Deus: a imagem de um pensamento divertido
Para os meus alunos Iranilson, Weslley e Irmão Basílio.
“Deus: o céu e os céus do céu não te podem conter”
1º Livro dos Reis, 8, 27.
A idéia de infinito que atravessa o pensamento de Leibniz advém da idéia de infinito metafísico. É indo à idéia de Deus que podemos nos aproximar verdadeiramente da nova metafísica, posto que Deus envolve o infinito com uma só piscadela de olhos.[1] É o próprio Leibniz em sua correspondência com a princesa Élisabeth que diz que a metafísica se inicia pelo conhecimento de Deus.[2] A questão é que a pergunta sobre a natureza de Deus ou sobre a ordem das essências é muito mais poderosa do que a pergunta sobre a natureza das coisas, do que a pergunta sobre a natureza dos existentes.
Penetrar nessa idéia é encontrar um mundo de imaginação e mistérios insondáveis. É entrar num pensamento ficcional. É entrar no que o próprio Leibniz chamou de “Pensamento divertido” (Pensée drôle). É num texto de 1675[3] que Leibniz retrata uma academia de sábios que vê, ao mesmo tempo, seus fins se diversificando: entretenimento e educação para o povo, promoção de investigação científica, serviço de informação policial, academia de jogos, etc. Tal academia contaria com a presença de pintores, escultores, relojoeiros, matemáticos, engenheiros, magos, curandeiros, músicos, tipógrafos e outros, que seriam capazes de construir todo tipo de efeitos óticos, fogos artificiais, embarcações de forma estranha, plantas exóticas, animais raros, guerra fictícia, concertos inusitados, trombetas que falam e muito mais. Toda espécie de invento, de criação encontraria aqui lugar para sua promoção e a respeito do caminho que chegaríamos com tudo isso Leibniz sentencia: a empresa poderia ter conseqüências mais belas e importantes do que se poderia imaginar e que talvez um dia serão admiradas pela posteridade.[4] Com esta academia Leibniz demonstra que as possibilidades são ilimitadas e que a fecundidade de seu pensamento se expressa na profusão de maravilhas presentes neste projeto.
Há, de fato, como se pode ver, todo um lado science fiction em Leibniz. Aliás, como ocorre com todo o pensamento que caminha em outra direção que não na direção clássica. Todo pensamento desviante sempre parece um pouco ficcional, literário, por demais imaginativo. Claro, os paradoxos, o desapego à razão, a descrença nas transcendências, o desprestígio do ser, a desmontagem da verdade, tudo isso leva os espíritos desavisados e menos propensos ao desvio a uma desconfiança e mais do que isso a uma desconsideração desse novus genus cogitandi. Não é à toa que as ciências contemporâneas necessitam cada vez mais, gritam cada vez mais por conceitos que fogem ao modelo clássico. Contemporaneamente não se grita mais por ser, essência, causa e efeito, mas sim se grita pelos conceitos de multiplicidade, singularidade, incerteza, complexidade. Leibniz também é ficcional, pois imagina essa instituição onde dependendo do ponto de vista de onde nos colocamos para vê-la, ela se torna uma ou outra coisa.
Então, a primeira coisa que devemos ter em mente ao penetrarmos na metafísica leibniziana e mais ainda, penetrarmos na idéia de Deus, é que devemos nos guiar pelo caminho da ficção. Não uma ficção cheia de erros, mas uma ficção cheia de potência. Ir a Deus é ir ao mundo dos possíveis, ao mundo onde todos os possíveis são reais, ir ao encontro do que Deleuze chamou de potência do falso. Chegamos à potência do falso quando chegamos no momento em que a relação entre o real e o irreal não é mais discernível. É onde não podemos mais nos decidir pelo verdadeiro ou pelo falso porque o falso não é um erro ou uma confusão, mas uma potência que torna o verdadeiro indecidível.[5] O deus leibniziano não é o deus calculat de Descartes, incapaz de uma irracionalidade. O deus de Leibniz produz todos os possíveis, portanto, no entendimento desse deus, que é a região dos possíveis, ao invés dos paradoxos se dissiparem, temos, ao contrário, uma afirmação da potência do falso, porque caminhamos para o infinito das possibilidades.
O entendimento de Deus é um lugar de indecidibilidade pois que abrange todas as possibilidades, não havendo uma que se superponha a qualquer outra, porque no seu entendimento não há distinção entre fatos realizados neste mundo como fatos atuais e fatos realizados como puros possíveis. Deus não é somente a fonte das existências, mas a das essências enquanto reais, ou do que há de real na possibilidade.[6] Em Deus haverá, por exemplo, um crocodilo que voa, pois nele todos os possíveis são reais.
Isso quer dizer que em Deus os possíveis não são apenas hipóteses. Todas as coisas que para nós seriam apenas imaginárias, são realizadas em seu entendimento. Diz Leibniz: Uma idéia será também real quando for possível, ainda que não lhe corresponda nenhum ser real.[7]
Isso nos leva ao entendimento de que Deus não é regido pelo princípio de não-contradição pois tudo nele é absolutamente possível, todas as essências são necessárias. Deus pensa os infinitos de uma infinidade de maneiras.[8] Há, como diz Michel Serres, em Deus uma imaginatio luxurians, uma imaginação luxuriante, onde tudo é novo e sempre diferente. É a festa do diverso.[9] E se a imaginação divina é luxuriante, a profusão de possíveis não conhece limites, ou dito em outras palavras, Deus não conhece o impossível. O seu pensamento é inesgotavelmente infinito, e no infinito caberá cavalos alados, homens de mil olhos, e todas as espécies de monstruosidades ou diferenças que se possa imaginar. Ocorre que essas coisas não são tornadas reais no mundo que Deus fez passar à existência, mas são reais em outros mundos pois não são impossíveis para Deus.
Assim, aos olhos de Deus o “mundo verdadeiro” não existe, sendo tal idéia uma inutilidade, uma superfluidade, posto que o mundo verdadeiro suporia um Deus verídico. Mas como Deus pode ser verídico se sua natureza é a coexistência luxuriante de todos os possíveis? Quando Ernesto Sabato diz que a um deus não é necessário criar ficções, ele está pensando justamente num deus como o de Leibniz que não precisa criar ficções pois todas as ficções estão nele desde sempre, todas as ficções de direito pertencem a Deus, ou melhor, todas as ficções compõem a idéia de Deus. Há nas idéias de Deus uma infinidade de universos.[10] E é nesse sentido que podemos afirmar que a alternativa real-fictício se encontra nele completamente superada. Podemos dizer que na inocência que é o entendimento de Deus, a ficção se afirma como potência.
A beleza da idéia de divindade pensada por Leibniz está nessa indecidibilidade pelo verdadeiro. O que pode pensar um entendimento infinito? Qualquer imagem que possamos ver a nossa volta, qualquer coisa, qualquer mundo, são apenas possibilidades do infinito.
Então o que é Deus? Qual é a imagem que Leibniz faz de Deus? Diz Grua: a inteligência divina é fonte, síntese, espelho ou lugar dos possíveis.[11] Qual é sua a natureza, qual é sua a essência? Deus é a imagem da mais luxuriante das imaginações. De uma imaginação infinitamente próspera, ativa, e por isso é uma reserva infinita de possível. Diz Leibniz: se algo é possível de ser imaginado, então é possível.[12] Portanto, Deus é a identidade infinita de todas as possibilidades, porque só não é possível o que não pode ser imaginado. Mas se a imaginação de Deus não conhece pudores, se ele é pródigo em imaginar, todos os possíveis são possíveis. Como diz Fernando Pessoa, Deus é o existirmos e isso não ser tudo.[13]
[1] Leibniz, G. W. Sur les secrets admirables de la nature: 290.
[2] Leibniz, G. W. Lettre a Elisabeth, 1678.
[3] Leibniz, G. W. Un curioso proyecto. In Escritos políticos: 157.
[4] Ibdem: 170.
[5] Deleuze, Gilles. Pourparlers: 93.
[6] Leibniz, G. W. La monadologia: § 43; Essais de théodicée: § 7.
[7] Leibniz, G. W. Nouveaux essais sur l’entendemant humain, II, 30, § 1.
[8] Leibniz, G. W. Sur les formes ou attributs de Dieu: 26.
[9] Serres, Michel. Le système de Leibniz et ses modèles mathématiques: 39.
[10] Leibniz, G. W. La monadologie: § 53; Essais de théodicée: § 42.
[11] Grua, Gaston. Jurisprudence universelle et théodicée selon Leibniz: 239.
[12] Leibniz, G. W. De la toute-puissance de Dieu et de la liberté de l’homme: 75.
[13] Pessoa, Fernando. Livro do desassossego: 60.