Duas culturas: o Renascimento e a sociedade do saber
Gostaria de falar aqui sobre perguntas que levantam muito interesse para nós hoje. Essas perguntas têm uma conexão com questões que também eram feitas no Renascimento. Penso que deveríamos discutir ou pensar qual é o fundamento para o nosso pensamento. Por que podemos argumentar de modo que uma argumentação, como aquela apresentada pelo colega, pode ser válida? Essa é uma questão que já havia sido colocada setecentos anos antes de Cristo. É uma questão fundamental para a nossa cultura. E penso que nossa cultura entre o séc. VII a.C. e hoje só discute as razões dessa pergunta. Em diferentes fases dessa história aconteceram mudanças fundamentais no modo de pensar de cada época. Mas em cada uma dessas épocas a questão central permaneceu a mesma: o que é saber? Mas o que deveria existir para que possamos dizer que uma argumentação pode ser provada? Nessa argumentação temos algo que podemos considerar como sendo o saber.
De acordo com os argumentos aqui expostos, podemos dizer que temos três fases bem distintas nas quais os homens aceitam como pressuposto que esse tipo de argumentação nessas épocas é válido. A primeira fase foi a Antiguidade. Na Antiguidade, discute-se o que é saber. Não se discute, porém, qual é o fundamento do saber. Discute-se somente a questão de o que pode existir como uma estrutura do pensamento para que se possa ter algo como o saber. Platão, Aristóteles, o ceticismo, o epicurismo e o estoicismo representam as cinco principais respostas para essa pergunta. E essas respostas são tão fundamentais, de modo que, de diferentes maneiras, aquelas reflexões permanecem válidas até hoje. A segunda fase é a Medievalidade. Na Idade Média, discute-se o problema relativo ao fundamento do saber. Pergunta-se que estrutura deveria existir para que se pudesse constituir um saber válido, para que se pudesse ter certeza quanto à validade desse saber. Para os medievais, essa estrutura é tal que o fundamento é diferente das coisas que são fundadas por esse mesmo fundamento. Os teólogos afirmam que esse fundamento é Deus; porque Deus criou o mundo, Deus é, por assim dizer, a razão do mundo, o fundamento racional para o mundo. E uma outra fase é a Idade Moderna. Nessa fase, afirma-se que o fundamento do saber não deveria ser diferente da situação ou da pessoa que possui esse saber. Essa posição aparece no conceito do sujeito formulado por Descartes.
Entre essas fases, que apresentam uma resposta estável para a pergunta o que é o saber e para qual é o fundamento do saber, há fases intermediárias, que podem ser chamadas fases pós-tradicionais. Nessas fases, o saber, o método, as normas e o pensamento em geral não têm estabilidade, pois surgem diferentes tentativas para responder às perguntas que haviam sido colocadas na fase tradicional anterior. Em consequência disso, essas fases pós-tradicionais são caracterizadas pela instabilidade e as respostas às perguntas da fase anterior são desconstruídas, destruídas. Aqui entre nós estão muitos pesquisadores que estudam o Renascimento. Eles sabem muito bem que nós não encontramos a mesma estrutura de argumentação em todos os autores do Renascimento. Tomemos o caso de Giordano Bruno. Ele não sabe exatamente qual é a razão ou onde se deve buscar a razão para a argumentação; se ela deve se basear na matemática ou na lógica, por exemplo. Na Idade Média existe uma estrutura tal como a simpatia, de acordo com a qual se diz que há interações entre substâncias que são idênticas. Uma argumentação desse tipo pode ser encontrada também em Newton. Ele se pergunta por que há contração entre massas? A razão para tal é que elas são semelhantes. Em seu livro sobre a Óptica, Newton diz que não sabe o que é a gravitação. Ele afirma que só há uma contração entre coisas e que nós deveríamos descrever a contração como uma ação de forças externas aos corpos. Esse tipo de relação simpática é uma alternativa para a causalidade. Compreende-se muito bem o que são essas relações pela leitura dos textos do Renascimento. Mas essa argumentação é muito diferente daquela que vai se encontrar na Idade Média. Na Idade Moderna só temos essas interpretações na teoria de Newton sobre o que é um fundamento ou uma razão para fazer uma argumentação sobre o que é o saber. Para o pensamento medieval, toda a argumentação baseia-se na ideia de que Deus faz todas as coisas, que em tudo há um telos e que nós deveríamos compreender o que são essas coisas e o que é esse telos. Somente sobre essa base pode ser pensada a fundamentação do saber verdadeiro na Idade Média. Mas, para a Idade Moderna, irá se argumentar que o fundamento do saber é uma estrutura que está dentro daquele que sabe, o sujeito. O sujeito é a questão discutida nos escritos de Descartes. De Descartes até Leibniz, o sujeito é somente uma estrutura lógica, que garante a fundamentação de um saber verdadeiro. Posteriormente, na fase do Iluminismo, pensadores como Herder, por exemplo, afirmam que um deveria ser um homem, que a estrutura lógica de Descartes deveria ser um homem ou uma história da humanidade. Essa é a estrutura fundamental que serve de garantia para uma argumentação verdadeira e que o saber é uma estrutura que fundamenta a si mesmo. Essa é a posição característica da Idade Moderna. E essa não é uma palavra acidental para a Idade Moderna. Toda argumentação é válida somente dentro desse contexto no qual um sujeito é compreendido como uma estrutura lógica para o saber que tem sua estrutura fundada naquele que pensa.
Em meu entender, desde o século XIX, Nietzsche e outros afirmam que é falso estruturar uma argumentação com base na ideia de sujeito. A partir de 1850, a discussão na cultura ocidental é que a argumentação e a fundamentação do saber não são uma estrutura como o sujeito. Esses anos representam o início de uma época pós-tradicional, como a época do Renascimento. No que diz respeito ao entendimento do que é saber, a época do Renascimento tem estruturas de argumentação muito semelhantes às estruturas de hoje.
Minha tese é que nós podemos parametrizar a evolução e a estrutura da cultura somente se levarmos em conta o conceito de saber. Uma época é caracterizada ou pode ser caraterizada de acordo com a compreensão que ela mesma tem do conceito de saber. Atualmente vivemos uma época na qual se realiza a destruição dessa estrutura do sujeito própria da Idade Moderna e podemos observar que existe uma estabilização de diferentes formas de fundamentação do conceito de saber. Isso está vinculado ao desenvolvimento da tecnologia da informação (TI). As tecnologias da informação têm a possibilidade e as estruturas para construir um saber sem sujeito. Só máquinas ou, mais exatamente, algoritmos, são estruturas que possuem saber. Hoje, realmente, o sujeito não é mais uma estrutura para a fundamentação do saber. Gostaria de mencionar alguns exemplos. Um deles é o big data. No conceito de big data existem estruturas tais como pequenos campos de saber muito diferentes e sem conexão e existem alguns algoritmos que conectam essas diferentes estruturas de modo que podemos compreender melhor as coisas que se encontram nos diferentes dados. Quando uso meu celular, por exemplo, os dados não estão em conexão com a minha pessoa. Mas quando sabemos que essa pessoa ou esse celular está no Rio, sabemos ao mesmo tempo que todas as informações desse celular são conhecidas. Assim, o big data pode correlacionar os mais diversos dados. Na primeira vez que usamos o celular esses dados não estão conectados, mas depois podemos obter informações sobre coisas como resultado de uma construção de diferentes funções. A consequência disso é que o big data, às vezes, tem um erro e, consequentemente, é que não deveríamos argumentar que as relações entre os dados do big data são uma causalidade, pois elas são somente correlações. Isso é muito diferente de uma estrutura. Se penso que o mundo é constituído de acordo com o princípio da causalidade, como quer a Idade Moderna, posso bater nessa mesa milhões de vezes e em todas as situações a mesa estará aqui. Mas se pensar em termos de correlações, eu posso fazer isso, mas depois de milhares de vezes a mesa não estará mais aqui. Ou seja, a minha interpretação do mundo é totalmente diferente. Agora, a fundamentação do saber está baseada nas tecnologias da informação. Um outro exemplo: na Wikipédia existem 108.000 artigos que não foram escritos por um ser humano. Todos esses artigos resultam da construção de diferentes tipos de argumentação. Se mencionamos no Google que há três assassinatos por dia no Rio de Janeiro, por exemplo, existem programas que podem informar esses IPs (Internet Protocols), que podem ser construídos a partir dos dados “Rio de Janeiro” e “assassinatos” e que não têm nenhuma relação com a realidade. E a diferença não pode ser entendida pelo sujeito que está sentado diante do computador. Na Internet existem outras estruturas para as coisas. A estrutura das tecnologias da informação é tal que hoje todas as situações da nossa vida são semelhantes às estruturas do saber. Elas são totalmente criadas a partir das estruturas das tecnologias da informação. A consequência disso é que no futuro deveríamos falar sobre coisas somente sob o aspecto que interpretamos o saber como saber das tecnologias da informação. Mas esse não é um saber como aquele dos tempos modernos. Desse modo, temos dois campos diferentes de saber: um campo de saber geral, no qual somente existem estruturas das tecnologias da informação, e um campo de saber pessoal, o saber que cada pessoa tem de acordo com a sua cultura. Esse saber pessoal é uma fração de diferentes tempos e diferentes campos objetivos do saber geral. E a função desse saber pessoal é tão somente de servir de orientação individual e não serve para construir um saber absoluto como nos tempos modernos.
Gostaria de finalizar destacando somente mais alguns aspectos. Acabo de escrever um livro (Wissen begreifen) com esses argumentos de modo a mostrar que deveríamos entender como conceitos, experiências e ações estão conectados e ações estão conectados na constituição de um campo no qual um indivíduo pode agir. Apresento uma argumentação que não é normativa, mas empírica. Para argumentar que a história tem estruturas que podem tornar possível a compreensão de como a própria história se desenvolve. E tento descrever detalhadamente como isso funciona de acordo com o método e a argumentação básica é de que existem formas de organização entre o sistema do saber no qual existem três subsistemas, como a experiência, o sentido e a ação. Esses sistemas estão intrinsecamente relacionados entre si e o desenvolvimento histórico é um sistema baseado numa teoria de atratores, como uma estrutura que se estabiliza nas fases tradicionais e que se corrompe nas fases pós-tradicionais.