Cinema 1900/2000: da Caverna de Platão à Matrix
Resumo
O ano de 1895 foi um marco no espírito do tempo de virada de século. As trinta e poucas pessoas que assistiram à Arrivé d’un train gare à La Ciotat (A Chegada de um Trem a Ciotat) estavam diante de uma experiência perceptiva e sensorial absolutamente nova. Sem noção do que estava ocorrendo, muitas correram para o fundo da sala com medo de serem atropeladas. O dispositivo cinematográfico mudou não só da sensibilidade humana, mas a própria definição intelectual das categorias de realidade, tempo, mudança e permanência.
Antes do cinema já haviam sido inventados alguns aparelhos de gravação como a fotografia (1820) ou o fonógrafo (1865), mas em nenhum deles era registrado o movimento de máquinas e seres humanos.
Em pouco tempo, esse experimento de final do século XIX dos irmãos Lumière causou profundo impacto. Primeiro em jornalistas, escritores e cronistas da época. Para depois impactar a filosofia, com Henri Bergson (a mente que opera como uma película cinematográfica), Edmund Husserl (a percepção da “realidade evidente” sem o conceito) ou Alfred Whitehead (o “universo que fotografa”).
O físico alemão Robert Jungk disse que a maior crise da virada do século foi a da percepção.
Ao mesmo tempo, muitos pesquisadores acreditam que o dispositivo cinematográfico descende diretamente do Mito da Caverna de Platão: partilharia da construção da irrealidade do mundo. Mas também o dispositivo fílmico poderia ser uma porta da saída dessa caverna com o seu potencial estético antirrealista, como demonstrou Meliés, contrapondo-se ao realismo dos irmãos Lumière.
Se o cinema foi capaz de impactar a filosofia e a cultura na virada de século, por outro lado o destino do cinema no século XX foi transformar-se em indústria, assumindo o realismo cinematográfico hollywoodiano e integrando-se à “caverna” da qual pretendia escapar.
Cem anos depois, o mesmo drive “espiritual” de final do século XIX (Teosofia, Espiritismo etc.) simultâneo a descoberta do eletromagnetismo e a transformação da eletricidade em informação com o telégrafo, também explode na virada do ano 2000 com o gnosticismo pop no cinema – cosmogonias e teogonias gnósticas do início da era cristã como matéria-prima de produtores e roteiristas no cinema.
Se o cinema impactou a filosofia e a cultura no século passado, o filme gnóstico tem o potencial de finalmente tirar o cinema da caverna de Platão. Caverna que no século XXI foi transformada numa Matrix com a tecnologia computacional.
Introdução
Dia 28 de dezembro de 1895 foi um marco no espírito do tempo de fim de século. Dentro da primeira sala de cinema, em pouco mais de 60 segundos, a primeira plateia acompanhou a chegada de um trem à estação e viu alguns passageiros desembarcarem. As trinta e poucas pessoas que assistiram à Arrivé d’un train gare à La Ciotat (A Chegada de um Trem a Ciotat) estavam diante de uma experiência perceptiva e sensorial absolutamente nova. Sem noção do que estava ocorrendo, muitas correram para o fundo da sala com medo de serem atropeladas.
Ao mesmo tempo, sem saberem do que se tratava aquela máquina apontada para eles, as pessoas filmadas não perderam tempo em acenar para a câmera, desviar o rosto para garantir a privacidade ou simplesmente encarar o dispositivo que estava apontado para a cena. O que reforçou ainda mais a assustador realismo para os incautos espectadores.
Claro que antes do cinema já haviam sido inventados alguns aparelhos de gravação como a fotografia (1820) ou o fonógrafo (1865), mas em nenhum deles havia o registro do movimento de máquinas e seres humanos.
Em pouco tempo, esse experimento de final do século XIX dos irmãos Lumière causaria profundo impacto primeiro em jornalistas, escritores e cronistas da época. Não se tratava de uma simples novidade tecnológica da moda. Tratava-se de uma radical mudança na percepção humana. O dispositivo cinematográfico continha, em potência, a força da mudança não só da sensibilidade humana, mas da própria definição intelectual das categorias de realidade, tempo, mudança e permanência.
A projeção das imagens da chegada de um trem na estação foi o ápice das transformações da modernidade pós-1870 que criaram um clima perceptivo de super estimulação, distração e sensação.
George Simmel falava sobre o “rápido agrupamento de imagem em mudança, a descontinuidade acentuada no alcance de um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões impetuosas (SIMMEL, 1950, p.410).
Perplexidade e entusiasmo se misturavam nos comentários de um cronista francês em 1896: “Triunfante, exultante, pincelado, afixado, arrancado em poucas horas e continuamente solapando o coração e a alma com sua futilidade vibrante, o cartaz de fato é arte… dessa era de agitação e riso, de violência, decadência, eletricidade e esquecimento” (ISKIN, 2014, p.116).
O cartaz de propaganda era um símbolo de uma modernidade urbana na qual arte, espetáculo e imagem se confundiam, impulsionada pelas invenções da fotografia (a invenção do “instantâneo”), seguida pelos dispositivos que colocaram as imagens em movimento como o fenacistoscópio de Joseph Plateau (a primeira ilusão de movimento em um desenho) em 1832, o cinetoscópio de Thomas Edison em 1894 e o cinematógrafo dos Lumière – resolvendo os problemas de animação das imagens da invenção de Edison.
A experiência cinematográfica, inserida nesse novo ambiente urbano frenético e de experiências fugazes, impactou tanto na forma como no conteúdo da maneira como filósofos, artistas e cientistas expressaram essa nova sensibilidade.
Por exemplo, o pensador Walter Benjamin voltou-se para a experiência do ambiente moderno em sua obra, interrompida pela morte, chamada “Trabalho das Passagens”. Benjamin explorou de forma mais profunda o momentâneo e o fragmentário, categorias da nova experiência que estavam alterando a percepção do tempo, da arte e da história. A própria obra era em si mesma fragmentada e fragmentária, composta por ideias, observações e citações descontínuas.
Benjamin associou essa bricolagem conceitual à própria montagem cinematográfica. Sua própria sensibilidade e estilo se deixava absorver por esse tropo do modernismo: o momentâneo e o instantâneo ganhavam o status epistemológico como único meio possível para expressar essa nova realidade.
Mas o salto qualitativo ocorreu antes em 1900 quando Edmund Husserl criou as bases da fenomenologia, corrente filosófica que alterou de forma decisiva as pesquisas sobre a percepção: o estudo de como de como as coisas que são informadas pelos nossos sentidos são alteradas em uma experiência de consciência, isto é, de como somos conscientes de algo – coisas, imagens, fantasias, atos, relações, pensamentos etc. Uma ciência em que o pesquisador deve primeiro observar o mundo, ir direto às coisas, sem pré-julgamento. Através da “intuição sensível”, observar o mundo e capturar a sua “verdade evidente”, de uma vez e sem conceitos.
O impacto do olhar maquínico da fotografia (a “pintura automática”, como cronistas definiram a foto) e do cinema documental dos Lumière pela primeira vez deram movimento às imagens instantâneas da realidade, certamente criou nos filósofos à intuição de que a realidade esconderia algo de essencial que deveria ser buscando em uma profunda investigação. Algo como uma “metafísica em queda” a qual se referiu Theodor Adorno na Dialética Negativa – aquilo que é eterno no abismo das experiências efêmeras da modernidade (Cf. ADORNO, 2009).
Intuição que se estende ao pensamento de Henri Bergson e sua crítica às ilusões teóricas que cometemos ao estudar a percepção. Segundo ele, porque nossa mente funcionaria como um mecanismo cinematográfico em oposição ao devir radical da realidade – não perceberíamos os intervalos dos diagramas, e tomamos apenas uma imagem média de um conjunto de imagens. Cada um dos diagramas seria o real.
Ou mesmo no filósofo e matemático britânico Alfred Whitehead (1861-1947), quando destaca o chamado “presente especioso”, uma deturpação da própria duração ao vivenciarmos o presente de forma expandida: paralisa o movimento inexorável do devir, semelhante ao mecanismo cinematográfico (Cf. WHITEHEAD, 1979).
Isso sem falar na convergência do mecanismo cinematográfico com a própria configuração do mundo microfísico advindo da física quântica: de que o tempo e o espaço poderiam ser quantificados por unidades discretas. Como em Max Planck (1858-1947, pai da teoria quântica, ao revelar a possibilidade de uma infinita divisibilidade, abrindo dessa maneira o caminho à moderna mecânica quântica. Vislumbrando uma realidade no qual ondas, partículas ou forças se convertem em “pacotes” de energia, revelando não só uma matéria descontínua, mas também formada em grande parte por “vazios” cujas ações ocorrem à distância. Vazios como os existentes entre os fotogramas de um filme?
Fica evidente o impacto epistemológico de corrente das imagens produzidas pelo cinematógrafo. Desde que foi possível expressar e representar filmicamente os movimentos externos e internos de todos os seres e a sensação do que são verdadeiramente os objetos no espaço, ficou abalada a crença na estabilidade e da realidade da matéria, como aponta João Mario Grilo após a leitura de Intelligence d’une Machine de Jean Epstein, 1946:
O cinema coloca dessa forma em crise a realidade da matéria, lançando uma dramática suspeita sobre a realidade dos elementos que a constituem, ele porá também em crise o paradigma da estabilidade(…) fazendo aparecer um mundo descontinuado (…) (GRILO,2007, p.67).
Porém, esse “robô” fotográfico e eletromecânico, capaz de mostrar as variações do tempo, a relatividade do espaço e alterar decisivamente a experiência perceptiva do mundo não teve para si mesmo o mesmo destino irruptivo e revolucionário.
No chamado “primeiro cinema” (período compreendido entre 1895 e 1910), os filmes exibidos faziam parte de feiras universais ou exposições com as maravilhas tecnológicas da época – filmes de caráter documental: gente tomando banho no rio, cenas urbanas, multidões, o mar batendo nas pedras etc.
Mas a partir de 1895 já circulava na França um tipo de filme bem distinto com temas diversos como números de magia, encenações de contos de fadas, gags burlescas, encenações de músicas populares, mostrados em vaudevilles, circos e teatros populares.
Era um cinema pré-narrativo, selvagem, puro acontecimento comunicacional, um evento no qual o público não ficava passivo como relata Raymond Fielding sobre o relato de jornais sobre show ocorrido em 1905 em uma exposição universal de Paris:
A ilusão era tão boa que quando se mostrava o trem atravessando cidades, membros da audiência frequentemente acenavam para que os pedestres saíssem do caminho e não fossem atropelados. Um destes espectadores começou a voltar todos os dias, pensando que mais cedo ou mais tarde o maquinista iria cometer um erro e ele veria um desastre de trem (FIELDING, 1983, p.116-130.).
Uma época em que o cinema não era apenas entretenimento, mas um acontecimento capaz de transformar vidas e que, para muitos pesquisadores, foi domesticado através do cinema narrativo ou “realista” da seminal indústria cinematográfica, como veremos adiante.
Teóricos do cinema (Cf. BAZIN,1991) retomaram a famosa alegoria da caverna de Platão: a comparação da sala escura de projeção com a própria caverna no qual os homens estariam presos na ilusão, assim como os espectadores acorrentados ao efeito de ilusão das sombras e imagens na famosa passagem de “A República de Platão”.
Porém o cinema-acontecimento mostrado nos primeiros momentos do cinematógrafo revelou um potencial irruptivo nunca antes visto na modernidade tecnológica. As imagens descontínuas, anárquicas, anti-narrativas e antirrealistas repletas de inesperadas trucagens provocaram uma trinca no tecido da realidade como comprovou o impacto na filosofia, ciência e cultura nesse período histórico.
Muito antes das comportadas e silenciosas salas escuras de cinema atuais na qual o cinema narrativo domesticado parece tranquilizar as pessoas e encorajá-las a retornarem às suas vidas cotidianas como nada tivesse ocorrido (a não ser duas horas de entretenimento), o primeiro cinema revelou algo de muito mais visceral e perigoso para a ordem social.
De um lado, impactou uma elite de cientistas e filósofos. Porém, para as massas essa ruptura não deveria chegar ao nível da consciência necessária para manter a ordem dos deveres cotidianos. A caverna platônica deveria passar incólume por toda essa transfiguração científica, cultural e perceptiva que marcou a virada para o século XX. Afinal, sua estrutura deveria ser mantida (pelo menos ao nível das massas) mesmo depois do dispositivo cinematográfico ter iniciado tantas transfigurações no cenário científico-cultural.
A “carne do mundo” entre os fotogramas
Como vimos acima, Henri Bergson dizia que nossa mente opera como fosse uma película cinematográfica. Em Matéria e Memória, Bergson fala de “imagem” como sinônima de fenômeno, aparição. Bergson pensava o próprio ser material como imagem: “a matéria ou aquilo que chamamos de matéria não é outra coisa senão um conjunto de imagens” (BERGSON, 1999, p.4). Um conjunto de imagens sucessivas, instantâneos, diante da qual apreendemos apenas a “essência” – uma imagem média de um conjunto de imagens que vão se transformando.
Quando percebemos essas imagens-movimento, nossa percepção determina recortes, isto é, determinados enquadramentos que se dão sempre por interesses práticos. Por isso para Bergson, a percepção é subtração e não adição.
Enquanto isso, no cinema cada diagrama mostra um instantâneo, fixo, onde nada se move. Para haver movimento é necessário que os fotogramas passem a certa velocidade para haver a ilusão de movimento como uma média de todo um conjunto de instantâneos.
De variadíssimos devires, nossa inteligência extrai apenas um devir geral. Constrói-se então uma ideia abstrata, a “Ideia” da Antiguidade grega, achando que o mundo é constituído por figuras permanentes e eternas. É a base do pensamento metafísico clássico.
Esses diagramas seriam a própria realidade. Porém, ignoramos que o filme-matéria não é os diagramas, é o movimento contínuo que constrói as ações. Acreditamos ver um contínuo de imagens quando há, entre elas, um vazio, um espaço no qual as imagens se tocam. Uma espécie de fronteira em que a imagem anterior desapareceu e a próxima ainda não foi percebida.
A imagem-movimento, essa percepção média equivocada dos instantâneos, é o próprio sentido da modernidade: o devir único guiado pela narrativa unívoca do progresso, da inovação, do efêmero e do superficial. Somos afetados (afecção, sensação) pelos instantâneos que compõem os fotogramas de uma película, porém nossa percepção cria a representação psíquica mediana, congelando tudo num único sentido ou devir.
Combinando o cinema a outra invenção da modernidade (a transformação da eletricidade em informação com o telefone), Bergson considerava o cérebro uma espécie de central telefônica e também uma “pantomima”. Seria como fosse uma máquina do esquecimento, para impedir que o pensamento se perdesse nos sonhos. Ele imita a vida do espírito, imita as situações exteriores às quais o espírito se adapta sendo, por isso, chamado de ‘órgão da pantomima’
Equivale a dizer que a relação entre o mental e o cerebral não é uma relação constante, assim como não é uma relação simples. Conforme a natureza da peça que se representa, os movimentos dos atores dizem mais ou menos sobre ela: quase tudo, no caso de uma pantomima; quase nada, no caso de uma comédia sutil. Da mesma forma, nosso estado cerebral contém mais ou menos de nosso estado mental, conforme tendemos a exteriorizar nossa vida psicológica em ação ou a interiorizá-la em conhecimento puro (BERGSON, 1999, p.7)
Como alternativa à mente como dispositivo cinematográfico, Bergson propõe a “duração-qualidade”: a busca da multiplicidade que se faz pela interpenetração desses momentos heterogêneos (os instantâneos em cada fotograma) numa continuidade temporal.
Em outras palavras, Bergson procura encontrar a realidade (e para nós o “acontecimento-comunicacional”) nos espaços entre os fotogramas, no virtual (no potencial) ao invés do atual (na ilusão perceptiva): a busca de um devir que dura, fazendo coexistir o momento presente com o momento passado numa só espessura do tempo. “Há apenas mudança, e não as coisas que mudam” (BERGSON, 2006, p.167).
Ou seja, Bergson procura encontrar a “carne do mundo” (Cf. MERLEAU-PONTY, 1992) no próprio dispositivo cinematográfico que cria a ilusão das coisas que mudam.
O Primeiro cinema
O escritor e cineasta Joseph Mankiewicz disse certa vez que a diferença entre a vida e os filmes é que nos filmes os acontecimentos fazem sentido – um enredo com começo, meio e fim com causas e consequências. Diferente da vida, o cinema em si seria uma forma de colocar ordem no caos da existência.
Se para Bergson a mente funcionaria de forma análoga ao dispositivo cinematográfico e a uma central telefônica, criando uma representação mediana da realidade na qual o atual se sobrepõe às potências do virtual (o acontecimento e o devir), será que o cinema também foi aprimorando essa função ao longo da modernidade? Isto é, a função de colocar uma ordem ao caos da existência?
Em outras palavras, passado os primeiros impactos culturais e epistemológicos das imagens em movimento, será que, na medida em que foi se transformando em indústria e instituição social, toda a potencialidade do cinema em implodir a ilusão perceptiva e colocar em xeque a caverna platônica cinematográfica (e por extensão, a própria ordem social) foi domesticada?
Diante do impacto radical nas ciências, cultura e sensibilidade, não seria, então, necessário impedir que tais imagens irruptivas também disseminassem caos e desordem na percepção cotidiana da tranquila rotina de trabalho das massas?
Essa tese da domesticação do primeiro cinema que tanto impactou a virada do 1900 é assim articulada por Flávia Cesarino Costa:
A domesticação que vai se instaurando no primeiro cinema parece ter a chancela do senso comum. Ela se estabelece como um processo de homogeneização na representação do espaço e do tempo, como um processo de enquadramento de forças divergentes, de fabricação de personagens sem ambiguidade, de finais felizes necessários. Ela faz a moralização de trajetórias, realiza um certo encarceramento dos movimentos histéricos incontroláveis, presentes nos objetos repentinamente animados e nos personagens possuídos que povoam os filmes de transformações. A instalação gradual do princípio de alternância na narração do cinema está ligada a esse movimento maior, talvez mais sutil, desta produção de causação necessária de aventuras, perdições e punições. A domesticação pode ser entendida nesse sentido como uma força homogeneizante, esta é a sua principal característica, e ela gradualmente se tornou dominante, seja dentro dos filmes – em sua linguagem -, seja fora deles – em seu contexto (COSTA, 2005, p. 69).
Para Flavia Costa, o primeiro cinema era caracterizado pela atração, espetáculo, performance – seu objetivo era espantar, maravilhar o espectador. O filme, em si, já era um acontecimento. Não havia desejo por verossimilhança ou realismo, formas abertas de relatos que podiam ser entendidas de múltiplas maneiras.
Por exemplo, a autora cita o filme Explosion of a Motor Car (Hepworth, 1900), filme inglês que possui os principais traços do primeiro cinema: brevidade, anarquia, senso de humor e trucagens: plano geral de um automóvel que se aproxima da câmera por uma estrada, um velho calhambeque lotado de pessoas com a animação de quem acaba de sair de uma festa. De repente a alegria é cortada por uma explosão, em um efeito de trucagem. Um policial chega correndo após a explosão, pega uma luneta e observa os pedaços de corpos dos passageiros que caem. O policial tenta proteger-se, mas depois mantém a compostura de autoridade, pegando um bloquinho de papel para fazer o relatório, remexendo parte de pernas, braços e troncos, com a típica fleuma de uma autoridade inglesa.
Não uma história, uma narrativa. Apenas a situação fantástica, o efeito hilariante da dissonância entre a explícita trucagem, o comportamento protocolar do guarda, a situação absurda descompromissada de qualquer moralidade e realismo.
O primeiro cinema é dominado por aparentes improvisações, confusão e muito movimento. Várias ações acontecem ao mesmo tempo, uma descontinuidade gritante entre planos e cenas na montagem dos filmes. Os atores parecem buscar no público uma aprovação para as suas performances: por isso, olham para a câmera, quebrando o realismo da “quarta parede”.
O antirrealismo e a negação da narrativa eram propositais e sintonizados em um espírito de época que via no cinematógrafo mais do que um entretenimento: era um acontecimento, aquilo que é irruptivo, que quebra a ordem do cotidiano por meio do maravilhoso e do fantástico.
Narração e domesticação do cinema
Não tardou para que grupos reformadores e moralistas atacassem o cinema nas suas formas não narrativas que, para eles, estaria estimulando um “nervosismo insalubre” – os eventos mostrados em um filme sem realismo, narrativa ou verossimilhança poderiam gerar uma espécie de intranquilidade explosiva.
Num ponto de vista da fenomenologia bergsoniana, o primeiro cinema era marcado pela virtualidade da imagem-movimento: sem uma narrativa que submete o Tempo ao Espaço – a linha contínua que recorta e seleciona as sensações, submetendo todas os devires virtuais a uma multiplicidade numérica ou quantitativa. Isto é, a uma sucessão fragmentada como passado, presente e futuro. O tempo puro como duração se sobrepunha ao Espaço, conferindo qualidade à experiência – surpresa, maravilhamento, ou seja, acontecimento comunicacional.
Flávia Cesarino se afasta da interpretação mais óbvia feita pelos historiadores, de que o primeiro cinema era dominado pela precariedade de um dispositivo técnico ainda desconhecido. Pelo contrário, percebe-se entre os diretores uma consciência explícita do meio que está sendo utilizado, comprovando principalmente pelas referências metalinguísticas. O cinema antirrealista era opção deliberada por muitos diretores, antes do ser domesticado pelo registro realista das imagens para uma nova classe social que substituiria os proletários dos nickelodeons: a classe média.
Por isso, desde o início o cinema tendeu entre o formalismo e o realismo. Diferente das tendências realistas e documentais, o ponto de vista de teóricos como Eisenstein, Lindgren e Arnheim é a de que o cinema deveria evitar restringir-se à mera representação objetiva da realidade. O cinema necessitaria ser libertado da obrigação de contar histórias, tornando-se uma arte sustentável apenas por suas riquezas formais. Ou, se histórias são contadas, como no caso do cinema soviético de Eisenstein, preocupar-se menos em preservar a continuidade dos encadeamentos espaços-temporais do que despertar a paixão do espectador através da montagem. Surrealistas, dadaístas e cubistas foram os primeiros a defender o cinema como arte através da possibilidade do diretor modelar o mundo fílmico e enquadrá-lo dentro de uma ideia abstrata.
Por outro lado, no meio do século XX críticos começaram a se contrapor a essa ideia formalista do cinema. Liderados por André Bazin, Bandelier e Kracauer, surge a escola realista que sustenta a radical objetividade do registro mecânico cinematográfico. O filme garante a possibilidade de revelar o mundo, e não simplesmente interpretá-lo. O filme não é uma representação, mas presentifica o real.
O ápice da domesticação foi a imposição do realismo cinematográfico na montagem do cinema clássico: o modo como os planos eram sequenciados buscava criar uma sensação natural de movimento. Por exemplo, se filmamos um diálogo entre duas pessoas e usamos dois planos diferentes, um enquadramento para cada ator, podemos tomar a fala de cada um em dias diferentes, mas restituir o fluxo desse diálogo ao montar os planos de modo sequencial e que aparente ser um fluxo natural, verossímil. O cinema não nos dá o movimento das coisas tal como elas são, no entanto é capaz de criar uma imagem desse movimento. Esse tipo de montagem vemos o tempo todo nas novelas, nas sitcoms etc.
Chaplin era um grande resistente à introdução do som no cinema, pois, segundo ele, acabaria com a “abstração cômica”, que universalizaria o cinema.
“O silêncio – algo que não pode ser comprado – quantos de nós saberíamos defrontá-lo? Os ricos compram o barulho. No entanto, nosso espírito se realiza quando estamos mergulhados no silêncio natural – esse silêncio que jamais recusa aqueles que o procuram. O som aniquila a grande beleza do silêncio (…) Não creio que minha voz possa contribuir com as minhas comédias. Pelo contrário, ela destruiria a ilusão que venho tentando criar, a ilusão de uma pequena silhueta que simboliza a graça… não uma pessoa real, mas uma ideia bem-humorada, uma abstração cômica” (HALL, 1929, p.28)
Realismo e representação naturalista do movimento (a transição verossímil dos planos) evidencia o domínio da concepção deleuziana da “imagem-movimento” sobre a “imagem-tempo” – conceitos que explicam experiências cinematográficas ligadas às formas de memória e a maneira como o tempo passa a ser visto através dela. Na imagem-movimento, temos o predomínio da montagem baseada na lógica de sucessão de acontecimentos num tempo especializado. Enquanto na imagem-tempo temos o “tempo puro” bergsoniano: negação do realismo cinematográfico com cortes irracionais, levando o tempo para além do movimento. A duração do acontecimento, liberando o tempo da “tirania do presente” (Cf. DELEUZE, 2004 e 2018).
O pesquisador em sociologia do cinema e mídias de massas, o alemão Dieter Prokop, propõe uma interessante tese: embora o cinema tenha nascido cindido entre o realismo dos irmãos Lumière (que defendiam a vocação documental do aparato fílmico) e o ilusionismo e formalismo de George Méliès (tal como os delírios visuais barrocos de Viagem a Lua – Le Voyage dans La Lune, 1902), o cinema norte-americano, principalmente o da década de 1920 como o chamado “cinema slapstick”, optou por narrativas realistas baseadas na vida proletária dos seus espectadores (o calvário do heróis que lutam pelos seus sonhos dentro de um sistema social tão arbitrário e repressivo que chega ao “non sense” – o que produz gargalhadas). Porém, um conteúdo realista permeado com gags visuais que contrariam a verossimilhança pela lógica do absurdo, antecipando as gags dos desenhos animados futuros.
“As perseguições do slapstick mostram mais ou menos corno, numa corrida de carros, uma roda que se afasta do veículo é perseguida com a bicicleta nas situações mais impossíveis, com esforços fantásticos e cheios de imaginação, até que seja montada com extremo cuidado no carro em movimento. No filme de hoje, por exemplo, em The Love Bug, fica‑se na observação resignada. A roda escapa realisticamente do carro e tenta‑se ajudar da forma que der. Mesmo quando se dirige com o carro na diagonal, tudo permanece realista, pois o motorista poderia possuir de fato essa habilidade em sua profissão. Nas perseguições do filme slapstick, os indivíduos são conduzidos de uma ação absurda a outra. Na perseguição do filme atual só se trata de saber quem vai vencer … (PROKOP, 1986, p.124)
Embora fossem tecnicamente possíveis a sonorização e a cor, os produtores e diretores da época acreditavam que a natureza do cinema não era realista, dispensando-se tais recursos para criar um efeito de realidade na linguagem cinematográfica. A relação do público (majoritariamente proletário) com o filme era projetiva e não de identificação, isto é, iam ao cinema para ver um mundo de sonhos inverossímeis, próximo, talvez, de uma linguagem onírica.
A guinada vai ocorrer com a monopolização e industrialização do cinema na década de 1930. Segundo a sociologia do filme proposta por Prokop, a fase monopolista da indústria cinematográfica hollywoodiana, iniciada logo após a grande depressão econômica americana, implicou numa mudança tecnológica (a sonorização dos filmes) e mercadológica (das camadas populares, que privilegiavam o slapstick, o cinema passa a adotar as camadas médias da sociedade como público‑alvo para suas produções). A estética do absurdo, criada pelo pastelão do cinema mudo, não agradava a esse novo público, que preferia formas narrativas mais “realistas”.
“O público da nova camada média não estava, entretanto, preparado para aceitar uma reformulação ampla, demasiado ‘fantástica’ que pudesse incomodar suas adaptações, sua integração específica no sistema de trabalho e no lazer: astros demasiado divinos, mas também críticas realistas excessivas, muitas críticas sociais, desmedida exploração de temas como a morte, a dor, a felicidade, etc.” (PROKOP, 1986, p. 126)
Com a industrialização e monopólio da produção e distribuição cinematográficas, o cinema torna-se uma cara forma de lazer, apenas acessível às camadas médias.
Ao contrário do público proletário, esse novo público do cinema possui uma relação mais “realista” e “dura” em relação à vida e a si mesma: preocupada com estratégias de ascensão social através do mérito, trabalho e educação, possui uma mentalidade mais pragmática. Não pode deixar-se levar por viagens visuais excessivamente oníricas ou fantásticas que possam desviar as suas energias psíquicas do mundo pragmático da competição e luta materialista da ascensão social.
Para entendermos esses argumentos que podemos extrapolar a partir das teses de Prokop, devemos fazer uma distinção entre a mera representação ficcional de qualquer narrativa fílmica e a narrativa que nega a verossimilhança através da lógica do absurdo e do non sense.
Por exemplo, as perseguições ao ônibus armado com uma bomba no filme Velocidade Máxima (Speed, 1994) são obviamente impossíveis na realidade. Sabemos disso, porém os efeitos especiais e as trucagens da montagem tornam as sequências verossímeis e não absurdas, ao contrário das perseguições entre calhambeques no “slapstick”, delirantemente absurdas ao desafiar todas as leis da física.
O túnel que conduz os protagonistas à cabeça de John Malkovich em Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999) ou o furúnculo que vira uma cabeça que quer dominar o seu hospedeiro em Como Fazer Carreira em Publicidade (How to Get Ahead in Advertising, 1987) estão além da mera representação ficcional fílmica. Remetem ao inverossímil de Méliès, ao cinema “slapstick” e, principalmente, o espírito do primeiro cinema. São herdeiros de um cinema que as classes médias rejeitaram por ameaçar a sua estabilidade psíquica necessária para a integração pragmática a um sistema altamente competitivo.
Ou seja, à integração à própria caverna platônica da qual o primeiro cinema potencialmente tencionava escapar.
Da Caverna de Platão à Matrix gnóstica
Desde a descoberta da chamada Biblioteca de Nag Hammadi no Egito em 1945 (52 manuscritos gnósticos organizados em 13 códices encadernados em couro que reúnem uma visão bem diferente daquela descrita nos evangelhos bíblicos canônicos), sua narrativa transcendeu os estudos teológicos e históricos especializados para ocupar um submundo místico-mágico-religioso da subliteratura da cultura de massas (HQs, magazines, filmes B sci-fi, horror e fantasia), passando pela grande literatura de Philip K. Dick ou Isaac Asimov, até chegar nas mesas de produtores e roteiristas de Hollywood na fase do Gnosticismo Pop iniciada com Dead Man (1995) de Jim Jarmuch. E se consolidando com os clássicos Show de Truman e Matrix.
O chamado moderno gnosticismo se desenvolveu a partir das origens no Ocultismo do século XIX. Em meados daquele século, Eliphas Levy traz todo o espectro de assuntos do gnosticismo à luz do dia por meio da discussão da cabala judaica. Do pioneirismo de Levy, surge em cena a maior figura do renascimento do oculto: Helena Blavatsky que se tornou a figura embrionária do movimento espiritual alternativo não somente do século XIX mas de grande parte do século XX. A fundação da Sociedade Teosófica em 1875 por Blavatsky e o trabalho de seu devotado aluno G.R.S.Mead (tradutor especializado em textos gnósticos e herméticos), tornou o gnosticismo acessível ao público fora da academia, o que preparou o caminho para o gnosticismo para as massas no século seguinte.
O Gnosticismo encontrou um fértil terreno para se desenvolver no século XX, principalmente no pós-guerra com a disseminação dos seus elementos através da cultura pop, cinema e audiovisual. Um terreno fértil porque a virada do século XX para o XXI apresentará um novo cenário de quebras de paradigmas e incertezas. Certamente não com o mesmo caráter de transfiguração como no 1900, mas que possibilitará mais um revival do Gnosticismo, entre vários ao longo da História.
Se as descobertas científicas como a eletricidade, o eletromagnetismo e a explosão da Era da Informação com as mídias tecnológicas no final do século XIX vieram acompanhada pela eclosão do esoterismo e ocultismo na qual os próprios fenômenos espirituais eram descritos como fenômenos eletromagnéticos, no final do século XX não será muito diferente.
Por exemplo, para Theodor Roszak a antiga busca gnóstica em transcender a carne parece ser o subtexto emocional por trás da eufórica reação a cada novidade em informática no mercado e a cada website ou blog com frivolidades que é lançado. O gnosticismo histórico caracterizava-se pelo horror ao orgânico e a uma aversão ao natural. Tais elementos seriam inimigos do espírito na sua busca por iluminação. Ora, a tecnociência atual se aproximaria de tal filosofia ao propor a superação dos parâmetros básicos da condição humana: finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade e limitação existencial.
Pesquisadores como Ferkiss e Martins, apontam para esse surpreendente cruzamento entre as aspirações tecnológicas contemporâneas e as utopias gnósticas por transcendência.
Para Eric Wilson, historicamente o Gnosticismo sempre ressurgiu em momentos de quebras de paradigmas. Para ele, através dos tempos, os pensadores se esforçaram em compreender como as aparências efêmeras da realidade podem conectar-se com algo tão estável e duradouro (espírito, alma). Dividiram o mundo entre superfície e profundidade, destino e liberdade, conformidade e conversão. Meditações em torno desse dilema (das apologias de Tomas de Aquino e Agostinho, passando pelos ensaios de Kant e Descartes até os mitos alquimistas, cabalistas e gnósticos) marcaram a história do pensamento ocidental.
Tal dilema parece ressurgir sempre em momentos de crise de paradigmas. Para Wilson, na atualidade passamos por uma nova crise: o desaparecimento das distinções entre realidade e virtualidade, espiritualidade e tecnologia:
Mesmo em nossa era pós-moderna, ostensivamente focada na superioridade dos ambientes materiais sobre os reinos espirituais, esse problema persiste. Apesar do ceticismo dos intelectuais em relação à metafísica e cansados de dualismos, são obrigados a se confrontar com a velha dificuldade platônica pela seguinte razão: ao produzir as ‘realidades virtuais’, os tecnólogos contemporâneos têm ignorado distinções essenciais. Qual a diferença entre uma forma empírica e sua simulação computadorizada? Como alguém pode distinguir entre um órgão autônomo e seu duplo mecanizado? São os computadores capazes de desenvolver uma consciência ética? Pode a dependência mecânica levar à desumanização? (WILSON, 2006, p. vii).
Segundo Wilson, o filme gnóstico irá refletir esse atual colapso nas distinções entre aparência e realidade. Nas suas palavras, o filme gnóstico:
Apresenta correntes do gnosticismo que surgiram após Platão: não unicamente Gnosticismo, mas, também, suas consequências naturais, Cabala e Alquimia. Apesar de importantes diferenças, essas três tradições munem diretores de cinema com narrativas prontas sobre as relações entre superfície e profundidade com plots sedutores e cenas surpreendentes (PROKOP, 2006, p.viii).
Portanto, o filme gnóstico abre possibilidade de a experiência que envolve a recepção tanto do conteúdo ou da forma da narrativa fílmica como da atmosfera criada pela projeção ou pela transmissão do produto fílmico ou audiovisual possam criar estados de transcendência. Trata-se da criação de novos mundos e atmosferas abrindo um espaço cada vez maior para conteúdos que exploram o fantástico, o espiritual, mundos extraterrestres e estados alterados de consciência. Filmes que trabalham com argumentos, narrativas e mitologias gnósticas cuja busca de iluminação (gnose) do protagonista conduz a diversos conteúdos espirituais e metafísicos.
O tema da transformação é inerente à natureza da experiência de visualização cinematográfica. A justaposição, de caráter estacionário, do ambiente de visualização (constância de projeção), do movimento variável e do posicionamento da câmera e dos objetos no quadro (variabilidade da câmera e objetos) transforma a tela plana de dois para três dimensões da realidade. Esta transformação é tão poderosa que, quando as audiências viram pela primeira vez imagens de um trem em movimento projetadas em uma tela em sua frente, pularam de suas cadeiras e correram gritando para fora do teatro.
Autores como Broughton (BROGTHON, 1977) e Canevacci (CANEVACCI, 1990) sugerem que a ida ao cinema de assemelha a uma experiência místico-religiosa. A partir dessa perspectiva, o cinema pode ser visto como um espaço cerimonial e de culto sagrado, os membros da plateia como participantes de um ritual religioso e as telas do cinema como um altar sagrado. A projeção da imagem cinematográfica, por meio de um feixe de luz através de um espaço escuro, também pode ser vista como uma representação arquetípica e visceral da interação simbólica entre a luz da divindade e as trevas da ilusão de que é frequentemente referido nas histórias e mitos sagrados de muitas culturas do mundo e as tradições. O cinema seria como uma religião de mistérios. Ir ao cinema é uma cerimônia de grupo. As pessoas entram no lugar escuro e juntam-se à congregação em silêncio. Você pode ir e vir, mas você deve ser calmo, mostrando o devido respeito e reverência. Lá, em cima, no altar um espaço ritual está prestes a ser executado.
Ao mesmo tempo, o cinema contemporâneo vem desenvolvendo narrativas que rompem com o chamado realismo clássico, transcendendo os limites de alguns aspectos da construção tempo-espaço cartesiano-newtoniano, indo além do espaço tridimensional delimitado:
1 – Mudanças na realidade temporal e espacial
A estrutura narrativa de filmes como Donnie Darko (2002) e O Feitiço do Tempo (The Groundhog Day, 1993) integram mudanças nas estruturas normalmente percebido de tempo e espaço para capturar a essência do dramático através da linha do tempo. Em Feitiço do Tempo, o personagem principal revive o mesmo dia repetidas vezes até que ele atinja uma verdadeira compreensão de si mesmo e do mundo. Em Donnie Darko o protagonista descobre que o plano temporal em que ele vive pode ser revertido e que ele tem poder para fazer isso, isto é, transcender seu plano temporal através de um vórtice e mover-se livremente através de outros planos alterando destinos pré-determinados. O filme chama a atenção pela temporalidade artificial. Predomina uma atmosfera de que a realidade é composta por eventos possíveis que podem ser alterados da perspectiva de outras sequências fabricadas.
2 – A desconstrução da realidade consensual
A história cuja narrativa percorre a estrutura labiríntica da mente em filmes como Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich,1999) e Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), ou a narrativa que percorre as camadas da ilusão da realidade em filmes como Matrix (1999 ) conduz o espectador a questionar a natureza da própria realidade. Em “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” seguimos o personagem principal através da eliminação gradual de sua memória e descobrimos que, sem memória, seu mundo, e, talvez o nosso, deixam de existir. Na trilogia Matrix um mundo que se parece muito com o nosso é revelado ser uma alucinação consensual gerada por programa de computador em camadas e camadas de realidades programáveis.
3 – Desconstrução quântica da realidade
Assim como, na física quântica, a realidade é alterada pelo próprio ato de observar, produzindo um paradoxo (vemos uma realidade objetiva ou um evento alterado pelo nosso olhar?), também o cinema vai colocar em xeque o próprio dispositivo da câmera. Filmes como O Quarto Poder (“Mad City”, 1997) e O Pagamento (Paycheck, 2003 ) exploram esse paradoxo. Em O Quarto Poder a chegada das câmeras no entorno do museu onde estão reféns altera totalmente a espontaneidade dos fatos, produzidos sucessivas situações metalinguísticas e irônicas. E em O Pagamento a máquina que prevê o futuro paradoxalmente produz o futuro: através de um mecanismo de profecia autorrealizadora o futuro previsto não acontecia porque estava lá, mas por que a sua divulgação fazia o futuro previsto acontecer de fato.
4 – A inter-relação de fatos normalmente percebidos como eventos discretos e sem causalidade
A narrativa se baseia em estruturas de sincronicidade. Filmes como Magnólia (1999) e Escrito nas Estrelas (Serendipity, 2001) revelam uma misteriosa e mística afinidade entre pessoas aparentemente distintas, situações e eventos. No filme Timecode (2000) esta forma inter-relação da estrutura cinematográfica é levada ao extremo ao filmar quatro histórias diferentes, com personagens distintos e acontecimentos que aparentemente estão relacionados, projetando todas as quatro histórias simultaneamente em uma tela dividida em quatro partes iguais.
5 – A natureza relativa da realidade perceptiva
Em Amnésia (2000) a perda de memória de curto prazo do protagonista torna-se o tecido e a estrutura da história, levando o público através de um labirinto de desarticuladas experiências perceptivas que levam à revelação a-perspectiva e visceral: a de que nenhuma perspectiva é final.
Portanto, a questão da transcendência no cinema pode ser colocada dentro de uma seguinte tese: como toda obra artística, o cinema trás em sua própria estrutura elementos que buscam a transcendência, o que, por sua vez, acaba criando uma tensão entre a alteridade e as estruturas fixas que a indústria do entretenimento impõe a esse meio.
Por sua natureza de alteridade e de “totalmente outro”, a experiência transcendente causa dor, estranhamento, incômodo e desconforto decorrente da ruptura de uma visão de mundo cotidiana. E é exatamente conter, racionalizar ou minimizar essa experiência latente no medium que busca a indústria do entretenimento. Afinal, após serem acesas as luzes do cinema, devemos voltar à realidade como se nada tivesse acontecido.
Considerações finais
O cinematógrafo ocupou um importante papel na transfiguração gerada em 1900. As imagens instantâneas inventadas pela fotografia ganharam impacto e dimensão imprevisíveis quando foram colocadas em movimento pelo cinematógrafo – abriu uma inusitada dimensão fenomenológica da realidade, bem diferente da primeira metafísica da Antiguidade grega no sentido platônico como busca de essências atemporais que estariam acima desse mundo.
A segunda metafísica, a fenomenologia iniciada por Edmund Husserl e repercutida por nomes como Henri Bergson e Alfred Whithead, ao contrário, busca encontrar na própria experiência ou percepção uma dimensão pré-cognitiva e extra-linguística, uma dimensão metafísica paradoxalmente presente na própria experiência sensível: o “Tempo Puro” de Bergson ou a “Imagem-Tempo” de Gilles Deleuze.
Movimento filosófico e epistemológico impactado pela seminal civilização técnica das imagens que marcaria o século XX: as imagens em movimento abriram uma dimensão da realidade até então ignorada na qual o próprio dispositivo cinematográfico se assemelhava a própria extensão da mente humana.
Porém, o primeiro cinema que tanto inspirou essa transfiguração filosófica, científica e cultural teve que ser domesticado para que as imagens não se transformassem em acontecimentos comunicacionais que colocassem em risco a ordem cotidiana do trabalho e deveres das massas.
A pesquisa de Flávia Cesarino Costa apontou para os três passos desse processo de enquadramento: Espetáculo-Narração-Domesticação. Depois da fase de show e maravilhamento com o potencial estético-formal das imagens (o Tempo Puro desvinculado do espaço), a nascente indústria cinematográfica submeteu-as às fórmulas narrativas. Principalmente a hegemonia do realismo hollywoodiano e o império da verossimilhança e da identificação com protagonistas.
O resultado é a domesticação na qual as narrativas assumem o papel de dar sentido ao caos da realidade, perigosamente vislumbradas no primeiro cinema. Agora os espectadores podem sair da sala escura do cinema e retornar para suas casas conformados e resignados, sem a experiência irruptiva do passado.
A ascensão do cinema gnóstico e as possibilidades de transcendência, tanto nos aspectos estéticos-formais quanto de conteúdo, tem o potencial de resgatar a força irruptiva da imagem-tempo do primeiro cinema.
Quando Adorno apontava para a alteridade e transcendência contidas na arte, ele aproximava-se da temática central da Teologia Negativa: a busca do “inteiramente outro”, do “plenamente diferente”, do “diferente por excelência”, ou seja, aquilo que está além da representação. Adorno pensava o conceito de transcendência não no sentido religioso como epifania ou experiência mística de fato, de uma forma positiva.
Afinal, para Adorno as obras de arte são, antes de tudo, artefatos, algo fabricado pelo espírito humano e não uma experiência místico-religiosa. Mas, por outro lado, como obra do espírito, a arte tendencialmente quer ultrapassar a si mesma, ir além da sua estrutura, do seu medium, do seu ambiente perceptivo.
Isso acaba criando uma tensão da arte com a sociedade e do próprio espírito com o mundo. Para Adorno, essa tensão era a negação do Todo (social, político, econômico etc.) e o vislumbre de algo inteiramente outro por meio de uma experiência mínima, única, precária. A “metafísica em queda” proposta por Adorno na “Dialética Negativa” é essa busca das experiências fugazes, singulares que apontam para um “transmundo”.
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