Da energia escura à estrutura cósmica
ARTIGO /
David Wiltshire* //
Para David Wiltshire, a ausência de uma simples palavra na cerimônia de apresentação do ganhador do Prêmio Nobel de Física de 2011 causou uma série de mal-entendidos na comunidade científica. Qual é esta palavra? Aparente! “A ‘aparente’ expansão acelerada do Universo”. Juntamente com seus colaboradores, David Wiltshire desenvolveu um modelo cosmológico cuja principal propriedade é mostrar que a expansão acelerada do Universo é fruto de um problema estatístico mal formulado.
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O Premio Nobel de Física em 2011 foi dado recentemente a Saul Perlmutter, Brian Schmidt e Adam Riess “pela descoberta da expansão acelerada do Universo através de observações de supernovas distantes.” Entretanto, a física subjacente a essa expansão acelerada continua sendo um mistério e alguns físicos suspeitam que, ao invés de tentarmos encontrar uma nova força exótica que age expandindo o universo a uma velocidade cada vez maior, precisamos reexaminar os fundamentos que descrevem a estrutura em grande escala do espaço-tempo na teoria da relatividade geral de Einstein.
É certo que as observações pelas quais o Prêmio Nobel foi concedido são pioneiras. Na década de 1990, conseguimos medir distâncias que nos separam de muitas supernovas em galáxias distantes, por conta de correlações empíricas em suas curvas de luminosidade – primeiramente destacadas por Mark Phillips em 1993 – que passaram a ser usadas como velas-padrão. Se é conhecida a luminosidade intrínseca de uma classe de objetos, sua magnitude aparente observada nos informa a distância de maneira confiável. Em 1998, quando já haviam sido acumulados dados em quantidade suficiente para ajustar a distância em modelos cosmológicos, os resultados surpreenderam muita gente. As galáxias que continham as supernovas estavam mais distantes do que seria de esperar num universo cuja velocidade de expansão foi reduzida pela força gravitacional, da maneira sugerida pelo nosso modelo padrão de universo. Além disso, a taxa de expansão parecia estar perdendo velocidade logo no início, mas acelerando no passado relativamente recente.
A gravidade com matéria ordinária é universalmente atrativa e desacelera a expansão. Então, isso indicaria a presença de alguma misteriosa ‘energia escura’ anti-gravitacional no vazio do espaço sideral. A constante cosmológica, que Einstein introduziu (com intenção diferente), porém posteriormente descreveu como seu ‘grösste Eselei’, é a forma de energia escura que mais parece se encaixar em observações independentes. Entretanto, a cosmologia padrão também enfrenta alguns enigmas e anomalias que não são explicadas.
Se a energia escura é uma constante cosmológica, ou algo parecido, a pergunta imediata é: por que tem um valor tão ínfimo? Particularmente, por que esse valor é tal que só se torna significativo quando a densidade média da matéria se dilui pela expansão cósmica até o seu valor no passado relativamente recente? A outra coincidência cósmica, de que a aceleração parece ter início na época exata em que se formam imensas estruturas, tem levado uma minoria significativa de cosmólogos a suspeitar que o problema é a nossa incapacidade de modelar corretamente o universo granulado e não uma misteriosa energia do vácuo ou modificações na teoria da gravidade.
De fato, como só medimos distâncias de supernovas, as medições reais nos dizem apenas que as supernovas são mais esmaecidas do que seriam em certos modelos padrão de cosmologia. Esses modelos de Friedmann-Lemaître datam da década de 1920. Eles simplificam drasticamente as equações de Einstein ao assumirem que o universo se expande uniformemente, qual um fluido homogêneo, com curvatura espacial igual em todo ponto.
Entretanto, três décadas de levantamentos detalhados de milhões de galáxias revelam que esse quadro simplista não é bem assim. Embora fosse bastante regular antes de se formarem as galáxias, o universo é bastante granulado agora. É dominado por espaços vazios que compõem a maior parte do volume no universo atual: 40–50% do volume do universo está em vácuos de apenas um diâmetro característico – 30/h Mpc[i] – e, além disso, há vários mini-vácuos. Aglomerados de galáxias delineiam uma teia cósmica de lençóis ou ‘paredes de bolhas’ que circundam os vácuos e delgados filamentos que os costuram.
Diante disso, não há razão para assumir que uma estrutura complexa como essa evolua como um fluido homogêneo. De fato, a expansão local pode não estar acelerada. A luz das distantes supernovas atravessa tanto os vazios em expansão (de modo mais rápido), quanto as paredes em expansão (de modo mais lento). Logo no início, a fração dos vácuos é minúscula; entretanto, por crescerem mais rapidamente, acabam formando a maior parte do volume. Uma ilusão de aceleração pode ser gerada quando os vácuos de crescimento mais rápido passam a contribuir mais para a distância média de deslocamento da luz a partir de objetos distantes do que as paredes de crescimento mais lento.
Vários cosmólogos diriam, portanto, que apenas uma palavra foi omitida da citação do Prêmio Nobel de 2011: a palavra ‘aparente’ deveria ser acrescentada antes de ‘aceleração’. O fato de isso não ter ficado óbvio para o comitê do Prêmio Nobel é reflexo do fato de ainda se tratar de uma opinião minoritária.
Por ora, continua não sendo possível resolver diretamente as equações de Einstein para uma distribuição da matéria complexa como a que observamos, nem através de computadores. As simulações computadorizadas tradicionais assumem simplesmente a expansão uniforme da cosmologia padrão que é inserida à mão, enquanto a gravidade newtoniana é acrescentada em cima disso tudo para formar as estruturas. Embora consigam reproduzir muitas das características do universo observado, essas simulações de N-corpos não logram os mesmos resultados no nível dos detalhes mais apurados: os vácuos observados são mais vazios do que as simulações.
Se perguntarmos o tamanho da caixa que precisamos considerar para o universo real observado como objetivo de vermos uma estrutura semelhante de vácuos e paredes, talvez seja pelo menos da ordem de 100/h Mpc. Dado que algo aproximado a uma expansão uniforme seja observado para suficientemente grandes escalas, a pergunta pertinente é: como tirar a média das equações de Einstein para uma distribuição irregular da matéria de forma a conseguirmos algo que talvez seja regular quando tirado a média na escala de 100/h Mpc? Em geral, a média das equações de Einstein não é a equação de Friedmann das cosmologias homogêneas padrão. Isso acontece porque a variância na geometria passa a ser tão importante quanto a média na descrição da evolução cósmica.
Foram feitas algumas sugestões para calcular as correções da ‘reação reversa’ à evolução cósmica a partir das estruturas cósmicas. Um dos esquemas mais aceitos é aquele no qual Thomas Buchert, da Universidade de Lyon, tem trabalhado bastante. A interpretação desses esquemas é polêmica, pois não está claro se as correções são grandes o suficiente para explicar o histórico observado de expansão. De fato, como as equações envolvem médias estatísticas em muitos pontos no espaço, não fica claro, de imediato, como as quantidades médias se relacionam com nossas próprias medições feitas apenas num ponto do espaço.
Minha contribuição tem sido atacar o problema da interpretação das medições num universo granulado com a média de Buchert, remontando aos primeiros princípios da teoria de Einstein para incluir a posição do observador. Pode haver variações imensas na curvatura do espaço entre vácuos onde não existe matéria e galáxias onde se localiza a matéria. Como o tempo é retardado pela matéria, isso pode afetar o andamento dos relógios de observadores em galáxias se comparados aos observadores no vácuo. Desta vez, a dilatação é diferente da dilatação convencional no tempo gravitacional como é costume pensar, já que estamos habituados a lidar apenas com sistemas estáticos, onde grandes efeitos de dilatação do tempo só ocorrem perto de objetos muito compactos, como os buracos negros.
Na cosmologia, estamos lidando com campos fracos, de forma que o efeito que descrevo surge como surpresa. Sua origem é a relativa desaceleração em volumes ‘localmente homogêneos’ de regiões com densidades diferentes em expansão. As regiões mais densas se desaceleram mais rapidamente. Sabemos da relatividade especial que uma desaceleração relativa leva a diferenças na calibração dos relógios dos observadores. Pelo princípio da equivalência, deve-se esperar efeito semelhante para desaceleração em volumes localmente homogêneos pela gravidade. No caso do universo, uma desaceleração relativa extremamente pequena, normalmente na ordem de 10-10 m/s2 (a largura de um átomo por segundo quadrado), não obstante, pode levar cumulativamente a uma diferença nas velocidades dos relógios de 38% entre um observador numa galáxia e outro numa posição de ‘volume-médio’ no vazio. Embora a desaceleração relativa seja instantaneamente pequena, tem-se toda a idade do universo para acumular as diferenças de relógios. Efetivamente, isso significa que existe uma diferença entre o tempo do ‘volume-médio’ da média das equações de Einstein e os relógios de observadores reais e supernovas contidas em galáxias, todas formadas em regiões que eram maiores do que a densidade crítica.
Agora, se as mudanças na evolução cósmica média e a distância média percorrida pela luz vão bastar para dar aceleração aparente é algo que depende do relógio usado. Afinal, as acelerações envolvem duas derivadas temporais das distâncias medidas. No ‘cenário do tempo’ que tenho desenvolvido acontece que observadores ideais em vácuos não inferem qualquer aceleração da expansão cósmica, mas observadores nas galáxias, sim. O início dessa aparente aceleração coincide com a época em que os vácuos começaram a crescer: uma característica do modelo e não uma coincidência.
Com o cenário do tempo, construí um modelo de cosmologia que se encaixa nos dados das supernovas e ainda passa noutros testes cosmológicos. Há diferenças cruciais entre a cosmologia padrão, que serão testáveis no futuro. Como as maiores inomogeneidades ocorrem em momentos mais tardios, os testes mais interessantes são aqueles que podem se aplicar ao ‘nosso próprio quintal’ em escalas menores que 100/h Mpc. De fato, novos resultados que obtivemos por investigação da relação da distância com o desvio para o vermelho nessas escalas de forma independente de modelo vêm sugerindo resultados bastante intrigantes (ver arXiv:1201.5371).
Anos de refinamento e vários testes diferentes serão necessários antes que a explicação sugerida para a energia escura possa ser declarada um sucesso ou um fracasso. Entretanto, suspeito que, seja qual for o desfecho do enigma da energia escura, o universo rico e complexo que se revelou através da nova era da astronomia exige que analisemos com maior minúcia as premissas que ora damos como favas contadas. Antes de concebermos exóticos campos de matéria ou de modificarmos nossas leis básicas da gravidade, precisamos pensar mais cuidadosamente sobre as áreas inexploradas da teoria de Einstein.
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David Wiltshire é professor da Universidade de Canterbury, Christchurch, Nova Zelândia. Junto com seus colaboradores, é autor do modelo cosmológico chamado ‘timescape scenario’.
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Nota
[i] Aqui, “h” é a constante adimensional de Hubble onde H0 = 100h km s-1 Mpc-1.