Comentários sobre dois artigos recentes de Cosmos e Contexto
Cosmos e Contexto publicou nas últimas semanas dois artigos referentes à organização da atividade científica. Um deles, de Roberto Amaral, Ministro da ciência e Tecnologia na administração do presidente Lula nos fala da importância da atividade científica e no desapreço da ciência pelo atual governo federal consubstanciado no enorme corte orçamentário proposto para o próximo ano; outro, de Martin Angel Corredoira, físico da Universidade de Canárias (Espanha) se concentra nas questões internas da ciência.
Dentro de uma perspectiva socialista, Amaral requer da atividade científica um instrumento de libertação da sociedade, dos povos em geral e em particular uma revolta à dominação dos grandes centros de tecnologia europeu e americano. Corredoira, enquanto físico, trata dessa questão de um ponto de vista interno, critica fortemente o papel controlador e autoritário de uma casta de cientistas que constituem o corpo visível do establishment da vigente ordem científica.
Em seu artigo, Amaral apontou os efeitos nefastos de uma política cientifica que reduz a importância no planejamento de órgãos como CNPq e CAPES, os verdadeiros pilares da formação das gerações futuras de cientistas.
Martin Corredoira retoma o discurso de Heidegger ao criticar a organização da ciência por não poder ser mais entendida como um valor de civilização, mas somente como uma atividade técnica e prática. A ciência, segundo Heidegger, não permite mais o aparecimento de pensamentos amplos, capazes de despertar o espirito e produzir reflexão sobre o mundo. Corredoira aponta a organização no interior da atividade cientifica – o que chamamos establishment – como a causa desse abandono da grandiosidade do pensamento cientifico.
Enquanto Amaral se orienta pela organização da sociedade em geral, Corredoira aponta a necessidade de uma revolta individual dos cientistas à dominação controladora pelos profissionais das organizações cientificas e seu papel inibidor de novas ideias fora do chamado main stream.
O exemplo mais evidente dessa crítica pode ser visto quando ele ironiza a afirmação dominadora e arrogante de que não se pode gastar financiamento de pesquisa para atividades que parecem desnecessárias ou relacionadas a questões que parecem ser totalmente compreendidas. Assim, seria desperdício um projeto que perseguisse algum objetivo amplamente conhecido, como por exemplo, inventar a roda.
Ao propor a renovação do interesse em repensar a roda, além de sua função utilitária, de uma determinada função especifica, acena-se com a perspectiva de deixar o pensamento voar por sobre essa especificidade e produzir ideias, projetos, programas para além da circularidade do pensamento. Pensar na roda, deformando sua configuração, indo além de sua simetria circular, enfatizando o deslocamento de sua circularidade espacial para, por exemplo, uma circularidade temporal e, assim, desembocar em um cenário cósmico do tipo proposto por Kurt Gödel. Ou então investigar o hegemônico cenário cosmológico apelidado de bigbang com outra perspectiva, indo além de sua singularidade que esconde um mundo. Produzir um outro mundo e apresentar a eternidade do cosmos como uma possibilidade a ser examinada com profundidade.
Cada um em seu território, ambos, Amaral e Corredoira, propõe subverter uma ordem imposta para controlar a sociedade e em particular o pensamento. Aparentemente em oposição, eles têm em comum um só desejo: o aumento da liberdade individual e coletiva.
Seguem dois comentários feitos por universitárias da Universidade Estadual Paulista UNESP Campus Rio Claro.
Existe um meio termo entre o necessário crepúsculo da era científica e a catástrofe dos cortes orçamentários?
Mariana Milani
A organização atual da Academia se estrutura no pensamento eurocentrado que propõe em seu discurso o domínio da Verdade. As críticas de Martin Corredoira (CosmoseContexto, Outubro 2021) elucidam aspectos nefastos de tal hegemonia dos conhecimentos: a máquina científica opera conforme a roda do capitalismo gira, numa lógica de produção e reprodução dos excessos: mais tecnológico, mais potente, mais artigos, mais títulos e se acumula, ao final (da vida), certificados que excluem as idiossincrasias humanas como ingredientes principais.
É esta ciência que devemos defender?
Um modo de olhar e descrever a natureza que afasta, em seu processo, as principais características que nos tornam humanos e tão necessárias àquele que deseja ampliar sua visão de mundo: liberdade, criatividade e curiosidade.
Propor o fim desta ciência, como sugere aquele autor, parece por um lado, uma necessidade inerente ao mundo conectado com a diversidade e o respeito às demais formas de conhecimento. Por outro lado (e não se limita somente a essas duas alternativas), a queda de estruturas fundamentais para o desenvolvimento científico, como ocorre no Brasil atualmente, muito bem descrito por Roberto Amaral ((CosmoseContexto, Outubro 2021), representa um declínio de outra ordem.
No contexto da chamada geopolítica global em que se vive majoritariamente sob regras do capitalismo, a produção científica e tecnológica permite certa autonomia diante das autodeclaradas nações “desenvolvidas”. Ao desestruturar as entidades públicas responsáveis pela Educação da nação, abre-se espaço para que entidades (muitas estrangeiras) interessadas acima de tudo – e de todos – em lucro, conduzam os saberes e as tecnologias conforme as demandas do capital.
O que deveria estar em discussão é a liberdade de investigar questões quaisquer que despertem interesse e a propagação desses conhecimentos como patrimônio da humanidade.
Ao aproximar-se do ponto de não retorno da transformação do Brasil em um país de maior independência diante do capital estrangeiro, opta-se por subjugar-se e aceitar passivamente a condição de escravizado. Se, por um lado, esta ciência livre, simplesmente curiosa do mundo sem submissão a suas consequências tecnológicas produz uma corrida global sem linha de chegada e técnicos-operários exauridos, esta ciência – ou suas variações – podem nos inspirar a criar mundos novos.
Que os caminhos são múltiplos, sabemos. Poderia haver entre eles, algum que permita igualmente a coexistência harmônica das mais variadas formas de conhecer, entender e interpretar – sem hierarquias ou alguém se propondo ao domínio da única verdade (a sua) – de forma que todos escolham suas interpretações da realidade? Sem a necessidade de impor ao próximo uma particular visão de mundo, seja ela baseada em evidências e observações ou não?
Quando se fala da importância da ciência, os ecos de Carl Sagan ressoam: “Ciência não é questão de opinião”. Apesar da veracidade da afirmação, muito usada para confirmar um argumento “científico” definindo o ponto final da conversa, perde-se de vista que as ciências são construídas sobre um robusto monumento erguido por pessoas que ali imprimiram suas opiniões a respeito do que consideravam os verdadeiros fatos da natureza. O discurso científico carrega uma série de afirmações paradoxais, ideológicas e passíveis de inúmeros questionamentos. As discussões sobre os fundamentos da ciência não são recentes e sempre trouxeram diferentes definições, critérios e estratégias. Qual está correta? Existe um único modo de produzir conhecimento científico? Quem define? As sociedades elitistas formadas por uns poucos?
Constrói-se no imaginário popular, propagado através de tempo-espaço pelos que contam a história – os vencedores, aquilo o que é e o que não é; aquilo que pode e o que não pode. Da mesma forma ocorre nas ciências, perpetuando uma visão bem estabelecida, bem aceita e bem adaptada às demandas das estruturas dominantes. Ao questionar o establishment científico e suas bases, produzindo um pensamento crítico, decolonial, irreverente e emancipatório, a reação natural no interior do establishment consiste em anular os argumentos com base numa coleção de certificados de um certo clube e utilizar a prática dos poderosos fazendo valer seu arrogante status na sociedade.
Um movimento necessário para se compreender a postura autoritária da Academia e aceitar a insignificância do domínio da Verdade global, uma invenção. Pode a cosmologia contribuir com a ruptura dos velhos modos ortodoxos e produzir reflexões a respeito de novas possibilidades? Quando adota a postura de dialogar entre campos, áreas, espaços virtuais e reais, do local ao global, encontrando nas interdependências uma relação solidária, a cosmologia – o estudo reflexivo do Todo – permite construir múltiplos caminhos que se entrelaçam, divergem, convergem, bifurcam, coexistem em harmonia.
Terra em transe
Camila Hardt
“É preciso ter asas quando se ama o abismo” [Nietzsche]
O cheiro azedo da sala de aula, o olhar cínico do professor, a porta entreaberta para fazer passar alguma fresta de ar. Do corredor para a sala. A aflição do arranhar do giz, na lousa. O pó que irrita o nariz. O barulho suave e inconveniente do ventilador. Que gira e gira e gira. E funciona a partir destes novos dispositivos elétricos, que se movem a partir do que chamamos corrente alternada.
Foi, de acordo com o que conta a história oficial das coisas, o desenvolvimento da
corrente alternada a partir da descoberta da relação íntima entre campo
magnético e campo elétrico, que revela também essa característica girante das coisas, dos campos, ventiladores, planetas, descargas, ventos, o que chamamos de grande revolução dos aparatos modernos. Um dos princípios do que entendemos por revolução tecnológica, cibernética, seja lá o que isso pretende significar.
O que está em curso, o que se passa, nos órgãos dos podres poderes do Brasil,
expressa também algo como este movimento circular da vida. Entre governos tirânicos e populistas, seguimos caindo rumo ao abismo da não-existência. E poderemos criar rotas alternativas, para nos desviar deste final catastrófico e resistir em vida?
A redução dos investimentos em educação do governo Bolsonaro revela consigo também este óbvio e nefasto desejo de pôr fim à Universidade Pública no Brasil. Estranhamente sincrônico ao momento em que a periferia, o movimento negro e teorias decoloniais passam a ganhar corpo e força no ambiente universitário, proporcionando e fomentando um espaço mais democrático e que permitiria que debates importantes em termos éticos dentro de tais áreas do conhecimento poderiam ser levados adiante. E o que pode parecer ruim carrega consigo perspectivas complexas e certamente não há apenas um lado para se observar esta situação.
Há quem chame um suposto fim da universidade pública no Brasil de fim do privilégio do conhecimento Europeu. Uma espécie de positividade diante do nosso notório abismo. Sabemos que as universidades, escolas, prisões, propriedades privadas, indústrias, expressam a arrogância do “desenvolvimento tecnológico ” da civilização europeia. Os princípios institucionais são maneiras de se manifestar, também, uma sociedade do controle, para o controle dos corpos, das sensações, das linguagens.
A universidade parece de um lado ditar a história oficial das coisas e criar um discurso homogêneo, uma homogeneidade de técnicas, formas, linguagens, a partir do que compreendemos como “ideal”, “melhor desenvolvido”, “mais apto”, e entre catracas, aprovações e reprovações nos perguntamos ainda, de dentro desses espaços, como compreender aquilo que ainda não compreendemos?
Compreendê-los seria, também, uma transformação de si. Dessa forma, a aparente homogeneidade dos espaços da universidade, dos saberes, carrega também um paradoxo: é utilizado para o controle, mas pode conter, em si, a diferença, já que a existência de espaços críticos possibilita também a existência de transformação. Conversar sobre o mundo é transformá-lo.
De forma violentamente pacífica, ainda que seja doloroso perceber a grandeza das misérias humanas, tomar consciência delas exige de nós uma negatividade, uma fresta, crítica, fratura, para então promover a diferença. Assim como as rugosidades das superfícies complexas promovem diferenças, assim como a partir do aumento da entropia gera-se a vida, o embate, o choque, o negativo são essenciais.
Byung-Chul Han em a Salvação do Belo critica a positividade dos espaços lisos. Segundo ele, espaços sem entraves, fraturas, espaços de curtir e compartilhar, de compartilhamentos, das redes sociais, trazem também a marca do ocidente. Em muito se relaciona à sociedade do controle criticada por Gilles Deleuze, já que, diante dessas novas bolhas de proteção que nos garantem os espaços do virtual, no qual não há embate ou enfrentamento ampliados, mas reduzidos, também nos colocam diante de uma óbvia condição de reféns: a linguagem algorítmica dos computadores carrega consigo uma única lógica e, com ela, nos deparamos com nossas próprias afinidades.
Unidos ao movimento de apropriação capitalista não permitiríamos o encontro, agora, com nada que nos violente. Afinal, se eu posso agora me aliançar apenas com o que é bom e faz sentido, por que escolher o sofrimento da continuidade, da dificuldade que trazem os cinco sentidos?
Ao pensarmos na discussão do fim da universidade pública faz-se urgente e necessário analisarmos também a situação das redes sociais e espaços virtuais pois engana-se quem supõe que agora, “livres de algumas instituições” conseguiríamos de fato promover mudanças significativas em nossos territórios. Fragmentados e apostando excessivamente apenas em poucos órgãos, relacionados à percepção do virtual, as desigualdades de acessos seguem em curso de maneira agravada e pouco falamos a respeito da ampliação de nossos sentidos. Como faremos para sentir o mundo e suas necessidades?
A alienação, o controle e as facilidades promovidas pelas redes sociais garantem o fortalecimento do capitalismo, já que o acesso às mesmas também não é universal e privilegia a lógica do próprio sistema, posto que produzido por uma elite milionária.
O monopólio algorítmico será o canal para a melhor instituição de ensino que poderíamos imaginar?
Agora, diante dessa estranha dificuldade do afeto, das sensações apaziguadas, das facilidades proporcionadas pela alienação, como encontraremos forças para nos impactarmos com as necessidades das vidas na Terra e podermos, então, nos afetar o suficiente para dizer que, sim, somos a Terra em transe?