Editorial: O nascimento do mundo
Todas as civilizações, algumas antigas de mais de 40 séculos, produziram uma história do nascimento do mundo. Cada uma delas constituiu a base para instaurar as diversas religiões.
Nas últimas décadas, pensadores de diversas áreas têm se dedicado ao estudo comparativo dessas versões reconhecendo que esses mitos de criação possuem, de uma maneira intrigante, uma estranha semelhança com os cenários de descrição das origens de nosso universo como propostos nos tempos atuais pelos cientistas.
O exame desses mitos cosmogônicos ganhou notoriedade graças a uma celebre reunião ocorrida em outubro de 1957 em Paris, onde antropólogos, historiadores e filósofos debateram esses mitos com os quais as diferentes civilizações representavam as origens do mundo.
O interesse comum entre pensadores de áreas tão distintas se deveu à análise desses diversos mitos de criação, que conduziu ao reconhecimento de que eles possuem aspectos repetidos e extremamente semelhantes, mesmo tendo sido produzidos por civilizações tão afastadas no espaço e no tempo como os antigos egípcios, sumérios, hititas, Canaã, Israel, Islã, turcos e mongóis, a Pérsia pré-islâmica, o Tibete, a América do Norte e do Sul, assim como em outros territórios.
Na última semana de agosto, no Rio de Janeiro, físicos, cosmólogos, antropólogos, filósofos, mitólogos e psicanalistas se reuniram para examinar, à luz do conhecimento atual dessas áreas, essa mesma questão. A grande novidade e que distingue a reunião ocorrida em Paris em 1957 da recente no Rio em 2013 foi a participação ativa de físicos e cosmólogos.
A entrada de cosmólogos naquele grupo para examinar as ideias que os homens construíram sobre as origens do mundo decorre do avanço de nosso conhecimento sobre o Universo realizado nessas ultimas décadas.
Uma análise mesmo que superficial daqueles mitos permite estabelecer uma surpreendente analogia com os dois principais cenários que a ciência moderna elaborou, isto é, o chamado big-bang e o universo eterno dinâmico. No primeiro, bastante popular na mídia, o universo teria começado a sua expansão como uma explosão singular, seu volume espacial total variaria com o tempo cósmico e teria tido o valor zero a um tempo finito de nós; no segundo cenário, o universo teria tido uma fase colapsante inicial na qual seu volume total diminuiria com o passar do tempo, teria atingido seu valor mínimo, mas diferente de zero, e ingressado a seguir na atual fase expansionista. Enquanto a origem no ponto singular estaria completamente fora de qualquer análise racional, no cenário do universo eterno a questão do início estaria remetida a um tempo onde, e por razões que a ciência pode fornecer relacionadas à instabilidade do vazio, teria se precipitado naquele colapso.
Os cientistas podem assim responder à questão dos filósofos “por que existe alguma coisa ao invés de nada?” apresentando suas ideias atuais sobre a origem do universo através de uma sentença provocativamente elaborada no “modo antigo” afirmando que Deus não é capaz de produzir um vazio (de matéria e de espaço e tempo) estável. Isto é, o mundo existe graças à ineficácia do demiurgo.
Como é possível compreender essas semelhanças dos diversos mitos de criação explicitada na recente reunião do Rio? Como conciliar os mitos de criação em Hesíodo; a evolução das múltiplas faces de Exu no Candomblé e sua povoação do mundo; a formação da estrutura a partir do tempo mítico; a declaração dos mitos indígenas do Alto Xingu; a tentativa de identificar os mecanismos de construção subjetiva da representação do mundo; tudo isso associado intimamente com a Cosmologia contemporânea?
Todas essas análises, que para um observador externo (àquela reunião) pareceriam independentes e sem ponto de contato, resultaram em falar da mesma coisa. Alguns atribuem essa semelhança a uma consequência do inconsciente coletivo, como sugeriu o psicanalista Carl Jung; outros sustentam que sua origem estaria ligada ou à estrutura do pensamento lógico ou a uma forma universal de introversão da realidade externa; enquanto outros ainda consideram essa igual aparência uma prova da unidade do funcionamento orgânico do cérebro da espécie humana.
Dessa reunião pode-se concluir que o encontro da Cosmologia com esses outros saberes está provocando um novo diálogo com a natureza. E tudo leva a crer que é desse diálogo que os mitos de criação tratam.
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Participaram dessa reunião no Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA/CBPF) como palestrantes convidados: Benilton Bezerra, Isabela Fernandes, Peter Perlbart, José Martins Salim, Edgar Barbosa, Marina Vanzolini, Ricardo Kubrusly, Luis Alberto Oliveira, Gustavo Romero e Mário Novello.
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Mário Novello é cosmólogo do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA) do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).