Cesar Lattes, a descoberta do méson-π e a física de partículas
Entrevista com Alfredo Marques por Maria Borba
Em 1935, o físico japonês Hideki Yukawa, para tentar explicar a natureza da estabilidade do núcleo dos átomos – questão de fundamental importância para a compreensão da estrutura da matéria –, propôs uma teoria que previa a existência de uma partícula com massa de valor intermediário entre a do próton e do elétron (chamada méson), responsável pela força de atração entre prótons e nêutrons, a chamada força nuclear forte.
Inúmeros experimentos foram realizados em diferentes partes do mundo durante a década de 1930 para tentar encontrar esta partícula, mas nenhum resultado era isento de contradições.
Em 1947, em Bristol, na Inglaterra, o jovem físico brasileiro Cesar Lattes, integrando o grupo de Cecil Frank Powell e Giuseppe Occhialini, consegue observar estes mésons pela primeira vez em experiências feitas à margem dos procedimentos para aprimorar um novo método de registro fotográfico com emulsões nucleares, eliminando todas as contradições existentes até então.
Em 1949, Hideki Yukawa ganha o prêmio Nobel por sua previsão teórica da existência dos mesóns baseado em seus trabalhos teóricos sobre as forças nucleares. Neste mesmo ano, Cesar Lattes volta para o Brasil e funda o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.
Em 1950, Cecil Frank Powell ganha o prêmio Nobel pelo conjunto de seus trabalhos sobre o método fotográfico para estudar os processos nucleares e pelos descobrimentos realizados com este método.
Por ter tido participação ativa em momentos tão relevantes, Cesar Lates (1924-2005) pode ser considerado um dos mais importantes físicos brasileiros, responsável pela modernização da física no Brasil enquanto atividade de ensino e pesquisa, fundamental para o desenvolvimento de um país.
Nesta entrevista, o físico Alfredo Marques, ex-diretor do CBPF, nos conta sobre o papel crucial do trabalho de Lattes na descoberta do méson-π, que havia sido previsto teoricamente em 1935 pelo físico japonês Hideki Yukawa.
Alfredo Marques – É preciso contar a história desde o começo. O trabalho dele, na verdade, teve significação excepcional por vários aspectos ao mesmo tempo.
Primeiro confirmou ideias que haviam sido lançadas no início da década de 1930 por um pesquisador japonês chamado Hideki Yukawa, que acabou ganhando o prêmio Nobel por isso. Ele havia previsto uma partícula com massa intermediária entre a massa do próton e a de um elétron, responsável pelas forças nucleares que mantêm os núcleos estáveis, isto é, pela atração nuclear entre nêutrons e prótons.
Esse trabalho ficou muito tempo sem confirmação experimental porque despertou uma discussão muito grande em torno da detecção de tal partícula. Havia um número muito grande de incompreensões na física sobre as partículas da radiação cósmica que estavam chegando na Terra. Alguns chegaram a insinuar que encontraram partículas cuja massa era próxima à da previsão de Yukawa, mas não conseguiram eliminar todas as contradições experimentais que as observações envolviam.
Lattes conheceu Giuseppe Occhialini (Figura 1) aqui no Brasil. Occhialini era alvo de perseguição política na Itália por suas posições frontalmente antifascistas e fatalmente terminaria preso. Occhialini era um homem muito espirituoso e conseguia farejar a novidade científica com uma certa facilidade, embora fosse pouco creditado por sua habilidade com matemática. Ele não sabia muita matemática, mas tinha uma intuição excepcional para saber o que fazer na busca de novos resultado.
Occhialini veio para o Brasil, para São Paulo, pelas mãos de Gleb Wataghin, italiano como ele e chefe do departamento de Física da Universidade de São Paulo (USP), e começou a construir uma câmara para detectar partículas subatômicas (câmara de Wilson), com o Lattes e mais uns alunos. Em 1942, o Brasil entrou na II Guerra e Occhialini teve que deixar o departamento, indo para Bristol, na Inglaterra. E ele deixou o Lattes, com mais alguns alunos, terminando a câmara que havia começado.
O Lattes acabou a câmara (usando até mesmo recursos próprios). Tirou fotografias de chuveiros de elétrons com essa câmara e mandou para o Occhialini em Bristol, para mostrar que ela estava funcionando. Nesta época, Occhialini já estava de olho em outras perspectivas que estavam se abrindo com o advento das emulsões nucleares – tipo de detector com o qual ele não tinha a menor experiência. As emulsões nucleares nasceram da busca de aperfeiçoamentos nas emulsões fotográficas para torná-las sensíveis à radiação na faixa do infravermelho. Durante a II Guerra, por questões de segurança, os aviões tinham que fotografar os alvos à noite e, portanto, precisavam de emulsões fotográficas sensíveis ao infra-vermelho, porque com os apagões, não havia luz para fotografar. Então eles tinham que fotografar a chamada onda térmica, no comprimento de onda do infravermelho, e a fotografia comum não tinha condição de fazer isso. Com essa motivação, mexeram na físico-química das emulsões e criaram uma emulsão fotográfica com sensibilidade muito além das necessidades originalmente colocadas, capaz de registrar trajetórias de partículas ionizantes, como prótons e partículas alfa. Por essa razão essa versão hipersensível tomou o nome de emulsão nuclear. O chefe do grupo do Occhialini em Bristol, Cecil Frank Powell, tinha sido membro deste grupo e contava com Occhialini para desenvolver projetos usando as novas emulsões nucleares. Occhialini sabendo dos resultados do Lattes com a câmara de Wilson, pensou: “Vou chamar o Lattes e vamos ver o que a gente tira disso”.
Então, uma primeira parte do trabalho do Lattes, foi tornar utilizável este instrumento novo, desenvolvendo métodos para a análise dos registros de partículas ionizantes. Esses métodos foram desenvolvidos ao longo de um projeto para a detecção de nêutrons na radiação cósmica secundária.
A ida de Lattes para Bristol dependeu da capacidade de persuasão de Occhialini, que mostrando a Powell as fotos com a Câmara de Wilson que Lattes lhe enviara, disse: “Olha, esse cara aqui é muito bom. Olha aqui o que ele fez com a câmara que eu deixei lá inacabada”.
C&C – Nessa época o Lattes tinha quantos anos?
A. M. – O Lattes tinha uns 22 anos e foi chamado para ir para Bristol. Arrumou um estipêndio para ele, coisa muito difícil logo depois da II Guerra com todas aquelas dificuldades. E nos primeiros tempos na Inglaterra, o Lattes se dedicou, junto com o Occhialini e outros membros do grupo, a desenvolver as técnicas necessárias para viabilizar o uso das emulsões. Então eles criaram muito na metodologia da análise dos eventos observados com emulsões nucleares.
C&C – Mas, nesta época, eles já sabiam para quê exatamente queriam usar as emulsões?
A. M. – Eles estavam usando estas emulsões para a detecção de nêutrons da radiação cósmica, que não tem nada a ver com a questão do méson de Yukawa.
O fato é que o Lattes conseguiu alguns resultados importantes tentando fazer as emulsões funcionarem para os nêutrons. Um deles foi que o carregamento das emulsões com bórax para a detecção dos nêutrons aumentava apreciavelmente a permanência da imagem latente, favorecendo exposições mais longas antes da revelação das emulsões. E com isso o problema mudou, viabilizando a busca de eventos mais raros na radiação cósmica. Aí começou o interesse de Occhialini e demais membros do grupo por eventos onde fossem produzidas as partículas que o Yukawa tinha previsto, mas que ninguém achava. Quer dizer, estava tudo no meio de uma contradição muito grande: achavam uma partícula de massa parecida, mas não conseguiam explicar outras anomalias associadas às observações. A ideia era que os mésons fossem produzidos na radiação cósmica, porque os raios primários têm energia muito alta, e como a massa dela é grande, precisava de um evento que liberasse energia suficiente para produzir estas partículas como secundárias. E o Lattes foi atrás disso junto com Occhialini.
C&C – E o Lattes aqui no Brasil, antes de ir para Bristol, já estava interessado nessas partículas?
A. M. – Não, não. Há referências sobre essas partículas nos chuveiros penetrantes descobertos por Wataghin Pompeia e Souza Santos do departamento de Física da USP em 1940, mas tudo num nível muito especulativo. A coisa começou a fervilhar lá na Inglaterra, principalmente em Bristol, com estas possibilidades. Na Europa havia uns laboratórios que tinham certa altitude – porque você tem que ter altitude quando os eventos buscados são raros, pois a intensidade da radiação cósmica é maior nas altitudes mais elevadas. Na medida em que você sobe, torna-se mais provável de encontrar partículas produzidas em eventos de ocorrência mais rara. Uma delas poderia ser o méson. Mas tudo especulação.
C&C – E quem começou a querer olhar estas partículas? Foi o Powell?
A. M. – Bem, eu não teria como entrar nesse detalhe. Desde o momento que o grupo de Bristol começou a desenvolver o método de análise destas emulsões e que Lattes descobriu que o Bórax aumentava a estabilidade das imagens latentes, o interesse se instalou. E, na medida em que a emulsão é integradora, passa a ter vantagens sobre instrumentos eletrônicos que, por exemplo, não são integradores, isto é, registram apenas o que ocorre num dado instante, e fora daquele instante, nada. A emulsão, não. Ela está sempre receptiva e vai acumulando os eventos. Então, para eventos raros era o ideal, já que acumulava dados. Foi daí que surgiu a ideia de expô-las à radiação cósmica em um sítio mais alto, favorecendo a ocorrência de eventos mais raros com produção de partículas novas e possibilitando a sua visualização.
Já mencionei que o Lattes descobriu uma propriedade essencial quando ele ainda estava usando a emulsão para ver os nêutrons da radiação cósmica em um outro projeto. Ele descobriu que quando ele carregava as emulsões com ‘bórax’, que é o tetraborato de sódio, uma substância que a gente compra na farmácia para tratamentos domésticos, aumentava a permanência das imagens formadas. Nas emulsões, se você não fizer a revelação certo tempo após a exposição, ou seja, processá-las quimicamente, as imagens desaparecem. Isto também acontece se você tirar uma fotografia comum e deixar o filme fotográfico dentro da câmera depois de exposto por um longo intervalo de tempo, e só então revelar: vai encontrar um borrão, já não verá mais nada.
C&C – Como funcionavam essas emulsões?
A. M. – Essas emulsões funcionavam com o mesmo princípio da fotografia comum. Você expõe as emulsões às radiações de interesse dentro de um pacote hermeticamente fechado – não pode entrar luz de jeito nenhum – e as partículas que atravessam o envoltório do pacote deixam um traço na emulsão, que depois de revelada se assemelham aos que estão na fotografia (Figura 3).
C&C – Mas há algum líquido dentro?
A. M. – Não, não tem. A emulsão é uma espécie de gelatina, com uma certa consistência, onde elementos químicos sensíveis à ionização das partículas se encontram em suspensão. Ela é colada em uma placa de vidro ou em um suporte plástico transparente, onde é fixada e não pode esquentar demais, pois derrete. Enfim, precisa ser manipulada com certos cuidados. No mais, é semelhante à emulsão fotográfica comum, com a diferença que esta é em geral muito fininha: entre 10 e 50 micron de espessura. A emulsão nuclear pode ser feita bem espessa, de modo que tenha um volume de armazenamento maior. Ou seja, a gente pode perceber partículas com longo alcance cuja trajetória oscile entre o fundo e a superfície, mostrando extensões mais longas das trajetórias. Mas elas também podem escapar do volume sensível da emulsão, saindo pelo fundo ou pela superfície. Neste caso a trajetória fica truncada. É comum empregar pilhas de emulsões justapostas de modo que se possam acompanhar trajetórias com trechos ocupando diferentes placas.
C&C – E tem algo como uma lente que deixa a luz entrar?
A. M. – Ela é uma gelatina com cristais de halogenetos de prata e outras substâncias em suspensão uniforme, mais ou menos os mesmos elementos da fotografia comum, apenas com granulação muito mais fina e compacta, além de ativadores especiais que os fabricantes adicionam. A imagem é formada em um mecanismo semelhante ao da fotografia comum. Na fotografia comum, é preciso que a luz encontre um grão de prata, só que quando você fotografa, mesmo em condições de iluminação precárias, há trilhões de fótons luminosos transportando informações sobre o objeto fotografado, de modo que é praticamente certo que um número suficiente deles forme imagens latentes nos sais de prata. Você precisa de uma exposição de uns segundos, frequentemente menos. No caso dos raios cósmicos, os eventos produtores de imagem são muito raros. É como um agora e outro daqui a dois dias, então é um problema diferente, sendo necessário manter a emulsão ativa e sensível durante um tempo maior. E o Lattes, quando estava examinando o problema de nêutrons, descobriu que quando ele colocava o ‘bórax’ a emulsão ficava ativa mais tempo e não perdia tão rapidamente a imagem produzida que se chama imagem latente. Então, ele preparou algumas emulsões com o ‘bórax’ e outras sem o ‘bórax’, para poder comparar. Neste momento, o Occhialini ia tirar férias nos Pireneus onde havia um observatório (Figura 4) a cerca de 3 mil metros de altitude.
Então ele levou as placas preparadas pelo Lattes para os Pireneus e como resultados impressos nestas placas, foram encontradas trajetórias incompletas provavelmente devidas a mésons. Uma trajetória incompleta associada ao méson é a da Figura 3. As emulsões carregadas com o bórax se revelaram muito superiores, com um grande número de eventos candidatos a mésons.
C&C – E o bórax deixava mais tempo a emulsão ativa ou, depois que revelada, ele segurava a imagem por mais tempo?
A. M. – Ele segura por mais tempo a imagem latente. Antes de você revelar, a imagem chama-se latente. Você tem que revelar logo senão ela desaparece. Um laboratório em Londres competia com Bristol na busca do méson de Yukawa com emulsões nucleares. Conseguiram embarcar as emulsões em vôos de aviões da Real Força Aérea que alcançavam altitudes até mais elevadas que as do Observtório de Bagnères de Bigorre nos Pireneus, usado por Occhialini e Lattes. Entretanto precisavam acumular os dados obtidos em numerosos vôos antes de revelar as emulsões; seus resultados não foram muito brilhantes porque as imagens latentes se apagavam entre a exposição e a revelação. Desconheciam o papel do bórax.
C&C – Ou seja, o outro já podia esta captando, mas não conseguia ver?
A. M. – Sim, não conseguia ver. Então o bórax mantém a imagem latente por mais tempo. E isso Lattes descobriu meio por acaso lá nas andanças dele com a detecção de nêutrons na radiação cósmica. A Figura 3 mostra o primeiro méson encontrado, mas era inadequado para medidas da massa porque ele não estava completo dentro da emulsão. Ainda tem esse problema! A Figura 5 mostra o segundo méson encontrado com as emulsões expostas lá nos Pireneus, e foi um evento notável: mostra um meson-π se desintegrando em um mesón-µ, e o meson-µ, por sua vez, se desintegrando em um elétron (a trajetória dos elétrons também não aparece nas emulsões utilizadas; o caráter de partícula instável do méson-π foi obtido de outros argumentos). As novas partículas estavam dentro da mesma placa de emulsão nuclear (Figura 5).
C&C – E como é que voce lê isso nesta imagem? Como a gente sabe que aqui há um méson?
A. M. – Pelas medidas de massa que o grupo tinha desenvolvido antes. Pelas medidas de ionização, contando os grãos revelados – quantos grãos a trajetória da partícula tem por unidade de comprimento –, medindo o alcance, o comprimento todo da trajetória, ou recorrendo ainda à medida do grau de sinuosidade da trajetória (medida de espalhamento múltiplo), as massas podem ser determinadas. Isso quer dizer que na Figura 5 a desintegração do meson-π se dá em duas partículas: uma que é o meson-µ, e outra que é um neutrino – uma partícula que não produz ionização na placa fotográfica e não forma trajetórias visíveis. Por isso que o meson-µ sai sempre com o mesmo comprimento, ou seja, com a mesma energia (desintegração em dois corpos). E este evento (Figura 5) foi ‘o evento’ notável, porque ele permitiu fazer estas medidas e chegar a uma massa compatível com aquela que o Yukawa previa. Um processo em cascata como este, onde o méson cuja massa corresponde ao valor previsto por Yukawa se desintegra numa partícula intermediária (o méson-µ), que por sua vez dá nascimento a um elétron e outro neutrino, permite eliminar completamente todas as anomalias que acompanhavam as observações anteriores do méson.
Neste mesmo local, eles colheram mais alguns eventos, porém ainda ficou o problema de melhorar a estatística. Porque você com apenas uns poucos casos não pode fazer afirmações precisas sobre o valor da massa devido aos erros experimentais de observação. Então, para melhorar, você precisa aumentar o número de casos, e para ter muito mais casos, o único jeito era subir mais em altitude. Podia ser em vôos de balão, mas isto envolve uma tecnologia com suas sutilezas, inclusive para o resgate das emulsões, pois era imprevisível saber aonde o balão iria cair com as técnicas da época. Voos de aviões também eram possíveis. Tinha uma pessoa em Londres fazendo voos de avião, mas não sabia do truque do ‘bórax’ do Lattes. Os vôos tinham duração muito curta requerendo muitas viagens, o que aumentava a chance de perder as imagens latentes eventualmente formadas e, por isso, ele não conseguia nada.
Então o Lattes, discutindo com pesquisadores da área da geografia, encontrou no monte Chacaltaya, na Bolívia, a possibilidade de colocar as emulsões a 5.600 metros de altitude. Havia inclusive no sítio uma velha cúpula pertencente a um observatório metereológico, o que era suficiente para proteger as emulsões das inclemências do tempo (Figura 6). O sítio era acessível por automóvel desde La Paz. Enfim, tinha muitas vantagens. O Lattes deu um jeito de viajar até lá e expôs as placas a 5.600 metros de altitude. E ali ele obteve uma quantidade enorme de eventos, permitindo avaliações precisas das massas. Esses dados fizeram parte do trabalho publicado por Occhialini, Lattes e outros na revista Nature, que ficou célebre pelo anúncio da descoberta do méson-π.
C&C – Do méson-π ou do méson-µ?
A. M. – Do méson-π e também do méson-µ. Vieram juntos, no mesmo experimento. O grupo de Bristol foi quem deu o nome de méson-π e méson-µ. Nas origens, em meados da década de 1930, o nome era mésotron, tudo jogado dentro de uma palavra só. Tinha muita anomalia, muita contradição. Mas quando se viu que era uma desintegração em cascata, o nome mésotron foi descartado pois estava associado a uma só partícula.
C&C – Elas vêm sempre juntas?
A. M. – Elas vêm sempre juntas, com um tempo curto entre uma e outra. Ou o méson-π se desintegra em vôo, isto é, enquanto ainda não parou, ou ele para, reduzindo a zero sua velocidade antes de desintegrar, como no caso da Figura 5, e solta um méson-µ e um neutrino – a tal partícula que não ioniza nada. Essa é invisível sempre e é assumida por inferência, por conservação de energia e momento. Em outros casos o méson-π é capturado em voo por um núcleo do meio, fragmentando-o em diferentes [núcleos?] secundários. A descoberta do méson-π foi sensacional e realmente revolucionou o mundo, tanto pela confirmação das ideias de Yukawa, quanto pelo o que poderia representar em termos do maior controle das forças nucleares, tendo em vista o final da 2ª Guerra com as explosões das bombas nucleares.
C&C – O Lattes era meio experimental, meio teórico? Ele era uma mistura?
A. M. – Olha, o Lattes era realmente uma pessoa muito especial. Começou fazendo física teórica, trabalhando com Wataghin e com Mário Schenberg, que era um teórico muito ligado à matemática. Depois é que ele foi para a física experimental, com a chegada do Occhialini, e se interessou. Mas ele era um sujeito muito habilidoso em matemática também.
C&C – Ele tinha as duas coisas…
A. M. – Tinha as duas coisas. E ele era uma pessoa muito observadora, extremamente observadora. Minucioso, detalhista, enfim, ele realmente era excepcional como físico.
C&C – E o que você lembra dele que mais te surpreendia?
A. M. – Olha, o que mais me surpreendia nele era a memória que ele tinha. Era um negócio de lista de telefone. Ele lembrava de tudo. Os menores detalhes do que havia acontecido, mesmo anos antes. Ele tinha uma memória de elefante. Uma coisa assim realmente admirável. Olhava os problemas na sua profundidade e checava tudo. Todos os prós, todos os contras, não se encantava com as primeiras conclusões. Deixava as conclusões dele esquentando ali e cozinhando, até ganhar convicção. Ele realmente era um sujeito admirável. Isso é o que me lembro dele. Esse espírito, essa sagacidade mental e a memória fantástica que ele tinha. Outro aspecto importante era o valor que dava ao método experimental: enfrentou duras batalhas defendendo convicções suportadas por observações experimentais quando contrariavam resultados de análises puramente teóricas, mesmo quando consensualmente aceitas.
C&C – E o Occhialini?
A. M. – O Occhialini não era bom em matemática que nem o Lattes, aliás ele sabia fazer poucas contas: passou de ‘regra de três’ ele já se complicava. Mas tinha um faro incrível. Ele fez coisas sensacionais na física com esse espírito de desvendar intuitivamente o que precisava ser feito. Então, foi com esse questionador intuitivo que Lattes foi para Bristol. Ele conviveu com o Lattes estudante como orientador e em Bristol como experiente colega.
C&C – E o Yukawa?
A. M. – Ele ganhou o prémio Nobel em 1949, uma vez que a descoberta foi em 1947. Então isso fez uma ligação interessante do Yukawa e o Brasil, entre a física do Brasil e a física do Japão. No começo da década de 1960, Lattes e Yukawa negociaram uma colaboração entre a física brasileira e a japonesa sobre interações a altíssimas energias na radiação cósmica que durou 30 anos, e só não durou mais porque necessidades de reformulação da metodologia para manter a dianteira com relação aos grandes aceleradores mostraram-se inviáveis pelo elevado custo. A ligação entre a física brasileira e a japonesa continua em outros campos de atividade.
Mas o outro grande mérito do Lattes foi ter ido para Chacaltaya. Lá encontrou eventos desse tipo com fartura. Esse grande número de eventos viabilizou a determinação precisa das massas, o que possibilitou anunciar a descoberta na publicação que saiu em 1947.
Mas não ficou nisso. Um subproduto sensacional em consequência deste trabalho, aconteceu em Berkley, nos EUA. O laboratório de radiações de Berkley se ligou no esforço de guerra, participando do Projeto Manhatan, com um separador eletromagnético de isótopos de urânio, muito importante para a acumulação de urânio enriquecido para a bomba atômica. O separador foi construído com as peças polares de um projeto de sincro-ciclotron que visava eliminar as dificuldades apresentadas pelos ciclotrons ordinários em ultrapassar limites modestos de aceleração. O diretor do laboratório de radiações, Ernest Orlando Lawrence, suspendeu o projeto do sincro-cinclotron, para construir o separador eletromagnético do Projeto Manhattan.
Terminada a 2ª Guerra, Lawrence retomou o projeto do sincro-ciclotron, construindo com sua equipe um novo dispositivo capaz de recolocar em fase a frequência do oscilador gerador do campo elétrico de aceleração com a frequência de rotação das partículas. O dispositivo refasador passou por todos os testes de engenharia elétrica, justificando o grupo a tentar produzir o méson- π, já que a energia supostamente atingida era suficiente para fazê-lo, bombardeando folhas de carbono com partículas alfa aceleradas. Só que aparentemente não funcionava: os mésons que o Lattes tinha descoberto não apareciam. Uma hora, Lawrence resolveu contatar Lattes e pedir-lhe para ir até lá ajudá-los. E o Lattes foi.
C&C – Eles queriam observar o méson através de um outro método?
A. M. – As partículas aceleradas pelo acelerador, caso o refasador estivesse funcionando, já deviam estar com energia suficiente para produzir o méson-π, agora dentro da máquina. Mas eles não conseguiam ver trajetórias dos mésons produzidos em emulsões nucleares destinadas a registrá-las.
E deixa eu te falar de passagem: o Lawrence cresceu em importância na física americana porque desmontou o acelerador em construção para usar as peças polares – que são imãs enormes, em um separador magnético de isótopos para separar urânio 238 do urânio 235, necessário para fazer a bomba atômica. E fizeram, né? E esse separador do Lawrence foi importantíssimo, porque o método que eles usavam de separação por difusão gasosa era muito lento, incompatível com os prazos colocados para a finalização dos engenhos nucleares.
Quando acabou a guerra, ele desfez o separador e voltou ao projeto do sincro-ciclotron com o refasador que devia favorecer a elevação da energia até o limiar de produção do méson. Mas ninguém via o méson. E então chamou o Lattes. E o Lattes foi, olhou e tal, colocou as emulsões dele no lugar e disse: “olha vocês estão produzindo o méson, só não estão olhando direito”.
C&C – E o que faltava era o bórax?
A. M. – O que faltava era um pouco mais de vivência no uso, da técnica de emulsões. Porque a posição que eles colocavam os alvos de carbono e as emulsões não era conveniente, bem como alguns detalhes no processamento e busca de eventos nas emulsões. O Lattes mexeu um pouco no arranjo experimental e mostrou para ele que estava tudo funcionando. O Lawrence ficou maravilhado porque era tudo o que ele queria na vida: que aquele refasador funcionasse, porque, a partir do mesmo princípio, ele podia construir ciclotrons com energias mais elevadas, com o limite único do custo. E ele ficou muito grato ao Lattes por isso. Inclusive, quando o CBPF foi fundado, ele se comprometeu com o Lattes de mandar um grupo para cá, e mandou, para fazer um pequeno acelerador aqui, de modo a criar no CBPF competência para todas as etapas de construção dessas máquinas e a instituição ficaria autônoma para projetos futuros.
C&C – Nessa época, esse era o maior acelerador de partículas que havia?
A. M. – Nessa época era. Mas o Lawrence não perdeu tempo. Com o prestígio que tinha na Comissão de Energia Atômica Americana, levantou o dinheiro que precisava e logo estava com um acelerador de energia cem vezes maior.
C&C – E na Europa não havia nada disso, certo?
Em 1949, não. O CERN é de 1952. Foi somente depois que eles criaram o CERN. Não tinha nada. Foi um passo muito grande que o Lattes deu, porque ele influiu na tecnologia que permitiu tudo isso. Então, todo o surto da física nessa primeira metade dos anos 1950 foi resultado desse pulo que o Lawrence deu com a ajuda do Lattes, entende? Foi um negócio mesmo sensacional. Mudou a cara da física e mudou a cara da pesquisa. Olha, mudou tanto que eu nem saberia discutir em poucas palavras.
C&C – E as pessoas tinham noção do papel do Lattes nisso tudo?
A. M. – Olha, o Lawrence, certamente. Ele chegou a vir aqui, mandou dois engenheiros dele para cá para construir um acelerador. Essa era a idéia do Lattes e do Lawrence, que a gente ficasse autônomo.
C&C – O prêmio foi dado à descoberta do méson-π?
A. M. – Não. O prêmio foi dado em 1949 ao chefe do Occhialini, Powell, pelos trabalhos dele no desenvolvimento das emulsões nucleares. Foi dado pelo conjunto dos trabalhos dele. Não foi dado explicitamente ou exclusivamente pela descoberta.
E em 1949 o Yukawa ganhou pelo trabalho teórico. Pela previsão que foi confirmada com a descoberta do méson.
C&C – E eles ficaram próximos? O grupo do Lattes e o grupo do Yukawa?
A. M. – Eles ficaram com as maiores ligações. Até hoje. Houve uma ligação da física japonesa com a brasileira através do Yukawa, que conheceu o Lattes, e tinha o maior apreço por ele.
C&C – Podemos dizer que a importância do Lattes na descoberta do méson foi o novo desenvolvimento técnico que ele realizou com as emulsões nucleares permitindo ver algo que as pessoas não estavam conseguindo ver, isto é, permitindo que se observasse o méson? E também pela questão de encontrar um lugar onde pudesse produzir eventos que gerassem uma estatística semelhante a dos primeiros dados encontrados por ele?
A. M. – É, o uso do bórax para aumentar a estabilidade das imagens latentes foi muito importante, bem como a subida a Chacaltaya para acumular um número suficiente de eventos e garantir maior precisão estatística nas medidas de massa. E também essa questão de confirmar a eficácia do tal refasador que transformou os ciclotrons ordinários em sincro-ciclotrons. Isso gerou um surto violentíssimo de novas máquinas com energias mais elevadas, que ensejou a abertura de um novo campo de atividades na física: o das partículas elementares. Quer dizer, o campo das partículas elementares surgiu com isso. Então foi um negócio que transcendeu, de longe, a questão do méson-π. Foi muito além.
E com aquele jeito dele meio despretensioso, às vezes até displicente, ele fez isso. Cesar Lattes tinha 23 anos na descoberta. E ele gostava muito do Brasil, e queria voltar para cá.