universo, o que se dá é o movimento. O repouso que tem lugar na Terra não passa de um entrave ocasional da matéria. Considerar essa estaticidade como um estado primordial é um engano” (KLEE, 2001, p. 46). Se abandonarmos as estruturas finitas e nos encaminharmos para o infinito, perdemos o determinismo, a previsibilidade, os fins, a funcionalidade, que são o apoio do homem do conhecimento. A grande tarefa do filósofo do futuro é se manter de pé sem esse apoio (NIETZSCHE, 1984, 120, p. 62), mesmo porque o apoio não se sustenta, ele acaba por ruir por si mesmo.
Em razão do fracasso das ciências positivas, faz-se necessário violentar o espírito, tirá-lo da comodidade de seus interesses a fim de apreender a realidade em sua natureza original. Bergson diz que a filosofia é um esforço para ultrapassar a condição humana (2006e, p. 225), porque a condição humana é a condição do entendimento, dos conceitos fixos, que tudo transforma em imobilidade. Somente escapando dos seus hábitos, seus limites e necessidades o homem conseguirá produzir um conhecimento autêntico da vida e não um arremedo dissimulado e disfarçado de autêntico. Porque esse arranjo não se impõe ao sujeito, mas antes, dele provém. Ele não é uma naturalidade, mas é construído pelo sujeito.
A representação mecanicista restringe a atividade total da vida à forma de certa atividade humana, que não passa de uma manifestação parcial e local, resíduo da operação vital (BERGSON, 1979, p. 9). Assim, permanecendo sempre encerrado em si, o homem não tem clareza do que se passa na natureza e, por isso, pensar é um esforço: esforço de abandono da condição orgânicas, das exigências fundamentais que o caracteriza e esforço de dilatação para compreender o que contraria as suas próprias regras e critérios intelectuais.
Os esquemas demasiadamente estreitos e rígidos da inteligência fatalmente redundam em contradições com as quais o sujeito não consegue lidar. Humilhada diante do incognoscível, a orgulhosa inteligência experimenta a sua impotência. A modernidade é o século da autonomia do homem, mas se este permanecer encerrado nele mesmo, não poderá jamais pensar.
Muitas coisas escapam ao nosso olhar. Como diz Nietzsche, vivemos graças ao caráter superficial do nosso intelecto, numa ilusão perpetua (1984, 51, p. 35). O processo do conhecimento seria um esforço de atenção ao sujeito e não um encontro com a natureza das coisas. No processo de abstração próprio da razão há um afastamento do real e uma aproximação de uma generalidade que só existe na mente e na linguagem. Ele serve ao indivíduo humano, mas dista da essência da vida. Vivendo no domínio do intelecto, vive-se numa eterna ilusão. Para se chegar à libertação progressiva do que é demasiado antropomórfico, para ser receptivo a isso, é preciso ter conhecido com clareza a insuficiência da vida intelectiva e ter compreendido que a vida transborda a inteligência.
Poder-se-ia objetar que o homem não tem como ultrapassar a inteligência, dado que é com ela e através dela que se considera todas as formas da consciência. Ocorre que em volta do nosso pensamento conceitual e lógico, resta “uma nebulosidade vaga, feita da mesma substância e às custas da qual se constitui o núcleo luminoso a que chamamos inteligência. Nessa franja residem certas potências complementares do entendimento, potências das quais temos apenas um sentimento confuso quando permanecemos encerrados em nós” (BERGSON, 1979, p. 10).
É necessário uma teoria crítica do conhecimento e não uma aceitação passiva dos conceitos que o entendimento põe à disposição do homem.
8 O princípio econômico
A atividade intelectual é ingênua e pronta a confiar, mas o intelecto tem meios limitados para espelhar em si a vida multiforme do universo, então, “preferimos a interpretação que nos leva ao menor esforço psíquico” (MACH, 2017, p. 225). Dá-se uma adaptacão mental do cientista ao processo dinâmico dos fenômenos e estes acabam por se organizar como os nossos pensamentos. “Se acredita que o próprio fenômeno deva organizar-se segundo o nosso pensamento” (MACH, 2010, p. 167).
Tudo isso ocorre porque a ciência tem uma ambição muito maior do que produzir conhecimento: ela quer assegurar a paz, a felicidade e o apaziguamento. Para cumprir essa tarefa, a diversidade da vida, sua exuberância criativa, suas expressões sempre furtivas à identidade revelam-se um impedimento. Não é por outra razão senão por essa que Mach afirma que a ciência é a inimiga natural do maravilhoso (2010, p. 169).
Não se trata de desprezar ou diminuir a ciência ou a inteligência. Elas cumprem a função a que se pretendem. Trata-se sim de dizer que ao lado delas, outra faculdade e outro modo de pensar podem levar o homem a pensar, a compreender o funcionamento da natureza, a simpatizar com a vida, para além de seus interesses utilitários e diminutivos.
Por que é tão difícil chegar a uma nova metafísica? Pelo Princípio econômico, diz Mach, próprio da evolução da vida e que estaria presente no modo mesmo do fazer científico. De acordo com a Teoria da Evolução, as propriedades e reações dos seres vivos partem de uma adaptação seletiva aos processos do mundo circundante. Esta adaptação ocorre de modo contínuo e econômico. Ou seja, quando aparecem novas condições de vida as propriedades não são expulsas e substituídas por outras, mas de modo econômico, só se muda o que é estreitamente necessário. Do ponto de vista da biologia, o homem necessita tornar o seu passado compreensível com a finalidade de dominar os fatos futuros, o que seria crucial na luta pela existência. Essa exigência tão primitiva teria se desdobrado no próprio agir científico, o que torna também a ciência um fenômeno de adaptação econômica.
O pensamento científico incorporou os fundamentos da Teoria da evolução e por isso nas exposições científicas pode-se observar que as novas relações observadas se reduzem a relações já antigas e conhecidas, realizando assim, o cientista, o mínimo de esforço para pensar. Assim como a adaptação biológica produz modificações graduais e contínuas transformando só o indispensável, também a ciência transforma com o mínimo de esforço, o menor que pode das próprias representações (SIGISMONDI, 2002, p. 23). E mais: quanto mais tais operações forem familiares e quanto mais forem simples, e quanto menor for a necessidade de ulteriores explicações, tanto mais o cientista ficará satisfeito com suas ideias.
Mach compreende que a vida da consciência, tem na sua própria origem a função de um instrumento econômico, o que quer dizer que ela reage do mesmo modo a um grupo inteiro de fatos, elaborando uma única representação para vários acontecimentos e assim torna o mundo externo uma esfera limitada e de poucas direções. Uma vez adquirida certa bagagem de representação, se lhe apresentam fatos novos ela não elabora novas representações, mas sim adapta as antigas às novas tarefas. Qualquer transformação só aparece a custa de um mínimo dispêndio, sempre tendo como referência o pensamento originário, modificando minimamente o necessário para responder às novas exigências. Portanto, ao representar os fatos da natureza o cientista opera por um Princípio Econômico, uma vez que o espírito humano experimenta um certo alívio diante do já conhecido. Mas ainda, quando o novo e o desconhecido acabam por ser reconhecidos em antigos parâmetros. Em consequência, pode-se afirmar que o objetivo da ciência, a própria formulação de hipóteses, acaba por não ter como objetivo a produção do novo, mas sim o reconhecimento do novo como formado pelos mesmos elementos já fixados em nossas representações, de modo a assegurar sua continuidade nas representações intelectuais do homem e o seu consequente contentamento íntimo.
Ao se relacionar com o ambiente o homem necessita fazer uma imagem do mundo, mas essa imagem precisa atender aos interesses da sua conservação. Ou seja, as representações se adaptam às necessidades do homem e mesmo os cálculos devem corresponder a essa necessidade. Caso haja uma incompatibilidade entre circunstâncias e interesse é preciso encontrar um meio, forjar um modo das circunstâncias coincidirem com o interesse. Em outras palavras, o interesse induz o cientista a corrigir os diversos resultados até atingir o melhor equilíbrio da ação.
“Este objetivo, de obter com o mínimo esforço uma visão geral das coisas e de reproduzir com um processo mental todos os fatos, pode ser dito um objetivo econômico” (MACH, 2010, p. 122). Mach dá o exemplo da propagação da luz: a luz em linha reta encontra como obstáculo a refração e a defração. O homem da ciência acredita superar esse obstáculo conhecendo um expoente da refração. Assim que compreende que a luz acrescida à luz aumenta o brilho, encontra um caso em que o contrário acontece. “Enfim, na imensa variedade de fenômenos luminosos, reconhecemos o fato universal da peridicidade da luz em relação ao espaço e ao tempo e a sua velocidade de propagação dependente da matéria e do período” (MACH, 2010, 182). Ou seja, domina-se um campo de conhecimento com um mínimo dispêndio, com um mínimo esforço de se desvencilhar e ultrapassar os hábitos mentais cuja representação são perfeitamente adptados ao homem.
Eis o objetivo econômico: uma representação importante para o homem é estendida para outros fatos e outros objetos que possuem propriedades completamente diversas. Ou seja, mantém-se uma representação intelectual enquanto é possível, de modo a conservá-la ou fazê-la variar o mínimo que se possa, porque o homem tem a faculdade de adaptar as ideias preexistentes a novas observações (MACH, 2010, p. 173).
Tudo isso está ligado à necessidade de permanência, já que o pensamento tenta se aferrar às representações que podem ser fixadas de modo amplo, que são adaptadas à cognição dos fatos com um mínimo de modificação. Eis o que Mach denomina Princípio de constância ou de continuidade: “se o intelecto adquiriu, através da adaptação, o hábito de ligar duas coisas A e B, ele buscará consolidar esse hábito e isso lhe será possível, mesmo em circunstâncias ligeiramente modificadas” (MACH, 1920, p. 78 apud SIGISMONDI, 2002, p. 23-23).
É o que Mach quer dizer quando afirma que cada desenvolvimento de um pensamento científico é, por sua vez, econômico, admitindo tão somente diferenças suficientes. Será suficiente toda adaptação que permitir reproduzir e antecipar o fato, isto é, que não esteja em contradição com as intenções do pensamento e com os fatos que a este se refere.
Assim, o novo nunca aparece como efetivamente um fato novo, mas como já familiar, um novo familiar – o que por si só já seria motivo para risos. Em consequência, se o discurso científico é produto dessa adaptação, nada é univocamente determinado e falar em verdade, como determinação unívoca fundada em uma objetiva necessidade, não faz mais sentido. Uma verdade em sentido próprio não existe, mas apenas uma convenção prática, favorável à conservação. Eis sua interpretação cética, seu voto de desconfiança contra a realidade na qual vivemos e da qual pensamos. Além disso, quando se está muito aferrado a uma hipótese e não se está disposto a abandoná-la, mesmo diante de dados que a fariam cair por terra, mesmo a teoria mais fecunda pode se tornar um obstáculo para a pesquisa e isso efetivamente teria acontecido diversas vezes na história da ciência.
10 Conclusão – Por uma nova ciência e uma nova metafísica
O dogmatismo positivista parece ser a condição mesma do espírito científico, mas na realidade ele o mata, porque o condena a ser nada mais do que uma quimera. Produto da evolução da espécie humana, necessária à sua auto-conservação, alinhada aos seus interesses, seguindo os pressupostos de um princípio econômico, a ciência na sua expressão comum deixa escapar a compreensão da natureza. Somente uma nova inspiração metafísica, que ultrapasse os interesses humanos, que faça o homem ir ao encontro das potências complementares do seu pensamento, que o leve a pensar a vida em sua perspectiva dinâmica e diversa, pode oferecer os meios de reformulação da ciência, tirando-a da condição ficcional em que ela se encontra.
Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002.BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. O possível e o real. In ______. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. A intuição filosófica. In ______. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. A percepção da mudança. In ______. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. Introdução à metafísica. In ______. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. A evolução criadora. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
CHÂTELET, François. Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
DELEUZE, Gilles. Hume In ______. A Ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
FULGÊNCIO, Leopoldo. Freud e Mach: paráfrases e influências. São Paulo: Concern;Fapesp, 2016.
HEIDEGGER, Martin. O que quer dizer pensar? . In ______. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. São Paulo: UNESP, 2001.
KANT, Emauel. Princípios metafísicos da ciência da natureza. Lisboa: Edições 70, 1990.
______. A crítica da razão pura. In ______. Os pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.
KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento cientifico. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
MACH, Ernst. Conoscenza e errore: abbozzi per una psicologia della ricerca. Milano: MImesis, 2017.
______. História e raízes do princípio de conservação de energia. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014.
______. The analysis of sensations, and the relation of the physical to the psychical. Chicago, London: The Open Court, 1919.
______. The Science of Mechanics: a critical and historical Account of its development. Chicago, London: The Open Court, 1919.
______. L’evoluzione della scienza: nove ‘lezione popolari’. Milano: Melquíades, 2010.
______. La meccanica nel suo sviluppo storico-critico. Torino: Boringhieri, 1977.
MUSIL, Robert. Sulle teorie di Mach. 6. ed. MIlano: Adelphi Edizione, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich. O último filósofo in O livro do filósofo. Porto: Editora Rés, 1984.
______. A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
PRIGOGINE, Ilya e STENGERS, Isabelle. A nova aliança. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1984.
SIGISMONDI, Renato. La teoria della conoscenza di Ernst Mach. s/l: Tabula Fati, 2002.