É necessário, o impossível
Só vejo o devir. Não vos deixeis enganar! É à vossa vista curta e não à essência das coisas que se deve o fato de julgardes encontrar terra firme no mar do devir.
Heráclito
No texto A Educação após Auschwitz 1, Theodor Adorno escreve: “Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa exigência: que Auschwitz não se repita”.
A educação é sem dúvida um dos campos mais problemáticos da sociedade. Entretanto, desde seu surgimento como instrução pública, a maneira de formular o problema da Educação não tem variado muito nas sociedades consideradas mais desenvolvidas.
Recentemente, no ano 2000, os 164 países que compunham a Cúpula de Educação Mundial, dentre os quais o Brasil, reuniram-se em Dakar, no Senegal, para definir as metas globais para a Educação pelos 15 anos seguintes. As seis metas diziam respeito à expansão da educação infantil, universalização da educação primária, maior acesso de jovens e adultos à aprendizagem, redução dos índices de analfabetismo, paridade de gênero desde a educação primária até o ensino médio e melhoria da qualidade de educação com resultados mensuráveis. Em 2015, a Cúpula reuniu-se novamente, desta vez na Coréia do Sul, para firmar praticamente o mesmo compromisso para o próximo período de 15 anos, com destaque para o investimento em Educação, já que o financiamento apareceu como a questão-chave para que os países cumprissem as metas, mas não havia sido especificado na reunião anterior.
Parece ser um consenso pouco discutível que a universalização e o aumento de eficiência sejam os objetivos a serem atingidos por um sistema de educação baseado na instrução. O que pode essa educação, entretanto, não é uma questão que se coloca, mas que parece urgente diante da exigência de Adorno, e que reformulo: que Auschwitz pare de se repetir. Que deixe de ter sua condição de possibilidade renovada cotidianamente.
Explorar a concepção de aprendizagem que fundamenta a educação que desejamos e nos esforçamos por implementar universalmente pode ajudar a construir o problema: o que pode a educação?
Apesar de nossos sistemas de educação privilegiarem a instrução como modo de interação educativa, existe uma perspectiva segundo a qual a aprendizagem dos seres vivos é concebida de tal maneira que não pode ser atingida mediante a instrução. Essa perspectiva é desenvolvida, por exemplo, pelo biólogo Humberto Maturana, para quem a aprendizagem consiste em uma deriva ontogênica. A aprendizagem como deriva ontogênica ocorre quando sucedem transformações em um organismo como resultado de suas interações em um meio: “Digo que há aprendizagem quando a conduta de um organismo varia durante sua ontogenia de maneira congruente com as variações do meio e o faz seguindo um curso contingente a suas interações nesse meio.”. Assim, a aprendizagem é compreendida como um curso de mudanças estruturais do organismo em congruência com as mudanças estruturais do meio, “[…] como resultado da recíproca seleção estrutural que se produz entre aquele e este durante a recorrência de suas interações” 2. Seleção estrutural recíproca é um tipo de interação fundamentalmente distinto da interação do tipo instrutiva, descrita por Maturana como aquela em que uma mudança estrutural é especificada em um organismo por um agente externo.
À medida que a aprendizagem ou deriva ontogênica depende da capacidade que o organismo vivo tem de transformar-se no curso de suas interações, que desencadeiam nele mudanças especificadas por sua própria estrutura, é possível dizer que ela depende, como diria Baruch de Spinoza, de sua capacidade de ser afetado. Se a aprendizagem é ontogênese, uma maior amplitude afetiva corresponde a uma maior efetuação do grau de potência autopoiética do organismo, que não pode ser promovida mediante a interação instrutiva.
Para Spinoza, cada coisa que existe é um modo de ser, definido pelo seu grau de potência. Esse grau de potência é uma certa amplitude dentro da qual a potência desse modo de ser pode variar. Assim, um ser pode ter a sua potência aumentada ou diminuída em função de suas interações, com aquelas que favorecem sua ontogênese aumentando o seu grau de potência, e as que desencadeiam uma decomposição de sua estrutura diminuindo sua potência, ou ainda com interações que destroem a organização dos elementos que o compõem, desintegrando-o.
Um leão, por exemplo, quando confinado em uma jaula no zoológico, está em um meio que não possibilita interações que lhe permitam efetuar o seu grau específico de potência, ou percorrer sua amplitude específica, e que o mantém, portanto, em um baixo grau de efetuação de sua existência de leão.
No entanto, o que a educação universal, fundamentada na instrução, anuncia, e o motivo pelo qual nós a desejamos e a reivindicamos como um direito, é que ela pode contribuir para o nosso desenvolvimento como indivíduos, como sociedade e como espécie. Um dos índices de desenvolvimento humano, inclusive, é a educação, medida pelo número de anos de escolarização das populações.
Qual é o resultado dessa educação, nesse caso, se não é o preenchimento de nossa potência específica? Considerando o modo de interação privilegiado nas relações educativas, que é a instrução, a consequência de sua aplicação não é a potencialização da vida, mas a especificação de um funcionamento. Que tudo funcione bem, que sejamos capazes de prever com boas chances de acerto o que vai nos acontecer, que sejamos capazes de evitar conflitos, esses são nossos desejos como indivíduos e como sociedade. A ameaça que representam para nós as interações não controladas é suficiente para que aceitemos de bom grado um tipo de interação que nos mantém estabilizados em um baixo grau de potência. Porque o funcionamento da sociedade que reflete o nosso modo de vida depende disso. No nosso caso, não é a jaula do zoológico que nos mantém em um baixo grau de potência, mas, à medida que a nossa autopoiese depende de nossa capacidade de sermos afetados e as interações que a favoreceriam nos parecem ameaçadoras, é por meio da diminuição de nossa capacidade afetiva que é possível mantermos nosso grau de potência em níveis baixos o suficiente para que o controle e funcionamento sejam possíveis.
A diminuição de nossa capacidade afetiva é operada hoje não tanto pelas restrições que nos impomos. Não é preciso isolar o ser humano ou negar-lhe a possibilidade de interação com outros seres e com seu meio para blindá-lo afetivamente. Uma maneira de fazer isso mais ao gosto e às capacidades desta época é a funcionalização das relações, da qual a educação é apenas um exemplo. Em vez de negar a possibilidade de interações, investi-las de uma certa positividade através da funcionalização garante que não sejamos “incomodados” pelos riscos de uma interação afetiva mais intensa, que poderia perturbar a estabilidade de nossa organização social.
Nas sociedades modernas, quanto mais desenvolvidas e educadas as pessoas são, mais estão confinadas em funções e relacionam-se a partir desse lugar blindado ao afeto. Ninguém é considerado nascido, antes de ter um documento oficial atestando que existe. Um documento que, em geral, é estabelecido no hospital, onde procedimentos padronizados são aplicados a todos que ali estão, conforme as funções que ocupam: parturientes, bebês, pais ou acompanhantes, visitantes. Médicos obstetras, neonatologistas, intensivistas, enfermeiros, recepcionistas, seguranças, atendentes de café… cada um tem sua função, suas responsabilidades, seus limites de atuação e de interação bem definidos. “E não suba o sapateiro além da chinela.” Assim continuamos por toda a vida: o bebê passa à condição de filho, depois de aluno, estagiário, profissional, e, seja ele funcionário, empreendedor ou desempregado, está sempre definido por uma categoria ou função a partir da qual a maior parte de suas interações irá ocorrer. Para ser cuidado pela sociedade, será preciso comportar-se como usuário de serviços de saúde, aposentado, e sua passagem pela vida irá encerrar-se como começou: com um documento oficial atestando a morte. Todos nós conhecemos a utilidade desse modo de organização social. A questão não é se ele é bom, e sim que modo de existência ele nos proporciona.
Essa funcionalização que passa a determinar a qualidade das nossas relações facilita, obviamente, que a instrução se opere. É quase como se a redução do ser humano a identidades funcionais o “desespecificasse”, permitindo que ele se mantivesse existindo por uma ontogênese limitada por interações controladas, de maneira que passasse praticamente a depender, para agir, da instrução e do comando.
Desde muito cedo, através da educação que começa no círculo mais íntimo de cada um e que a escola se encarrega de continuar, não conseguimos estar diante de uma criança – bem definida por sua categoria de quem ainda não é e ainda não sabe – sem lhe instruir de várias formas, inclusive de muitas formas silenciosas, sobre o que ela deve fazer, como deve-se comportar, o que deve falar, o que é importante saber, o que deve pensar, como deve-se sentir, o que deve desejar, abafando suas forças vitais, ou sua autopoiese.
Um trecho de Nietzsche, em Aurora, aponta para o modo de produção desse tipo de subjetividade:
A esses jovens não falta caráter, nem talento, nem diligência: mas nunca lhes deixaram tempo para dar a si mesmos uma direção; pelo contrário, desde a infância foram habituados a receber uma direção. Quando estavam maduros o bastante foram utilizados, foram afastados de si mesmos, instruídos para serem usados cotidianamente, ensinados a enxergar nisso um dever – e agora não podem mais dispensar isso, e não querem que seja diferente. 3
Colocar o problema da educação nesses termos, perguntando o que ela pode e correndo o risco de responder que pode-nos tornar aptos ao comando e desejosos de nossa própria servidão, permite retomar o texto de Adorno e reconsiderar sua proposta de empreendimento antinazista:
Temo que será difícil evitar o reaparecimento de assassinos de gabinete, por mais abrangentes que sejam as medidas educacionais. Mas que haja pessoas que, em posições subalternas, enquanto serviçais, façam coisas que perpetuam sua própria servidão, tornando-as indignas; […] contra isto é possível empreender algo mediante a educação e o esclarecimento. 4
Pessoas em posições subalternas, capazes de perpetuar a própria servidão. Pessoas utilizáveis. O problema é que isso garante um funcionamento de que acreditamos depender para viver. O esclarecimento, nesse caso, pode servir para percebermos que esse funcionamento se confirma e, pior ainda: como podemos fazer isso funcionar. Através da produção, da reivindicação e da realização recorrente de encontros de baixa intensidade afetiva, podemos fazer esse modo de vida perpetuar-se. Mediante uma determinada potência e um determinado tipo de ontogênese, que é o que nos permitimos como sociedades produtoras de um certo tipo de desenvolvimento, podemos dar continuidade a esse modo de vida que é uma espécie de sobrevivência no limite.
Uma linha de fuga desse modo de vida, investido por uma positividade que faz com que perpetuemos nossa servidão, pode aparecer sob a forma de uma impotência. Como escreve Giorgio Agamben em seu texto
Sobre o que podemos não fazer: […] Impotência não significa aqui apenas ausência de potência, não poder fazer, mas também, e sobretudo, ‘poder não fazer’, poder não exercitar a própria potência. […] Enquanto o fogo pode apenas queimar e os outros viventes podem apenas a própria potência específica, podem somente este ou aquele comportamento inscrito na sua vocação biológica, o homem é o animal que pode a própria impotência.5
Agamben nota que os poderes separam o homem não apenas e nem tanto do que pode fazer, mas antes e acima de tudo daquilo que pode não fazer. Investidos dessa positividade, afirmamo-nos capazes de tudo, acreditamos que tudo nos é possível, sem nos darmos conta de que o homem está entregue, diz Agamben, “[…] de forma inaudita a forças e processos sobre os quais não tem qualquer controle. Ele se tornou cego não para suas capacidades, mas para suas incapacidades”.
Assim, ceder à impotência ou à constatação de que há coisas que são impossíveis para nós, talvez seja o gesto que pode nos devolver a consistência afetiva, e com ela a vitalidade. A desterritorialização de nosso próprio desejo, de nosso desejo de educação, de nosso desejo de emprego e uso, que são desejos próprios de um baixo grau de potência, a queda enfim em um não-lugar, pode ser o salto para fora desses lugares previstos para as nossas funções. A utopia me parece ser, aí, não mais uma utopia estatal que faz apelo a um melhor funcionamento da nossa organização social, mas uma utopia imanente, uma zona de instabilidade onde uma maior diferença de energia potencial causa uma perturbação na ordem dos fluxos e das interações. O impossível se revelaria, assim, uma espécie de nascente de novos possíveis. No limite deste mundo que conhecemos.
Em uma carta a Franz Overbeck, em abril de 1888, Nietzsche escreveu: “Sou apenas um filósofo, apenas uma pessoa na fímbria das coisas, resolutamente apenas na fímbria das coisas.” 6 Uma maneira de pensar a utopia talvez seja pensar esse limiar, a fímbria das coisas, em vez de pensá-la como a próxima terra firme que se deseja anunciar ou promover. Se a utopia é a fímbria das coisas, ela não está separada da vida, mas é sua própria essência, no sentido que Gilbert Simondon atribui a essa palavra:
O vivo vive no limite de si mesmo, sobre seu limite. A polaridade característica da vida está no nível da membrana; é neste terreno que a vida existe de maneira essencial, como um aspecto de uma tipologia dinâmica que mantém ela própria a metaestabilidade pela qual existe. Todo o conteúdo do espaço interior está topologicamente em contato com o conteúdo do espaço exterior sobre os limites do vivo; não há, com efeito, distância em topologia. 7
Os acontecimentos, assim, frequentam a superfície. É, portanto, na superfície que se pode não apenas encontrar a gênese de novos mundos, mas também reencontrar a gênese de possíveis no mundo. Nesse sentido é que a utopia pode ser vista como a essência das coisas. Como orla, dobra, inflexão. A máxima diferença de energia potencial. Uma defasagem. Um mapa de expansão. O espaço-tempo entre a desterritorialização e a reterritorialização. No limite, que somos deste mundo que sentimos acabar em nós, mundos nascentes. Mundos que não terminam nunca de nascer. Utopia como sentença de nascimento. “Uma voz vinda de outro lugar”, como diz Blanchot, que pergunta em plena angústia de não acabar de nascer: “onde é o começo?”
Por mais angustiante que seja habitar o nascimento que nunca termina, como pensar a utopia imanente senão nesse limiar? E para que serve pensar a utopia imanente, senão para reconhecê-la? De alguma maneira, reconhecer a utopia imanente é estender o olhar e o desejo para além da terra firme, e com isso, para além da vontade de controle. Não seria esse um modo antifascista de existir?
Isto para enfim recolocar a questão da educação nos seguintes termos: o não-lugar da educação não é ali mesmo onde ela coincide com a vida? Na desterritorialização da educação como instrução compulsória, não poderia se dar o reencontro com a vitalidade e com a ética? Mas até onde pode ir essa desterritorialização não depende tanto do esclarecimento como do aumento da nossa capacidade de sermos afetados. Se é verdade que são as forças da vida que estão sendo abafadas por essa realidade quase totalmente restrita ao seu estado formal, essas mesmas forças lançam-nos no estado de instabilidade e afetividade crescentes. De modo que não seja necessário saber, prever, planejar ou conduzir o processo de constituição da nova configuração que se seguiria à desconfiguração da educação. De modo que não seja necessário trabalharmos coletivamente na fundação de uma nova escola.
Seria talvez suficiente recuperarmos nossa capacidade de afeto, aumentando assim as ressonâncias ou a aprendizagem, entendida como recíprocas seleções estruturais que se produzem durante a recorrência de nossas interações – no sistema metaestável que é a vida. Tornarmo-nos nós mesmos um princípio de seleção, posicionados na superfície, no limiar da realidade, onde ela é menos estável, aptos a ressonâncias, que são mais exigentes do que a verdade. Já não se trata, neste lugar, de preparar as pessoas para o que quer que seja, mas sim oferecer-lhes o convívio com o contrário da decadência.
Para concluir, cito alguns trechos em que Nietzsche descreve o que seria o contrário de um decadente, o que tanto pode, como pode “não poder”, em conformidade com o que melhor convém à sua natureza:
Ele não encontra gosto a não ser no que lhe faz bem. O seu agrado, o seu prazer, cessa quando é ultrapassada a medida do suportável. Adivinha remédios contra o que lhe é prejudicial. De tudo o que ele vê ou escuta, ele sabe retirar uma soma conforme à sua natureza: ele é, ele mesmo, um princípio de seleção. Ele sabe terminar consigo mesmo, com os outros, ele sabe esquecer. Ele é forte o suficiente para tornar todas as coisas, necessariamente, a seu favor. 8