Correspondências significativas entre cientistas visionários
Situações coincidentes, encontros fortuitos e similaridades surpreendentes sempre ocorrem em nossas vidas. Algumas, apenas curiosas, outras, mais interessantes, e outras mesmo inquietantes.
Inúmeras explicações poderiam ser aventadas para cada uma dessas ocorrências – tanto baseadas em fatos da realidade física, quanto em sentidos de uma realidade psíquica; ou, ainda, em sinais de uma supra realidade, algo acima de nós, se não a determinar, pelo menos, a influenciar a sorte desses encontros.
Foi considerando que coincidências ocorrem, mais ou menos estranhas e surpreendentes, e que o simples reconhecimento de sua ocorrência as torna objeto da ciência, que o biólogo austríaco Paul Kammerer defendeu a sua Lei da Serialidade, uma espécie de teoria das coincidências, publicada em 1919.
Biólogo, Paul Kammerer provocou fortes reações negativas na comunidade científica quando tornou pública a sua pesquisa sobre coincidências. Este fato por si só – admitir coincidências como objeto de estudo científico – suscitou imediatas manifestações de reprovação e discussões sobre a posição de Kammerer dentro da Academia Austríaca de Ciências. Suspeitavam de seu juízo. Mas, em sua defesa, ele alegou que:
A recorrência de dados similares ou idênticos em áreas contíguas do espaço ou do tempo é um fato simplesmente empírico que deve ser aceito e não pode ser explicado como coincidência – ou melhor, faz da coincidência uma regra de tal alcance que o conceito de coincidências em si é negado.[1]
Neste processo, Einstein também defendeu Kammerer, afirmando que o seu trabalho era “original e de modo algum absurdo.”[2]
Paul Kammerer prosseguiu assim com a sua pesquisa singular, observando, anotando e classificando pessoas e situações com determinadas características em todos os lugares que frequentava. Se conseguisse coletar, ordenar, classificar e cruzar um grande número de dados, poderia identificar séries de similaridades e, talvez, uma lei para a sua ocorrência.
Trabalho imenso e infindável, Kammerer colecionava coincidências temporais e espaciais, classificadas por ordem (número de coincidências sucessivas), força (número de coincidências paralelas) e parâmetros (número de características em comum). Forma. Cor. Posição. Trajeto. Período. Frequência. Paralelismo. Oposição. Intensidade. Dissecação insana da realidade, que Kammerer realizava com crescente e admirável fascínio.
Em 1919, publicou A Lei da Serialidade.
“Uma série se manifesta como uma recorrência legítima da mesma ou de coisas e eventos similares – uma recorrência, ou agrupamento, no tempo ou espaço, onde os membros individuais da sequência – até onde possa alcançar uma análise cuidadosa – não estão conectados pela mesma causa ativa.”[3]
“A serialidade é ubíqua e contínua na vida, na natureza e no cosmos. É o cordão umbilical que conecta pensamento, sentimento, ciência e arte com o ventre do universo que os gerou. (…)
Chegamos assim na imagem de um mosaico-mundo, ou caleidoscópio cósmico, que, apesar dos constantes embaralhamentos e rearranjos, cuida também de aproximar similares.”[4]
Aonde levaria a imaginação científica de Kammerer, não saberemos jamais. Se a pesquisa parecia infindável, infinda ficou, com a súbita morte de Kammerer. A natureza de sua pesquisa deixara dúvidas a respeito de sua sanidade. Afinal de contas, que espécie de delírio divino o movera a perseguir coincidências? O que pretendia com isso? Matou-se com um tiro na cabeça, em uma montanha nos Alpes austríacos, noticiaram os jornais, no dia 23 de setembro de 1926.
Mais de vinte anos depois, o psicólogo Carl Gustav Jung e o físico Wolfgang Pauli publicaram o livro A Interpretação da Natureza e a Psique (1948), juntando Sincronicidade: um princípio de conexão a-causal, de Jung, e A influência de ideias arquetípicas nas teorias científicas de Kepler, de Pauli.
De acordo com Jung:
“Sincronicidade significa a ocorrência simultânea de um determinado estado psíquico com um ou mais eventos externos, que parecem significativamente paralelos ao estado subjetivo momentâneo – e, em certos casos, vice-versa.”[5]
Já para Pauli, o termo seria muito genérico. Em uma das inúmeras cartas que trocou com Jung, entre 1932 e 1958, ele comenta:
“Eu achei melhor usar o termo ‘correspondência-significativa’ do que ‘sincronicidade’, para colocar mais ênfase no significado do que na simultaneidade e fazer uma ligação com a velha ‘correspondentia’.”[6]
O emprego de termos da física para a análise de instâncias psíquicas representava um problema – que Pauli não esconde de Jung.
“Quando você usa termos físicos a fim de explicar termos ou achados psicológicos, eu tenho a frequente impressão de que, com você, eles são como imagens oníricas da imaginação. (…)
Tais sentenças não podem ser entendidas por nenhum físico.”[7]
Em resposta aos amigos, físicos e historiadores, que lhe recomendavam não publicar o seu artigo junto com o de Jung, Pauli escreveu para Markus Fierz[8]: “O livro em si é, fatalmente, uma ‘sincronicidade’ e deve permanecer assim.”[9]
Mas, Pauli considerava que a terminologia apropriada para tal aproximação era um problema para ele também. Depois de enviar alguns desenhos e um esboço para Jung, ele comenta que:
“O último é um exemplo típico de uso errado da terminologia da física, que se afirmou de fato intrusivamente do inconsciente, com um certo grau de persistência.”[10]
O que o levou a buscar uma linguagem neutra que pudesse abarcar os dois campos:
“A linguagem do contexto [arquetípico] é, em primeira instância, uma linguagem de parábolas. Ela parece demandar que a razão, por meio de um trabalho dedicado, a traduza em uma linguagem neutra que preencha adequadamente os seus requisitos, considerando a distinção entre ‘físico’ e ‘psíquico’. Essa linguagem neutra ainda não existe, mas alguém pode tentar fazer progressos no sentido de sua construção por meio da análise cuidadosa das analogias, tais como as diferenças no que é indicado pela mesma palavra na linguagem da parábola.”[11]
Um dos primeiros escritos pelos quais Wolfgang Pauli tornou-se reconhecido no meio científico foi uma interpretação da Teoria da Relatividade, publicada aos vinte anos (1921), que mereceu um eloquente elogio do próprio Einstein.[12] Em 1925, Pauli formulou o Princípio de Exclusão, pelo qual recebeu o prêmio Nobel de física, em 1945. No começo dos anos 30, propôs a existência do neutrino – o que levou quase três décadas para ser comprovado. Em 1948, escreveu o ensaio (que nunca publicou) Exemplos modernos da “física de fundo”, onde tratava da influência da psyche sobre a physis.[13]
A essa altura, a ocorrência de eventos resultantes dessa influência já havia recebido, muitos anos antes, o apelido de Efeito Pauli, numa brincadeira com o seu Princípio de Exclusão. Isso depois de diversas situações nas quais a sua presença teria interferido no funcionamento de aparelhos e experimentos, provocando quebras e precipitando reações por vezes explosivas.[14] Ele mesmo, por vezes, descrevia esses eventos como exemplos do Efeito Pauli.[15]
Certa vez, alguns de seus colegas resolveram pregar-lhe uma peça e construíram um mecanismo preparado para despencar um lustre no momento em que Pauli adentrasse um salão de festas. Mas, na hora em que Pauli chegou, o mecanismo emperrou e o lustre não despencou. O que, mais uma vez, teria confirmado o seu efeito.[16]
Reconhecido pelo rigor intelectual e científico, os interesses de Pauli não se restringiam ao conhecimento racional.
“Eu defendo um direito ilimitado da razão controlar os sistemas de pensamento; no entanto, eu aludo a um modo de conhecimento extra-racional, que é adquirido com recursos diferentes da razão. Eu penso que esse modo de conhecimento extra-racional é primordial e essencial. Não há apenas pensamento, há também instinto, emoção, intuição, etc.”[17]
O objetivo de Pauli era conseguir “integrar a ciência natural num quadro holístico maior”[18]. Em correspondência com Jung, discutiam parapsicologia, telepatia e telecinese (Efeito Pauli); e, na análise dos seus sonhos, que descrevia em detalhes para Jung, além de psicologia e física quântica, tratavam de alquimia, biologia, filosofia, história, mitologia, religião.
“Estou te enviando uma edição especial de uma palestra apresentada pela primeira vez em Mainz, “A ciência e o pensamento ocidental”, que aborda o problema da relação entre ciência e misticismo e o coloca em uma moldura histórica. Desde o meu trabalho sobre Kepler, esse problema realmente me levou a quebrar a cabeça.”[19]
Em carta para o amigo Markus Fierz, Pauli comenta:
“No que concerne à minha relação com a física e a psicologia, que está indubitavelmente entre as peculiaridades da minha experiência intelectual, o que é decisivo para mim é que eu sonho sobre física como o Sr. Jung (e outros não físicos) pensa sobre física.”[20]
Na análise de seus sonhos, Pauli considerava os conteúdos sonhados no período dos equinócios particularmente significativos, pois o equinócio equivaleria a uma época “de relativa instabilidade psíquica, que pode se manifestar negativa e positivamente (criativamente).”[21]
Em um desses sonhos, um avião pousou e vários estrangeiros desembarcaram. Entre eles, um estranho que se aproximou e lhe disse:
“Você não deveria exagerar as suas dificuldades com a noção de tempo. A garota escura tem apenas que fazer uma viagem curta, a fim de determinar o tempo.”[22]
Em outro, Pauli associou o estranho – que aparece recorrentemente em seus sonhos – ao mago Merlin, das Histórias da Távola Redonda, e analisou-o em uma longa carta para Emma, mulher de Jung:
“[O estranho] é uma figura espiritual clara, com um conhecimento superior, e, por outro lado, ele é um espírito natural obscuro. Mas o seu conhecimento o faz retornar repetidamente à natureza, e as suas origens obscuras são também fontes do seu conhecimento, de modo que, por fim, ambos aspectos se revelam facetas da mesma ‘personalidade’.”
Pauli encerrou a carta dizendo que:
“Quando métodos racionais na ciência chegam a um ponto sem saída, é dado um novo préstimo na vida àqueles conteúdos que foram expulsos da consciência temporal no século XVII e mergulharam no inconsciente. O estranho usa alegremente a terminologia da ciência moderna (radioatividade, spin) e da matemática (números primos), mas o faz de uma maneira não convencional. Na medida em que, no final das contas, ele deseja ser compreendido, mas ainda tem que encontrar o seu lugar na nossa cultura contemporânea, ele está, como Merlin, precisando de uma redenção.”[23]
Em outra carta, para Aniela Jaffé, secretária de Jung, confessa:
“Como Merlin, ele conhece o futuro, mas não pode mudá-lo. Na minha opinião, no entanto, o homem pode alterar o futuro. Eu quero reconhecê-lo, falar com ele de novo, aproximar um pouco a sua redenção. Este, acredito, é o mito da minha vida.”[24]
A história de Paul Kammerer me persegue desde que a conheci. Escrevi-a como peça teatral há muitos anos, e desde então já a reescrevi algumas vezes. Sinto que tenho que divulgar a sua incrível história. Talvez incrível demais. Kammerer envolveu-se em uma trama rocambolesca, onde figuram alguns dos mais destacados personagens de seu tempo – como ele mesmo o foi, antes de cair em desgraça e ser banido da história da ciência.
Kammerer, na verdade, tinha ficado famoso como defensor de uma teoria sobre a herança genética de caracteres adquiridos. Trabalhando no Instituto de Biologia Experimental, instalado no Vivarium de Viena, suas experiências investigavam as reações aos estímulos externos, como a alteração das condições ambientais, ao longo de gerações. Pelos resultados de suas experiências com salamandras, Kammerer recebeu da Sociedade de Ciência Natural de Frankfurt, em 1909, o Prêmio Sömmering para Descobertas Fundamentais em Fisiologia.[25]
O caso da salamandra cega Proteus foi um dos seus famosos experimentos sobre a alteração de caracteres em anfíbios.[26] Essas salamandras vivem em profundas cavernas absolutamente escuras e não possuem mais do que rudimentos de olhos sob a pele. Quando criadas em laboratório sob luz branca, desenvolveram manchas escuras na pele sobre os olhos. No entanto, quando criadas sob luz vermelha, as salamandras desenvolveram os olhos completos e a visão.
A luz branca, mais forte, teria ameaçado os sensíveis órgãos da visão (mesmo rudimentares), e o pigmento escuro, uma reação de proteção contra isso (um filtro, como lentes de óculos escuros). Já a luz vermelha, de maior comprimento de onda, menos agressiva (como num laboratório de fotografia), teria favorecido o desenvolvimento desses mesmos órgãos fotossensíveis.
Kammerer era conhecido pela sua incrível aptidão para a criação e a reprodução de animais em laboratório, e pela paixão, quase obsessiva, com que se dedicava aos seus espécimes. Alguns de seus experimentos no Vivarium envolviam o lagarto Lacerta. Ao nascer, a primeira filha de Kammerer recebeu de herança, além dos caracteres genéticos, o nome de Maria Lacerta.[27]
O caso das rãs parteiras foi o seu mais famoso experimento. A interferência, nesse caso, se deu com a elevação da temperatura ambiente. A rã parteira, diferente de outras rãs, acasala em ambiente seco e não possui manchas nas patas. Já as rãs mais próximas destas, que acasalam na água, têm as manchas, com uma pequena protuberância.
Sob temperatura elevada, as rãs parteiras passaram a tentar acasalar na água também. No início tiveram dificuldade para tal, pois os machos escorregavam das costas das fêmeas. Com o tempo, as novas gerações acabaram desenvolvendo manchas nas patas, iguais às de outras rãs, com micro ventosas, que facilita a cópula subaquática – para a qual não estavam originariamente adaptadas.
Esse resultado foi amplamente divulgado e Kammerer tornou-se uma celebridade, além dos limites do meio científico. Viajou pela Europa e os EUA para dar palestras e demonstrar os seus experimentos. Na disputa entre darwinistas e lamarckistas, que sempre suscitara debates acalorados na Academia de Ciências de Viena, o caso das rãs parteiras caiu como uma pedra.
A teoria de Kammerer pretendia incluir a herança de caracteres adquiridos, de Lamarck, na seleção natural de Darwin. Com o resultado daquela experiência e a crescente popularidade de Kammerer, se alguns poucos aliados exultaram com as provas, o objetivo de seus opositores passou a ser destruí-las, ou desqualificá-las.
Em testes de prova, realizados muitos anos depois, descobriram que as manchas tinham sido resultado de injeção de tinta nanquim. A notícia da fraude caiu como uma bomba – e não só na comunidade científica. Desqualificaram as provas e destruíram a reputação de Kammerer. A vergonha pela fraude justificava o suicídio, era o que todas as notícias sobre o caso levavam a crer.
Mas dá para acreditar nisso? Professor e cientista, com sólida e bem-sucedida carreira, porque cometeria uma fraude tão primária?
A experiência com as rãs tinha sido realizada entre 1905 e 1910, e nos testes de então não fora encontrada nenhuma irregularidade. Durante a guerra (1914-18), as rãs ficaram guardadas no laboratório. Os novos testes só foram realizados em 1926, com o único exemplar que tinha ficado preservado do experimento.
Sua teoria não agradava nem a lamarckistas ortodoxos nem a neo-darwinistas. O sucesso e a celebridade que alcançou despertaram a inveja de seus pares que, salvo raríssimas exceções, trabalhavam anonimamente em seus laboratórios, com pesquisas que, a despeito de sua relevância, não repercutiam além do próprio meio.
E Kammerer tinha ascendência judaica. O laboratório do Vivarium fora fundado por três cientistas judeus em 1903, para o desenvolvimento de pesquisas avançadas em biologia. E, ao contrário da Universidade de Viena, aceitava mulheres para desenvolver pesquisas, bem como cientistas estrangeiros.
Havia grupos antissemitas na Áustria desde o século XIX. O partido Nacional Socialista foi fundado em 1920. E em 1938, com a supremacia germânica sobre a Áustria, o laboratório foi imediatamente fechado.
Em sua defesa, aventou-se a possibilidade da fraude ter sido perpetrada por algum assistente, talvez cooptado por seus opositores. Mas não havia como saber quem, nem como provar nada.
Uma das assistentes de Kammerer no Vivarium, na época da experiência com as rãs, foi Alma Mahler, com quem ele também teve um caso amoroso. Quando o primeiro marido dela – o compositor Gustav Mahler – morreu, Kammerer ameaçou suicídio, caso ela recusasse a sua proposta de casamento. (Mesmo rejeitado, ele não cumpriu a promessa.)[28]
Alma também era compositora, mas tinha abdicado da música em favor da vida conjugal. Seu primeiro caso amoroso, aos 17 anos de idade, havia sido com o pintor Gustav Klimt, que era dezessete anos mais velho – a famosa tela O Beijo (1907-1908), teria sido pintada em sua homenagem. Aos 22 anos, Alma casou-se com Mahler. Poucos anos depois, com a morte de Mahler (e a ameaça de Kammerer), ela se envolveu em um caso atribulado com o pintor Oskar Kokoshka – que também lhe dedicou uma famosa tela: A Noiva do Vento (1913). Alma casou-se ainda com o arquiteto – e fundador da Bauhaus – Walter Gropius, em 1915, e com o escritor Franz Werfel, em 1929. Em 1938, sendo Werfel judeu, o casal fugiu para o exílio nos Estados Unidos.
Mas Alma, apesar de ter se casado e relacionado com vários homens de origem judaica, mais de uma vez manifestou o seu sentimento antissemita, como ao afirmar que Gropius, exemplo de ariano, tinha sido o único homem apropriado para ela – todos os outros eram pequenos judeus.
Quando o escândalo das rãs estourou, Kammerer foi procurá-la, para ver se ela sabia alguma coisa sobre a fraude, e ajudá-lo a se defender. Ela deveria saber que, como cientista, ele não seria capaz de cometer aquele tipo de fraude. Mas ela não apenas negou saber qualquer coisa sobre o caso, como afirmou, mais tarde, que Kammerer seria capaz de induzir resultados positivos para confirmar os seus experimentos. Teria Alma algo a ver com a tinta nas patas das rãs?
Ela e sua família simpatizavam com o nacional-socialismo e a ideia de seleção natural era a sua base. A teoria da hereditariedade de caracteres adquiridos ameaçava o princípio da supremacia genética ariana. Mesmo que a teoria de Kammerer não fosse contra a seleção natural, e apenas a complementasse, era justamente esse complemento que colocava em xeque todo o castelo construído em cima de uma hereditariedade supostamente privilegiada. Se a adaptação pudesse influir na herança genética, a estrutura do privilégio étnico ariano ruiria.
E Kammerer afirmava que:
“As características pelas quais raças, espécies, gêneros, famílias e classes são distinguidas em determinado lugar e de determinada maneira foram criadas por influências externas. Elas são adaptações ao mundo exterior.”[29]
Já para os ideais da revolução soviética, a hereditariedade de caracteres adquiridos servia como prova de que a transformação se faz na prática. A natureza pode e deve ser adaptada, acabando-se assim com a ideia de um privilégio genético que pudesse justificar a hierarquia entre classes sociais. Na verdade, o que estava em questão ali era uma revolução genética e social.
No seu livro A Hereditariedade de Caracteres Adquiridos (1923), Kammerer defendia que:
“O verdadeiro darwinismo, como o Socialismo, é uma doutrina de ‘desenvolvimento ascendente’ e precisa se ocupar com as massas, e não apenas indivíduos, ou ele perderá o seu objetivo. (…)
Muito acima da sua interpretação como uma teoria de evolução superior, o darwinismo é a doutrina de uma natural e comunitária humanidade.”[30]
E aproveitava para criticar os interesses dos defensores da eugenia[31]:
“Abusando do nome de Darwin, os teóricos da raça (…) proclamam evitar a mistura de política e ciência, mas eles rastejam em volta do trono e altar, e ainda, por vezes, ‘colorem’ a verdade para tirar vantagens partidárias.”[32]
Por essas e por outras é que Kammerer foi convidado pela Universidade de Moscou para lecionar e levar adiante os seus experimentos. Aceitou a posição, antes do escândalo da fraude. E, mesmo depois da notícia se espalhar pela imprensa internacional, a universidade reiterou o convite, acusando o caso como sabotagem. E produziu ainda, dois anos depois, um filme sobre Kammerer, chamado A Salamandra (1928)[33].
A saída de Kammerer estaria então na União Soviética, onde continuava a desfrutar de grande prestígio, insuflado pela sabotagem de que teria sido vítima, e para onde seguiria, depois do escândalo. Mas ele nunca chegou a Moscou.
Kammerer foi encontrado morto, com uma pistola na mão, em uma montanha dos Alpes. Um bilhete escrito à máquina justificava o ato. Imediatamente, e sem qualquer investigação, confirmaram o suicídio. Será? Se ele foi sabotado, os resultados dos experimentos poderiam ser verdadeiros e Kammerer, realmente, o precursor de uma nova teoria da evolução. Um cientista austríaco e judeu, que realizava experiências avançadas de manipulação genética, a caminho de Moscou, deveria chegar ao seu destino e servir à União Soviética?
Trinta anos depois de Kammerer, foi a vez de Pauli criticar a aleatoriedade da seleção natural neo-darwinista. Em carta para o físico Niels Bohr, ele comenta que:
“Em discussões com biólogos, eu encontro grande dificuldade quando eles aplicam o conceito de ‘seleção natural’ em um campo de fato amplo, não sendo capazes de estimar a probabilidade de ocorrência, em um tempo empiricamente dado, justamente desses eventos que têm sido importantes para a evolução biológica.
Tratando a escala temporal empírica da evolução teoricamente como infinita, eles têm então um jogo fácil, aparentemente para evitar o conceito de intencionalidade.
Enquanto fingem permanecer dessa maneira completamente ‘científicos’ e ‘racionais’, eles se tornam realmente bastante irracionais, particularmente porque usam a palavra ‘acaso’, não mais combinada com estimativas de uma probabilidade matematicamente definida, aplicada a eventos muito raros e únicos, mais ou menos como sinônimo da velha palavra ‘milagre’.”[34]
E em outra, para o biólogo Max Delbrück:
“Provavelmente, a situação é complexa e, além do acaso sagrado, existem processos com um objetivo orientado e também influências causais do ambiente nas propriedades herdadas no caminho pelo citoplasma.”[35]
Na sua Conferência para pessoas estrangeiras, de 1953, Pauli propôs uma nova lei que parece fazer uma síntese das duas principais teorias de Kammerer:
“De acordo com essa hipótese, que difere tanto da concepção darwinista, quanto da lamarckista, nós encontramos aqui um terceiro tipo de leis da natureza, que consiste em correções das flutuações casuais devido a coincidências significativas ou propositais de eventos não conectados causalmente.”[36]
Há uma série de coincidências significativas entre Kammerer e Pauli.
Um era biólogo e especulou sobre as leis da física; o outro, físico, especulou sobre as leis da biologia. Ambos questionaram a causalidade e a casualidade nos dois campos, buscando uma razão para fenômenos considerados inexplicáveis. Ambos anteciparam teorias que levaram anos, se não décadas até se mostrarem viáveis ou comprováveis. Coincidências e sincronicidades talvez os tenham atraído além do que alcança a nossa racionalidade.
Quase um século depois das experiências de Kammerer com as salamandras e as rãs, e meio século depois da síntese de Pauli, a epigenética reavivou a possibilidade das rãs parteiras de Kammerer terem desenvolvido de fato as manchas que apresentavam. Sobre a origem do termo, seu autor explica que:
“[Epigenética] é derivada da palavra grega epigenesis, que Aristóteles usou para a teoria de que o desenvolvimento é ocasionado por uma série de interações causais entre várias partes; e lembra também que fatores genéticos estão entre os mais importantes determinantes do desenvolvimento.”[37]
Mesmo sem alterar a informação codificada nos genes, o processo epigenético altera a expressão dessa informação genética, ligando e desligando genes em diferentes tipos de células. As novas descobertas da biologia molecular comprovaram que mudanças nas condições ambientes podem induzir mudanças epigenéticas em um indivíduo que, em alguns casos, podem ser herdadas pela prole.
O verbete Lamarckismo, da Enciclopédia da Evolução (2002), termina com a mesma síntese proposta por Kammerer e Pauli:
“Está claro que adaptações evolucionistas surgem predominantemente por seleção natural, mas há provavelmente um papel também para o lamarckismo, não como um rival para a teoria evolucionista de Darwin mas como parte dela.”[38]
A Lei da Serialidade, por sua vez, também ganhou novo fôlego recentemente. De acordo com o matemático polonês, Tomasz Downarowicz:
“Surpreendentemente, o estudo de processos estocásticos dá embasamento para a Lei da Serialidade contra o ponto de vista cético, desde que, obviamente, sujeita a uma interpretação correta.”[39]
Kammerer teria conseguido, na verdade: antecipar a lei da serialidade e a epigenética; comprovar teoria dos caracteres adquiridos e hereditários de Lamarck, e complementar a teoria da seleção natural de Darwin.
Kammerer encerra o livro com uma previsão esperançosa:
“Eu falo apenas de possibilidades, não de uma certeza utópica,
quando manifesto a opinião de que as nossas crianças, e as crianças das nossas crianças irão alcançar muito mais rapidamente o que nós adquirimos diligentemente. Será mais fácil para elas executarem o que aprendemos depois do árduo treinamento; elas irão sobreviver facilmente ao que quase nos fez sucumbir. O que procuramos, elas irão achar; onde conseguimos apenas começar, para elas será uma feliz consumação; e onde batalhamos por uma vitória ainda incerta, elas, temos esperança, irão conquistar.”[40]
Em O Homem Errado (1956), Alfred Hitchcock conta a história de um homem acusado de um crime que não cometeu. O próprio Hitchcock abre o filme declarando que já fez muitos tipos de filmes de suspense, mas que aquele é diferente – porque se trata de uma história real, mas que, mesmo assim, tem elementos que são mais estranhos do que qualquer outro filme que ele fez.
Aristóteles dizia, em relação à poesia, que era melhor o impossível crível do que o possível incrível. É claro que não estava em jogo a credibilidade do narrador ou dos fatos narrados, mas o seu efeito sobre o público, isto é, a capacidade de comovê-lo – e levar à catarse. Talvez por isso seja tão difícil escrever essa história sem parecer que foi falseada para se tornar mais interessante, ou comovente.
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[1] KOESTLER, Arthur, The Roots of Coincidence. New York: Vintage, 1974, p. 86.
[2] Id. Ibid., p. 87.
[3] KOESTLER, Arthur, The Case of The Midwife Toad. New York: Random House, 1972, p. 137.
[4] KOESTLER, Arthur, 1974, p. 86.
[5] JUNG, C. G., Synchronicity: an Acausal Connecting Principle. Princeton: Princeton University Press, 1973, p. 34.
[6] MEIER. C. A. (Ed.), Atom and Archetype: The Pauli/Jung Letters, 1932-1958. Princeton: Princeton university Press, 1990, p. 44.
[7] MILLER, A. I., 137: Jung, Pauli and the pursuit of a scientific obsession. New York/London: Norton & Company, 2009, p. 57.
[8] Markus Fierz era um amigo de Pauli, que ele havia indicado para auxiliar Jung com os cálculos estatísticos da sua pesquisa sobre astrologia.
[9] Id. Ibid., p. 239.
[10] MEIER. C. A., 1990, p. 10.
[11] Id. Ibid., p. 40.
[12] Id. Ibid., p. xxxi
[13] O ensaio foi incluído por Meier em Átomo e Arquétipo. “O que eu entendo por ’física de fundo’ [‘background physics’] é a aparição de termos quantitativos e conceitos da física em fantasias espontâneas, num sentido qualitativo e figurativo, ou seja, simbólico.” Id. Ibid., p. 179.
[14] Há outros exemplos do Efeito Pauli no livro de Miller (2009).
[15] MEIER, C. A., 1990, pp. 33, 72.
[16] PEIERLS, R. E., Wolfgang Ernst Pauli, 1900-1958. In Biographical Memoirs of Fellows of the Royal Society. https://royalsocietypublishing.org/doi/pdf/10.1098/rsbm.1960.0014
[17] PAULI, W., In ATMANSPACHER, H. e PRIMAS, H., Pauli’s ideas on mind and matter in the context of contemporary science, in Journal of Consciousness Studies 13(3), 5-50, 2006, p. 34.
[18] Id. Ibid., p. 33.
[19] MEIER. C. A.,1990, p. 157.
[20] Id. Ibid., p. 53.
[21] MILLER, A. I., 2009, p. 217.
[22] Id. Ibid, p. 228.
[23] Id. Ibid. pp. 226-227.
[24] Id. Ibid. p. 228.
[25] TURRIZIANI COLONNA, F., Paul Kammerer’s Experiments on the Midwife Toad (1905-1910). Arizona State University, 2014. In Embryo Project Encyclopedia. http://embryo.asu.edu/handle/10776/8279.
[26] KAMMERER, P., The Inheritance of Acquired Characteristics. New York: Boni and Liveright Publishers, 1924, pp. 176-179.
[27] Id. Ibid., pp. 181-183.
[28] http://www.alma-mahler.com/engl/almas_life/almas_life.html
[29] Id. Ibid., p. 250.
[30] Id. Ibid., pp. 263, 265.
[31] Kammerer distingue a eugenia entre seletiva, ou “negativa” (que critica), e eugenia “positiva, ou produtiva, que acredita que, com a herança de caracteres adquiridos, possa ser vantajosa para a humanidade. Id. Ibid., p. 357.
[32] Id. Ibid., p. 267.
[33] O filme é um documentário fantasioso sobre a vida e os experimentos de Kammerer.
[34] Carta de Pauli para Niels Bohr, de 1955. In ATMANSPACHER, H. e PRIMAS, H., 2006, pp. 27-28.
[35] Carta de Pauli para Max Delbrück, de 1954. Id. Ibid., p. 28.
[36] De acordo com Pauli, “pessoas estrangeiras” se refere a pensamentos ainda não assimilados conscientemente. Id. ibid., p. 31.
[37] WADDINGTON, C. H., Principles of Embriology (1956). In ATMANSPACHER, H. e PRIMAS, H., 2006, p. 29.
[38] JABLONKA, E. e LAMB, M. J., Lamarckism (2002). Id. Ibid., p. 30.
[39] DOWNAROWICZ, T., Entropy in Dynamical Systems, New Mathematical Monographs 18. Cambridge, Cambridge University Press, 2011, pp. 132-155.
[40] KAMMERER, 1924, p. 366.