DIALÉTICA SERIAL E INCOMENSURABILIDADE
Uma ruptura anarquista com o princípio de razão
Hume e a crítica à causalidade
Ainda em 1739, David Hume formulará um argumento que colocará em questão toda a ciência e a filosofia que se seguirá depois dele: trata-se da sua famosa crítica à noção de causalidade enquanto uma conexão necessária entre eventos, que abalará o pensamento ocidental fundado no princípio de razão, isto é, na ideia de que tudo que ocorre tem, pelo menos, uma razão ou uma causa. A ciência natural pode ser entendida, ainda hoje, como o império do princípio de razão, pois se funda na busca por condicionamentos. Somos ensinados que raciocinar é buscar estabelecer razões, explicar a realidade, procurar por princípios (arqués). Ao princípio de razão segue-se o princípio da Metafísica: se tudo tem uma causa, deve haver uma causa primeira. Por isso Hume enfiou uma faca no coração mesmo da cultura ocidental quando estabeleceu sua crítica empirista a partir da qual a história do pensamento nunca mais será a mesma. Dizem inclusive que ele tirou Kant, por meio desta crítica, do seu sono dogmático, embora saibamos que o filósofo de Königsberg tenha feito de tudo para poder voltar a dormir tranquilamente depois.
“(…) o verdadeiro problema da razão pura está contido na pergunta: como são possíveis juízos sintéticos a priori? (…) David Hume, que dentre todos os filósofos mais se aproximou desse problema sem contudo sequer de longe pensá-lo determinado suficiente e em sua universalidade, mas se detendo apenas na proposição sintética da conexão dos efeitos com suas causas, creu estabelecer que tal proposição a priori fosse inteiramente impossível; seguindo suas conclusões tudo que denominamos metafísica desembocaria em mera ilusão de uma pretensa compreensão racional daquilo que foi de fato simplesmente tomado emprestado da experiência e que pelo hábito se revestiu da aparência de necessidade. (…) Todas as tentativas feitas até agora para realizar dogmaticamente uma metafísica podem e têm que ser encaradas como não ocorridas. Com efeito, o que numa ou noutra há de analítico, isto é, um simples desmembramento dos conceitos que residem a priori na nossa razão, não chega a constituir ainda o fim, mas apenas uma promoção com vistas à verdadeira metafísica, isto é, a ampliar sinteticamente o seu conhecimento a priori; tal desmebramento é emprestável para o último por apenas mostrar o que está contido nestes conceitos, não porém como chegamos a priori a tais conceitos para que segundo isso também possamos determinar o seu uso válido com respeito aos objetos de todo conhecimento em geral.” (KANT, CRP, pp. 32-34)
Por isso, costumo dizer que Kant reforma o paradigma da representação para não abrir mão dele, e do dualismo que ele pressupõe, substituindo o transcendente pelo transcendental, jogando a necessidade dentro da razão, sem renunciar à dicotomia ontológica, e pagando como preço o exílio da “realidade nela mesma” da relação de conhecimento. “Denomino transcendental todo conhecimento que se ocupa não com objetos, mas com nosso modo de conhecimento de objetos na medida em que este deve ser possível a priori.” (KANT, CRP, p.35) Nunca mais a Metafísica Ocidental seria a mesma. Sem dúvida alguma, um preço muito alto a se pagar.
Todo argumento de Hume se funda na distinção entre verdades de razão e verdades de fato. As primeiras seriam demonstrativamente certas e o contrário delas implicaria contradição, o que significa para Hume que seriam a priori, isto é, anteriores à experiência e, portanto, necessárias. Já as segundas seriam sintéticas, isto é, o contrário seria sempre possível sem contradição, o que significará, também para Hume, que seriam a posteriori, ou seja, fundadas na experiência e contingentes. A questão envolvendo a causalidade diz respeito ao fato desta não poder ser uma relação analítica, isto é, o fato mesmo da causa explicar o efeito significa que eles não colapsam, não se identificam, a relação causal adiciona conteúdo e não se funda na lei da identidade, portanto, não pode ser uma conexão a priori e, assim, necessária.
Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção, que o conhecimento desta relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori, porém nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos particulares estão constantemente conjugados entre si. Apresente-se um objeto a um homem dotado, por natureza, de razão e habilidades tão fortes quanto possível; se o objeto lhe é completamente novo, não será capaz, pelo exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir nenhuma de suas causas ou de seus efeitos. (…) Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, tanto as causas que o produziram como os efeitos que surgirão dele; nem pode nossa razão, sem o auxílio da experiência, jamais tirar uma inferência acerca da existência real de um fato. (HUME, IEH, IV, p. 79)
Ao lado disso, temos experiência dos eventos, mas nunca da conexão entre eles, experienciamos um evento 1 e um evento 2, que normalmente se segue dele temporalmente, mas não podemos experienciar a relação de causalidade entre eles, daí Hume dizer que a conexão causal é uma ideia da nossa imaginação, influenciada, estimulada, pelo hábito constante. A conexão causal seria uma conexão habitual proveniente da conjunção constante, repetida, entre eventos e, portanto, da indução e da imaginação, fundadas na crença de que o futuro será sempre como o passado tem sido, ou seja, fundada na suposição arbitrária da conformidade e regularidade da natureza ao longo do tempo. Tal regularidade não poderia ser ela mesma jamais provada e, portanto, não é um conhecimento, mas objeto da fé. Em suma, temos experiências de eventos, mas inventamos o princípio de razão entre eles. Se é assim, toda ciência é uma atividade imaginativa, conclusão que será insuportável para o racionalismo de Kant, que limitará a razão pura para não precisar se livrar dela, propondo a noção de síntese a priori enquanto constitutiva das formas transcendentais de toda cognição. Verdade é que Hume batia no princípio de razão, o colocando subsumido ao hábito e fundado na contingência, mas o que ele estava mirando mesmo era a metafísica: a noção de causa primeira é para o pensador ateu uma noção espúria, em vão tentaríamos buscar princípios gerais para além de toda experiência possível. As noções de causalidade e substância, na medida em que não teriam fundamento em impressões correspondentes, para Hume, seriam meras ficções da razão.
O que se segue das análises de Hume sobre a causalidade é que, sendo sempre possível concebermos a causa sem o efeito e o efeito sem a causa, a relação de causalidade não é jamais analítica e, por isso, é contingente.
“Em uma palavra: todo efeito é distinto de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na sua causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori. E mesmo depois que o efeito tenha sido sugerido, a conjunção do efeito com sua causa deve parecer igualmente arbitrária, visto que há sempre outros efeitos que para a razão devem parecer igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a ajuda da observação e da experiência.”(HUME, IEH, IV, p. 80)
Esta noção de possibilidade diz respeito à possibilidade em princípio (o que podemos pensar), enquanto distinta de uma possibilidade factual (o que pode ocorrer). É possível em princípio que uma bola de bilhar bata em outra bola de bilhar e esta última não se mova, isto é, podemos conceber isso sem contradição, mesmo que de fato, pelas leis da física, isso não pareça possível. A conclusão é: se toda necessidade for analítica, não pode haver necessidade no princípio de razão. É isso que faz Kant conceber a necessidade do sintético a priori, isto é, necessidades estabelecidas na nossa maneira de conhecer o mundo, ditas então ‘transcendentais’, e que não se confundam com necessidades do real ou metafísicas. Kant aceita o argumento humeano, mas não está disposto a “alterar o samba tanto assim”[1]. Então ele prefere abrir mão do real do que da causalidade e do princípio de razão. Por isso, em Kant, o possível de fato cai fora de consideração no incognoscível. Para Kant, mesmo o princípio de razão não sendo analítico, ele não é contingente, pois é a nossa maneira de compreender o real que se desconstruiria se uma bola de bilhar batesse na outra e a esta não comunicasse movimento[2]. Esta é a noção de fenômeno kantiana, o que compreendemos por fenômeno e é, por isso mesmo, cognoscível, se diferencia do real em si, e responde a uma série de categorias nas quais a causalidade se inscreve. A causalidade não está na realidade nela mesma, mas é, ainda assim, necessária. Idealismo transcendental, portanto. Ainda que não haja contradição nisso, não podemos conceber um mundo que não seja ordenado por relações causais. Como se sabe, é precisamente neste ponto que a dialética intervém: para recusar a separação kantiana entre fenômeno e real em si. Compreender o real como dialético significa dizer que não é apenas a nossa maneira de compreender o real que se desconstruiria, pois a nossa de maneira de compreender o real constitui o real. Neste ponto, Hegel colapsa real factual com em princípio, recusando a separação kantiana: “O conhecimento não é o desvio do raio, mas o raio mesmo por meio do qual a verdade nos toca.” (HEGEL, 1989, p.46). O adendo materialista à dialética significou, tal como entendemos, afirmar a primazia do material (factual) em relação ao em princípio (o que concebemos). Dito de outro modo: ok, todo real é real-pensado, o que podemos conceber e o que pode ocorrer estão colapsados, isto é, se constituem mutuamente, mas o que determina o que podemos conceber é o real concreto factual e, portanto, a transformação é sempre possível. Chega de apenas pensar o mundo, está na hora de transformá-lo naquilo que ele tem de mais fundamental. É neste ponto da história das ideias que intervém a contribuição da dialética serial proudhoniana, juntando a crítica à causalidade de Hume com a proposta dialética, Proudhon compreende que este real-pensado não é fundamentalmente ordenado por uma hierarquia. Adicionalmente, Proudhon compreende e afirma o fato da mudança. Tudo muda. Todo real-pensado pode se desvanecer, e é isso que buscamos, aliás: livrar-se da causalidade para compreender-constituir o real de uma outra maneira, tematizando com isso a ruptura, a transformação constante da natureza e o não-determinismo.
«Nada persiste, disseram os antigos sábios: tudo muda, tudo flui, tudo devém; consequentemente, tudo permanece e tudo está conectado; por consequência adicional, todo o universo é oposição, balanço, equilíbrio. Não há nada, nem fora, nem dentro, à parte da dança eterna; e o ritmo que a comanda, pura forma da existência, ideia suprema à qual qualquer realidade pode responder, é a concepção mais elevada que a razão pode alcançar. Como, então, as coisas estão conectadas e são engendradas? Como os seres são produzidos e como eles desaparecem? Como a sociedade e a natureza são transformadas? Este é o único objeto da ciência. (PROUDHON, FP, p.07)
Proudhon e a Dialética serial
Partindo da ruptura de Hume com as noções de causalidade e de substância, e concordando com este, Proudhon elabora uma ontologia da diferença, antes de Deleuze. Proudhon abre o Da Criação da Ordem na Humanidade fundando a noção de ordem na diferença em vez de na regra da série, que seria a identidade comum: “Chamo de ORDEM qualquer disposição seriada ou simétrica. A ordem supõe, necessariamente, divisão, distinção, diferença. Nenhuma coisa indivisa, indistinta, não diferenciada, pode ser concebida como ordenada: estas noções se excluem reciprocamente.”(PROUDHON. 1843, p.01) E podemos dizer que tal ontologia é também uma ontologia anarquista, pois Proudhon propõe que a realidade é ordenada – isto é, seriada – mas ao mesmo tempo que tal ordem não se funda no princípio de razão, ou seja, não se funda na forma:
A ordem para Proudhon é imanente, e o comum entre fenômenos não é uma regra abstraída destes, que representaria a série, mas a diferença que perpassa o sistema, ao invés da mesmidade, a própria incomensurabilidade. Isso significa romper com o princípio do UNO enquanto ordenação da série. Na fórmula: x por causa de y, Proudhon identifica uma estrutura de poder onde y é sempre tomado como superior a x na, cadeia de razões, cujo princípio máximo seria a autoridade divina (causa de si mesma) ou algo que cumpra seu papel lógico, ou seja, a cadeia de saber é, e sempre foi, uma estrutura de poder:
Na própria ideia linear de um isto por causa daquilo estaria suposta a noção de ARQUIA e esta seria a base de toda estrutura de mando e princípio da autoridade por excelência. A isso Proudhon contrapõe uma ordem sem hierarquia, que em máximo grau significaria romper com o princípio de razão como constitutivo do real e do saber. (Adicionaríamos aqui que significa também romper com o princípio da representação, mas isso talvez seja assunto para outra conversa).
Deste ponto de vista, para nos livrarmos do Estado na organização das sociedades, precisaríamos também romper, e talvez antes de tudo, com uma epistemologia que reproduz a forma-estado na estrutura saber-poder. Para Proudhon, isso significou substituir a causalidade enquanto categoria do conhecimento, e também da autoridade, fundada no UNO e na síntese, pela ideia de RELAÇÃO.
10. Entendemos por causa a força primitiva que determina uma mudança de estado, uma produção de ordem ou de desordem, numa palavra, um movimento. – Os filósofos, por extrapolação, considerando os diferentes termos de uma sequência móvel como causa uns dos outros, acreditaram poder, com a ajuda destas pretensas causas segundas, elevar-se até o conhecimento das primeiras. Mas é fácil ver quanto, tomando relações por causas, eles se iludiam. (…) O erro não é, pois, nomear a substância e a causa; as somente aspirar a conhecê-las, e pretender explicá-las. (PROUDHON, 1843)
20. Não podemos nem penetrar as substâncias, nem apreender as causas: o que percebemos da natureza é sempre, no fundo, lei ou relação, nada mais. Todos os nossos conhecimentos são definitivamente percepções da ordem ou da desordem. (PROUDHON, 1843)
Isso o permite pensar uma série MÚLTIPLA, que se transforma sem hierarquias. Dito de outra maneira: x e y variam um em relação ao outro, sem que possamos dizer que tal transformação é operada ou dominada por um dos fatores relacionados. O universo seria composto por múltiplas séries diferenciais, que se entrecruzariam e se misturariam, sem jamais se reduzirem (ou poderem ser explicadas) umas pelas outras. O que tomamos como ARQUÉ (causa) é apenas mais uma variação múltipla, todos efeitos sem nenhuma causa primeira, ou melhor, todos causas de si mesmos, autônomos e livres, posto que autodeterminados espontaneamente na transformação e movimento (fluxo) incessantes do real.
O movimento existe: este é meu axioma fundamental. Dizer como eu adquiri a noção de movimento seria dizer como eu penso, como eu sou. É uma questão à qual eu tenho o direito de não responder. O movimento é o fato primitivo que é revelado de uma só vez pela experiência e pela razão. Eu vejo o movimento e eu o sinto; eu o vejo fora de mim e eu o sinto em mim. Se eu o vejo fora de mim, é o porquê eu o sinto em mim, e vice-versa. A ideia de movimento é, assim, dada de uma só vez pelos sentidos e pelo entendimento; pelos sentidos, uma vez que, a fim de ter a ideia de movimento, é necessário tê-lo visto; pelo entendimento, porque o movimento em si, através do sensível, não é nada real e porque tudo que os sentidos revelam em movimento é que o mesmo corpo que, apenas um momento atrás, estava em um certo lugar está, no próximo instante, em outro. (PROUDHON, FP, p. 14)
Proudhon subverte o idealismo alemão kantiano introduzindo elementos dialéticos nele. Para o pensador francês, fenômeno é tudo aquilo que entra em relação, que está em uma rede de interações que torna o fluxo da real humanamente detectável. Fenômenos seriam cognoscíveis porque seriam sistemas de equilíbrio, porém toda estabilidade seria ao mesmo tempo precária e oscilante, construções constantes.
Este é o coração da dialética serial, enquanto uma composição balanceada de variáveis, umas com as outras, porém sem síntese. E esta seria ao mesmo tempo metodologia das ciências e filosofia, pois o processo de conhecimento seria um caso de processo de constituição do real. Importante dizer que, para Proudhon, a teoria serial não se aplicaria apenas às ciências sociais, mas também às ciências da natureza em geral, pois seria, nas palavras do filósofo, “um meta-método”. Para Proudhon, a ciência se encontra com a Filosofia na medida em que precisa acabar por incluir-se autorreferencialmente no próprio processo do conhecimento: o processo de conhecimento de uma ordem seria mais um caso específico de criação de ordens na natureza.
155. Se há uma verdade constante e demostrada na Filosofia, é que toda ciência especializada e constituída não está mais sob seu domínio; à medida que o conhecimento, determinando seu objeto, se eleva à certeza, ela deixa de ser filosofia. Faz muito tempo que os filósofos vêm reconhecendo este movimento e quando enfim eles perceberam isso, exclamaram que a filosofia também é ciência: que ela tem seus limites, seu objeto, seu método, que é precisamente isso que ela procura, e que ela não pode ainda rir porque não o encontrou ainda. Então eles desempenham entre eles mesmos um trabalho de comparação, de eliminação e de síntese, que deve encontrar, segundo alguns, à ciência universal, e, segundo outros, à especialidade filosófica, e que se resume, assim que nós o fazemos ver, na busca de um método.
Nascido na religião, herdado na filosofia, é este método que tentei descrever. (PROUDHON, 1843)
Para Proudhon, a ordenação com base no princípio de razão, que forçaria uma hierarquia unidirecional no real, seria artificial e mascararia os fluxos e transformações. Ele propõe, portanto, incluir o sujeito do conhecimento como uma variável nas análises, bem como partir das noções de ‘múltipla-determinação’ (x não causa y, x e y se determinam mutuamente) e ‘interação’ (x e y interagem multidirecionalmente), em vez de uma causalidade unidirecional entre fenômenos.
186. Seria portanto bem pouco filósofo, e investigador desajeitado, quem, se contendo voluntariamente em uma das mil séries da natureza, pretendesse trazer para esta ordem restrita criações ordenadas segundo combinações inumeráveis. Longe disso, nossa inteligência das coisas é tanto mais profunda tanto nossa compreensão vasta, quanto mais séries e pontos de vistas nós abraçamos. (…)
190. Desde que cada série contém na mesma seu princípio, sua lei, sua certeza, se segue que as séries são independentes e que o conhecimento de uma não supõe nem contém o conhecimento da outra. (…)
Temos então por certo que as séries de ordens diversas são independentes, que elas não se explicam umas às outras, e que em toda ciência é necessário, sem nada prejulgar sobre conhecimentos estrangeiros, buscar a série própria, o em si e o por si daquilo que se estuda. (PROUDHON. 1843)
Para Proudhon, a realidade seria multiplamente ordenada, mas todas as ordens seriam descontínuas e nenhuma poderia ser reduzida à outra. Isso é importante: junto com a ruptura profunda com a noção de causalidade, Proudhon rompe também com a noção de continuidade. Não há continuidade no real, pois a mudança se dá por rupturas.[3] A continuidade seria uma ilusão, a realidade seria composta por graduações seriais aproximativas, mas não haveria contínuo, nem síntese entre diferentes. A visão anti-determinista é também uma visão anti-continuísta: x não causa y, há uma transformação, uma ruptura, que nos leva de x para y, mas sempre com um abismo, um salto, no meio. Se podemos falar em cálculo diferencial na dialética serial, ele é só diferencial, sem integral, isto é, sem síntese:
O estado molecular dos corpos é uma outra prova da não-continuidade: o ouro, o mais denso dos metais, tem mais vazio do que cheio. Claro, as moléculas não se tocam, elas são somente em relação por suas atmosferas ou polos magnéticos, e formam entre elas grupos e sistemas, miniaturas microcópias dos sistemas siderais. Atire por uma de suas extremidades uma barra de ferro de um metro de largura, a barra vem a você por um movimento simultâneo, a atração parece se exercer portanto de uma maneira contínua em toda a barra. Mas suponha, no lugar de uma barra de um metro, um fio metálico de um milímetro, e você verá que a atração se comunica de uma extremidade a outra do fio em um tempo já apreciável. – É a gravidade do fio junto com sua elasticidade que causa este atraso. Mas o que é a elasticidade? A propriedade que as moléculas dos corpos têm de se distender e de se apertar momentaneamente sem cessar de estar em relação. Na tração as moléculas se entretêm alternadamente, se a dilatação se torna mais forte, há ruptura, isso não se pode conceber com a ideia de continuidade. Voltemos à experiência: ao lugar de um exemplo de tração, pegamos um caso de ejaculação. O líquido que flui pelo orifício de um vaso, o gás que escapa por uma mangueira, não fornecem um jato contínuo, mas um jato serial. Pois, se supõe que o jato é dividido transversalmente em fatias de uma espessura igual ao diâmetro das moléculas do líquido; novamente o que foi dito sobre o estado molecular dos corpos, suas fatias não se tocam, elas empurram umas as outras por suas atmosferas e produzem assim uma tensão elástica, que combinado com a altura da coluna fluída é causa da rigidez e rapidez do jato. (PROUDHON,1843, 172)
A ordem se cria, se realiza na construção dos fenômenos, mas nunca é plena e acabada, é um processo de interação, onde os atores cognitivos atuam, intervém, a agência humana faz parte do desenrolar do processo. Neste sentido, Proudhon vai trabalhar com uma ideia do progresso não determinista, o que acaba significando uma redefinição não-positivista da própria noção de ordem. Os principais fatores neste sentido são: a liberdade (enquanto autodeterminação) e a ausência de alvos finais. Não há um objetivo entendido como critério de melhoria, a transformação nela mesma parece ser entendida pelo filósofo como melhoria.[4] Além disso, há uma liberdade enquanto resultado da multiplicação de forças opostas atuando. A liberdade é considerada como emergência espontânea de um processo inesgotável de movimento na construção das ordens.
Rumo a um pensamento da diferença pura
Mas em que sentido estas reflexões aparentemente tão situadas no século XIX podem nos ser ainda interessantes? Ora, o pensamento fundado no princípio de razão é sempre uma representação: explicar um isto por aquilo significa representá-lo mediante uma medida, uma razão, comum. Mas o pensamento da diferença pura (que não é diferença relativa a um gênero comum) é precisamente o que não tem medida, ou o comum que não é uma razão. Isto significa também compreender que o que escapa ao princípio de razão é o que não é representável. Toda explicação causal é uma síntese entre duas diferenças. O pensamento sem síntese da dialética serial é o pensamento sem causa, pois explicar uma coisa em termos de outra é representá-la por uma medida comum. Mas há sempre um comum que não é medida.
Que o efeito seja sempre separável de sua causa significa não há aqui medida comum, não há síntese última possível. Por isso, recusar a causalidade é recusar a continuidade. Zenão foi talvez o precursor de Hume, poderíamos talvez dizer. A realidade é uma conta que não fecha, uma divisão ao infinito. Mas, no próprio abismo, encontramos a singularidade do acontecimento. Por isso talvez Deleuze tenha caracterizado a noção de ‘diferença específica’ como mediação garantidora ao mesmo tempo da continuidade quanto da representação.[5] Tratou-se ali de domesticar o monstruoso, o incomensurável. Mas a diferença pura, não podendo encontrar uma medida comum com o gênero uno, deixa de ser especificável e torna-se irrepresentável: a ruptura ínfima entre a causa e o efeito pode ser dividida ao infinito, mas se mantém diferencial. A diferença liberta da representação é ruptura, fundo rebelde irredutível:
A diferença só deixa, com efeito, de ser um conceito reflexivo e só reencontra um conceito efetivamente real na medida em que designa catástrofes: sejam rupturas de continuidade na série das semelhanças, sejam falhas intransponíveis entre estruturas análogas. Ela só deixa de ser reflexiva para tornar-se catastrófica e, sem dúvida, não pode ser uma coisa sem a outra. Mas, como catástrofe, a diferença não dá, justamente, testemunho de um fundo rebelde irredutível que continua a agir sob o equilíbrio aparente da representação orgânica? (DELEUZE, 2018, p.40)
O que queremos dizer com isso já foi expresso de vários modos: há um limite para o princípio de razão, há um limite para o comensurável, há um limite para a representação. O que vem a ser este limite? O declínio do ocidente, esperamos. Representar, racionalizar, estabelecer razões que substituem o comum. O comum que buscamos é o incomensurável, as razões chegando a um fim. A vida começa onde as negociações terminam porque a vida é inegociável, a vida não é útil. O comum que não é uma razão, chamado por alguns de diferença pura, chamado por alguns de singularidade. Mas talvez os anarquistas tenham sido desde sempre os que melhor reconhecem esta rebeldia: um comum que não obedece à forma-estado, o comum da dialética sem síntese proudhoniana. O comum que é a própria diferença. O múltiplo que é infinito, a Terra sem Mal dos Guaranis, tal com descrita por Pierre Clastres:
Pois dizer que A = A, que isto é isto, e que um homem é um homem, é declarar ao mesmo tempo que A não é não-A, que isto não é aquilo, e que os homens não são deuses. Nomear a unidade nas coisas, nomear as coisas segundo sua unidade, é também lhes assinalar o limite, o finito, o incompleto. É descobrir tragicamente que esse poder de designar o mundo e de determinar seus seres – isto é isto, e não outra coisa, os Guarani são homens, e não outra coisa – não é senão a irrisão da verdadeira potência, da potência secreta que pode silenciosamente enunciar que isto é isto, e ao mesmo tempo aquilo, que os Guarani são homens, e ao mesmo tempo deuses. Descoberta trágica, pois nós não desejamos isso, nós que sabemos enganadora a nossa linguagem, nós que nunca poupamos esforços para alcançar a pátria da verdadeira linguagem, a morada incorruptível dos deuses, a Terra sem Mal, onde nada do que existe pode ser dito Um. (CLASTRES, 2014, p. 155)
Pelo ocidente, pensar se tornou representar, conhecer, estabelecer relações de causa e efeito, e se organizar politica e socialmente, se tornou trocar, por isso só nos interessa aqui e agora um pensamento que não é representação, que não se imobiliza, um conhecimento que não diz respeito ao princípio de razão, uma política que não recua, que não tem arrego, e que cresce na falha de toda forma-estado.
Referências Bibliográficas:
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política. Tradução: Theo Santiago. Prefácio: Tânia Stolze Lima e Marcio Goldman. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Tradução: Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.
HEGEL. G. W. F. A Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
HUME, D. Investigação acerca do Entendimento Humano (IEH). Tradução: Anoar Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
PROUDHON, Pierre-Joseph. De la création de l’ordre dans l’humanité ou Principles d’organization politique. Besançon, 1843. Disponível em: https://fr.wikisource.org/wiki/De_la_Cr%C3%A9ation_de_l%E2%80%99Ordre_dans_l%E2%80%99Humanit%C3%A9/Texte_complet Acessado em: 21/08/2023.
PROUDHON, Pierre-Joseph. A Filosofia do Progresso (FP). E-book produzido por Monkey Books. Disponível em:https://asdocs.net/1r28k~epubviewer#epubcfi(/6/6[base01.xhtml]!/4/2/1:0) Acessado em: 21/08/2023.
KANT, I. Crítica da Razão Pura (CRP). Tradução Valeŕio Rohden. São Paulo: Abril Cultural, 1987.
[1]Referência à letra da música Argumento, de Paulinho da Viola. Em: VIOLA, Paulino da. Paulinho da Viola. Warner, 1975.
[2]O famoso exemplo da bola de bilhar foi utilizado por Hume na sua argumentação do seguinte modo: “Imaginamos que se fôssemos repentinamente jogados neste mundo poderíamos de antemão inferir que uma bola de bilhar comunicaria movimento a outra ao impulsioná-la, e que não teríamos necessidade de observar o evento para nos pronunciarmos com certeza a seu respeito. (…) O espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela. O movimento da segunda bola de bilhar é um evento bem distinto do movimento da primeira, já que não há na primeira o menor indício da outra.” (HUME, IEH, IV, p. 79)
[3] “171. A série é a condição suprema da ciência, como da criação ela mesma. Se é assim, o que se nomeia, após Leibniz, lei da continuidade é um erro ao menos quanto à expressão. A ideia de continuidade é uma concepção de nosso entendimento análoga àquelas de substância e causa, isto é, sem realidade perceptível, e sinônima à identidade absoluta. (…) A coesão dos corpos e a sucessão dos fenômenos nos dão a ideia de continuidade, mas, de fato, esta continuidade não existe em lugar nenhum. Quando, portanto, Leibniz disse que a natureza não faz nada bruscamente, não procede por saltos, mas se move de uma maneira suave e progressiva, e que ele chamou de lei da continuidade, é preciso entender que ele pretendeu falar de um progresso contínuo. As ideias de progresso e continuidade parecem mesmo se excluir: quem diz progresso diz necessariamente sucessão, transporte, crescimento, passagem, adição, multiplicação, diferença, série enfim; de tal modo que a expressão movimento contínuo não é outra coisa que uma metáfora. O movimento é a série da força, como o tempo é a série da eternidade.”(PROUDHON,1843)
[4] “Todo movimento supõem uma direção, A –> B. Esta proposição é fornecida, a priori, pela própria noção de movimento. A ideia de direção, inerente à ideia de movimento, sendo adquirida, a imaginação toma posse dela e a divide em dois termos: A, o lado a partir do qual o movimento vem, e B, o lado para onde ele vai. Esses dois termos dados, a imaginação os sumariza nesses dois outros, ponto de partida e ponto de chegada ou, de outra forma, princípio e objetivo. Ora, a ideia de um princípio ou de um objetivo é apenas uma ficção ou concepção da imaginação, uma ilusão dos sentidos. Um estudo completo demonstra que não há, nem poderia haver, um princípio ou um objetivo, tampouco um começo ou um fim, para o movimento perpétuo que constitui o universo. Essas duas ideias, puramente especulativas de nossa parte, indicam, nas coisas, nada mais do que relações. Conceder qualquer realidade a essas noções é criar para si uma ilusão deliberada.” (PROUDHON, FP, p. 15)
[5] A diferença específica, em Diferença e Repetição, é a que subordina a diferença à identidade: “(…) a diferença específica responde a todas as exigências de um conceito harmonioso ou de uma representação orgânica. Ela é pura, porque formal; intrínseca, pois opera na essência. Ela é qualitativa; e, na medida em que o gênero designa a essência, a diferença é mesmo uma qualidade muito especial, ‘segundo a essência’, qualidade da própria essência. Ela é sintética, pois a especificação é uma composição, e a diferença se acrescenta atualmente ao gênero que só a contém em potência. Ela é mediatizada, ela própria é mediação, meio termo em pessoa. Ela é produtora, pois o gênero não se divide em diferenças, mas é dividido por diferenças que nele produzem as espécies correspondentes. Eis por que ela é sempre causa, causa formal: o mais curto é a diferença específica da linha reta; o comprimento é a diferença específica da cor preta; o dissociante, o da cor branca. (…) Transporte da diferença, diáfora da diáfora, a especificação encadeia a diferença com a diferença nos níveis sucessivos da divisão, até que uma última diferença, a species infima, condense na direção escolhida o conjunto da essência e da sua qualidade continuada, reúna este conjunto num conceito intuitivo e o funde com o termo a ser definido, ela mesma tomando-se uma coisa única indivisível. A especificação garante, assim, a coerência e a continuidade na compreensão do conceito.” (DELEUZE, 2018, pp.36-37)