Do rigor da ciência
…Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmesurados não foram satisfatórios e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Afeitas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o país não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas.
SUÁREZ MIRANDA, Viajes de varones prudentes, libro
cuarto, cap. XLV, Lérida, 1658.
A obra do escritor argentino Jorge Luís Borges é conhecida por seu diálogo com a filosofia e a metafísica, e pode ser caracterizada pelo modo como explorou o elemento ficcional e literário deste legado do pensamento humano. Borges inicia sua obra na poesia e nos ensaios, somente a partir destes e da escrita crítica é que o escritor desdobra e amplia o gênero adentrando o domínio da ficção. Sabe-se que este processo de contaminação se inicia com o texto “El acercamiento a Almotásim”, na coleção de ensaios História de la Eternidad de 1936, que logo será incluído no volume de contos El jardín de los senderos que se bifurcan ̧ em 1941, e Ficciones, a partir de 1944. Este pequeno texto finge ser resenha de um suposto romance policial oriental e foi escrito obedecendo as convenções da resenha como gênero crítico com tanta fidelidade que chegou a convencer vários leitores e estudiosos da existência verdadeira do mencionado romance apócrifo. O próprio Borges costumava dizer que seu primeiro conto que realizou foi “Pierre Menard, autor del Quijote”, mas sem dúvida já vinha escrevendo textos no gesto de apagar a fronteira clara entre ensaio e ficção. Assim, a inserção de títulos apócrifos nas ficções de Borges tornou-se um traço de identificação do projeto literário do escritor e esta meta-ficcionalidade se converteu em chave para a problematização representativa que a seguir encontrou sua ressonância nas teorias epistemológicas promovidas pelos teóricos pós-estruturalistas e pós-modernos. No conto privilegiado pela menção do escritor, “Pierre Menard, autor del Quijote”, lembramos que o tema aponta para uma identidade na semelhança além da imitação e do plágio uma vez que o autor personagem, Pierre Menard, não procura copiar o texto do clássico espanhol, mas antes cria na escrita de partes de um Quijote iguais ao do Cervantes e ao mesmo tempo infinitamente superior. Desta maneira a noção de origem é colocada em questão junto a conceitos derivados como originalidade e criação verdadeira. Borges sempre renunciava ao privilégio autoral em nome de um universalismo platónico segundo o qual nada se inventa e tudo se encontra e reencontra.
O fragmento que nos orienta neste comentário foi publicado pela primeira vez no jornal, dirigido por Borges, Los Anales de Buenos Aires, em 1946, e integrava uma seção chamada “Museu” que aparece no número 3 do primeiro ano.[1] O fragmento é assinado com o sinónimo de Suarez Miranda e citado do livro inventado com o título de Viajes de varones prudentes de 1658. Naquele mesmo ano de 1946, o fragmento foi incluído na segunda edição argentina da Historia universal de la infamia de Borges (Uma História Universal da Infâmia ), livro composto por uma série de ensaios biográficos e ficcionalizados de personagens notórios. Posteriormente, em 1961, o fragmento passou a incorporar o volume El hacedor (O fazedor).
Mesmo tratando-se de um fragmento textual de Viajes de varones prudentes (ano), um suposto relato de viagem, gênero caracterizado pelo híbrido entre documentarismo e narrativa ficcional, se reconhece no tema que a prática cartográfica e o mapa, na visão de Borges, representa um hibridismo semelhante nas descrições científicas entre um elemento matemático e outro ficcional. Este paralelismo faz parte de uma outra analogia popular entre viajar e ler, que já está presente na imagem de Galileu Galilei da “natureza como livro”[2], ou mesmo antes, em Santo Agostinho, no famoso ditado “O mundo é um livro e quem não viaja lê somente uma página”. A metáfora define uma relação entre a percepção do viajante e o conhecimento científico, quando Michel Foucault no prefácio de As Palavras e as Coisas (1966), discute o conto-ensaio de Borges, “El idioma analítico de John Wilkins”[3], ele identifica os sistemas de conhecimento com “nossa geografia ….as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e o Outro” (IX).
No conto, Borges compara o esforço do esquema de classificação de Wilkins a uma “certa enciclopédia chinesa”, provavelmente fictícia, que divide os animais em “(a) aqueles que pertencem ao Imperador, (b) embalsamados, (c) aqueles que são treinados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães vadios, (h) aqueles que estão incluídos na presente classificação, (i) aqueles que tremem como se estivessem loucos, (j) inumeráveis, (k) aqueles desenhados com um pincel de camelo muito fino, (l) outros, (m) aqueles que acabaram de quebrar um vaso de flores, (n) aqueles que parecem moscas de muito longe.” (ibid.) Aqui também, Borges se interroga ironicamente sobre a ordem, sobre o sentido de um sistema global de representação e chega à conclusão de que “notoriamente não há descrição do universo que não seja arbitrária e conjetural. A razão e muito simples: não sabemos que coisa é o universo.”
A linguagem científica, diz Foucault, é a coerência espacial que damos à imagem do mundo que estamos observando. Desta maneira, a viagem real, física em sua relação com a virtual, textual, reflete também para Borges as relações entre desordem e ordem, entre realidade e conhecimento.
O mapa aparece em muitos lugares de sua obra e sempre como representante dos modelos científicos em geral, na sua constituição “como si”[4], simultaneamente verdadeiros e ficcionais. De certa maneira o mapa é, em si, a imagem da metodologia científica e no fragmento de Suarez Miranda, se persegue seu rigor tão cegamente que se esquece sua lógica intrínseca, e com ela, também a finalidade de seu projeto, o por quê de sua prática, seu objetivo e os desejos que se investe nela. O mapa, de que se se fala, era o mais preciso de todos os mapas que existem, mas de que nos servia? Os cartógrafos deste império procuraram tal perfeição que acabaram por fazer um mapa que coincidia ponto a ponto com o império. O resultado foi um produto que não serve já que a função do mapa é a redução da escala sob a finalidade de guiar o viajante. Semelhante simulação total confunde a distinção entre real e representação e gera um real sem origem ou realidade, aquilo que Jean Baudrillard chamou de um hiperreal. “O território não precede mais o mapa … é o mapa que precede o território … que engendra o território.[5]”
No ensaio “Magias parciales del Quijote”, também encontrado na coleção Otras inquisiciones, encontramos a seguinte observação de Borges: “As invenções da filosofia não são menos fantásticas que as da arte: Josiah Royce, no primeiro volume da obra The World and the Individual (1899), formulou a seguinte: “Imaginemos que uma porção do solo da Inglaterra foi perfeitamente nivelada e que nela um cartógrafo traça um mapa da Inglaterra. A obra é perfeita; não há detalhe do solo da Inglaterra, por menor que seja, que não esteja registrado no mapa; tudo aí tem seu correspondente. Desta sorte, tal mapa deve conter um mapa do mapa, que deve conter um mapa do mapa do mapa, e assim até o infinito”[6].
Outro abismo se abre, já não em função do absurdo da aspiração científica de precisão de um mapa em escala 1:1, agora no mise em abyme vertiginoso de um mapa que se inclui abrindo um gabinete de espelhos com reflexos infinitos.
Borges brinca com as referências intertextuais[7] de modo metaficcional, em que o pressuposto é que a escrita sempre se orienta entre referências que já são textuais uma vez que o universo é uma biblioteca e que nos livros se esconde uma multiplicidade de universos. Para alguns filósofos a consequência aponta para uma espécie de construtivismo solipsista em que a realidade é considerada uma projeção da consciência humana. Para Borges, entretanto, ainda que examine ideias construtivistas, entre outros, no conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” sobre um projeto enciclopédico capaz de criar mundos, este pressuposto epistemológico é o pano de fundo de uma ontologia realista que abre caminho para experiências místicas em situações de conhecimento que tocam o sublime.
Podemos, nesta perspectiva, observar duas práticas representativas entre as sugeridas por Borges. Uma extensiva e descritiva, almejando a escala de 1:1, relacionada a fidelidade de reproduzir a realidade tal qual se apresenta e comparável a imitação textual, à cópia (plágio?), à tradução (fidelidade?) e ao realismo exaustivo (tédio?) do romance do século 19. O exemplo mais redundante é do amigo Carlos Argentino, do conto “O Aleph”.
“Este se propunha versificar toda a redondez do planeta; em 1941, já tinha dado conta de alguns hectares do estado de Queensland, mais de um quilômetro do curso do Ob, um gasômetro ao norte de Veracruz, as principais casas de comércio da paróquia de Concepción, a chácara de Mariana Cambaceres de Alvear na rua Once de Setiembre, em Belgrano, e um estabelecimento de banhos turcos não longe do renomado aquário de Brighton.”[8]
Outra prática encontra seu parentesco na densidade poética, na redução absoluta da expressão em direção à cifra e ao traço pontual da criação, em que a verdade se dá de modo absoluto e vertiginoso, sempre associada à morte. No mesmo conto “O Aleph”, Borges o descreve com admirável síntese:
“…vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura) cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.“[9]
Entretanto, nem a possibilidade de uma representação perfeita nem sua contrapartida na experiência mística de seu segredo de fato se realizam na discussão de Borges. O mapa oferece um sistema de explicação que não chega a ser mais do que uma totalidade furtiva. O sistema (o mapa) é só absoluto enquanto ambição de oferecer uma descrição enciclopédica da coerência do mundo. Mas no fundo é vazio, porque não deixa de ser apenas uma descrição. Esboça os princípios de uma estrutura, mas não a estrutura em si. O próprio mundo está ausente dele. No final apenas servirá de abrigo para mendigos e animais. Borges subverte a pretensão do mapa e de todo sistema de conhecimento e a ambição de oferecer uma explicação absoluta da realidade acaba corroída pela vida em sua resiliência cotidiana.
O Aleph, por sua vez, tampouco realiza o que promete pois o real está além do alcance dos humanos que em sua proximidade perde o sentido da própria identidade e consciência. Em todos os momentos em que os personagens finalmente o segredo, como quando, por exemplo, o narrador no conto “A escrita de Deus” entende a cifra escondida no desenho do tigre já não tem mais consciência de si. Para o narrador do Aleph, a conclusão surpreendente é que o Aleph que viu na Calle Garay era um falso Aleph, pois descobre uma anotação do explorador Richard Burton, quando este era embaixador no Brasil, e que depois apareceu numa biblioteca de Santos. Trata-se da mesquita de Amr, no Cairo, em que os fiéis sabem “muito bem que o universo está no interior de uma das colunas de pedra que rodeiam o pátio central.” Ninguém assim pode ver o universo, apenas ouvir “seu atarefado rumor” quando encosta o ouvido à pedra. Borges conclui:
“Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra? Vi-o quando vi todas as coisas e o esqueci? Nossa mente é porosa para o esquecimento; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.” (p.96)
Bibliografia
Baudrillard, Jean. Simulacros e simulação. (Trad. João Maria Perreira) Relógio d´Água. Lisboa. 1991
Borges, J.L. Outras Inquisições. (Trad. Sérgio Molino) Companhia das Letras. 1999
“Sobre o Rigor na Ciência”, O Fazedor.. (Trad. Josely Vianna Baptista). Companhia das Letras. 2008
O Aleph. (Trad. Sérgio Molino) Companhia das Letras. 1999
Foucault, Michel. As palavras e as coisas. (Trad. Salma Tannus Muchail). Martins Fontes. Rio de Janeiro. 1999
Galilei, Galileu. O Ensaiador. Coleção Os Pensadores. Editora Nova Cultural, Rio de Janeiro. 2004
[1] https://ahira.com.ar/ejemplares/los-anales-de-buenos-aires-no-3/
[2] “O Livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos.” Galileu Galilei. O Ensaiador, editora Nova Cultural, 2004, (coleção Os Pensadores), p. 46
[3] Outras Inquisições in Obras Completas Vol. 2. (Trad. Sérgio Molina) Companhia das Letras. São Paulo. 1999. p.75
[4] Die Philosophie des Als Ob do filósofo alemão Hans Vaihinger, 1877 (1911).
[5] «Hoje a abstração já não é a do mapa, do duplo, do espelho e do conceito. A simulação não é já a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede o território – precessão dos simulacros – é ele que engendra o território cujos fragmentos apodrecem lentamente sobre a extensão do mapa. É o real, e não o mapa, cujos vestígios sobrevivem aqui e ali, nos desertos que já não são os do Império, mas o nosso. O deserto do próprio real.» Baudrillard, p. 8.
[6] Outras Inquisições. (Trad. Sérgio Molino) Companhia das Letras. 1999. P.40
[7] Mais interessante ainda desta genealogia da fragilidade referencial do texto é seu evidente parentesco com uma passagem do derradeiro romance de Lewis Carroll, Silvia and Bruno Concluded de 1893. Na página 169, encontra-se este diálogo curioso entre o Bruno e o personagem “Mein Herr”:
“That’s another thing we’ve learned from your Nation,” said Mein Herr, “mapmaking” But we’ve carried it much further than you. What do you consider the largest map that would be really useful ?”
“About six inches to the mile.”
“Only six inches ! exclaimed Mein Herr.” We very soon got to six yards to the mile. Then we tried a hundred yards to the mile. We actually made a map of the country, on the scale of a mile to the mile !”
“Have you used it much ? I enquired.
“It has never been spread out, yet,” said Mein Herr
“the farmers objected they said: it would cover the whole country, and shut out the sunlight ! So we now use the country it-self, as its own map, and I assure you it does nearly as well.” (p.169)
[8]O Aleph. (Trad. Sérgio Molino) Companhia das Letras. 1999.p.89
[9] O parágrafo completo: “O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal doespelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajotas que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o fato de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de algumas samambaias no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura) cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo. “