Carta ao leitor
COMENTÁRIO /
Mario Novello* //
1.
O filósofo Paolo Rossi analisa em vários momentos de sua obra o desinteresse dos cientistas pelas origens daquilo que constitui seu tema de trabalho. Rossi argumenta que eles possuem uma tendência natural, proveniente de suas formações e associada à prática cotidiana, de demonstrar total desinteresse pela história das ideias sobre as quais se apoia o paradigma vigente. Abandonar antigos conceitos que não resistiram a sucessivas críticas sejam elas formais e/ou experimentais, é uma das qualidades positivas que estimularam a ciência moderna. Faz parte do espírito renovador que compõe a prática do cientista. No entanto, argumenta Rossi, essa arte de abandono completo da história das ideias contém uma dose não pequena de arrogância, que cedo ou tarde ocasiona um entrave ao progresso da ciência.
Essa tendência de eliminar de sua perspectiva científica ideias que deixaram de ser relevantes – seja por razões formais, seja por mudanças, provisórias ou não, das interpretações de resultados observacionais – e que se instalam soberanamente nas mentes dos cientistas, pode produzir danos ao pensamento racional e à interpretação científica da natureza. Desse modo, diz Rossi, é possível entender por que nenhum estudante poderia pensar em diplomar-se em filosofia sem ter lido um diálogo de Platão ou uma obra de Descartes e Kant. Do mesmo modo, seria muito difícil pensar em um currículo de estudantes de letras modernas que excluísse a leitura de Dante, Ariosto ou Shakespeare. E, pergunta ele, por que, ao contrário, nos parece óbvio e natural que um graduando em física ou biologia possa deixar de ler diretamente os Principia de Newton ou as memórias de Einstein ou A origem das espécies de Darwin?
A ciência, claro está, é uma atividade coletiva, um processo social. A entrada em cena de grandes telescópios e de máquinas de quebrar partículas, como as que foram construídas no CERN, em Genebra, e no FermiLab, em Chicago, no século XX, tornaram esse caráter social tão óbvio que não é necessário enfatizá-lo. Entretanto, ao lado desse aspecto, encontramos outro que merece ser comentado, pois embora existisse há muito tempo, sua importância e dimensão cresceu além do que se esperava e está intimamente ligado ao momento histórico da sociedade capitalista contemporânea. Com efeito, o desenvolvimento notável da tecnologia moderna parece ter ofuscado a autocrítica da ciência e conduzido seus resultados a serem entendidos como a única possível interpretação racional da realidade, fazendo submergir a segundo plano a antiga certeza, atualizada e sempiterna, de que, afinal de contas, a ciência é um negócio dos homens, por ele criada e ipso facto, não trata da verdadeira estrutura do mundo. Porque se assim fosse, isto é, se ela ao invés de criar uma racionalidade no mundo estivesse desvelando um segredo da natureza pré-existente, eterno e transcendente, então, e somente então, poderíamos entender a pressa em apagar os erros do passado, retendo somente aquilo que pode ser ainda considerado como relevante na descrição verdadeira do mundo que, segundo esse modo de pensar, é o que os cientistas fazem. Será?
A origem das ideias que dominam o cenário da ciência deveria ser deixada como uma tarefa somente para os historiadores da ciência? Os cientistas que fazem pesquisas hoje, não deveriam se interessar por essa história, por essa origem? Dito de outro modo: deveríamos excluir da análise científica aquilo que é atualmente considerado sem importância?
Essa questão, colocada no começo do século XX e mesmo antes, para permitir a urgência de seu progresso, teve uma resposta pronta e imediata: sim! Essa história dos erros antigos deve ser completamente esquecida pelos cientistas que fazem progredir a ciência e que estão na fronteira do conhecimento atual. E, como consequência, criou-se na sociedade dos cientistas uma espécie terrível e avassaladora de ideia única, de movimento de pensamento único, de programas de trabalho único, estendendo-se isso às reuniões cientificas grandiosas ou diminutas.
Estimulou-se o conceito, que circula hoje como uma regra de ouro entre as diversas organizações internacionais de pesquisa, de que os cientistas não poderiam dar-se à extravagância de perder tempo com investigações e análises daquilo que aparece como irrelevante e em particular do que é entendido pela maioria como ultrapassado. A sociedade científica do começo do século XX, constituída por um número exíguo de efetivos participantes, não poderia dispersar esforços e atividades que não tivessem o respaldo dos outros cientistas como sendo ‘matéria relevante’. E não estou aqui me referindo ao trabalho individual daqueles que produzem revoluções na orientação da ciência, embora mesmo essas revoluções possuam uma importante dose de aprovação social pela comunidade dos iniciados.
No entanto, dado a quantidade fantástica de pessoas envolvidas em atividades científicas na sociedade contemporânea, nos dias de hoje, a questão então se coloca: por que a grande maioria dos pesquisadores segue trabalhando nos mesmos caminhos? Por que ideias novas são tão raras?
Essa questão remete a outra que não lhe é estranha: por que nos congressos internacionais são sempre os mesmos cientistas escolhidos para apresentar ‘os resultados mais recentes’ de sua área? Por que os temas escolhidos nas diferentes reuniões científicas são basicamente sempre os mesmos?
Uma resposta simples surge de imediato: são aqueles lideres que melhor entendem os processos mais avançados da ciência. São eles que melhor conseguem expressar essa vanguarda científica. Mais: são eles que constituem a própria vanguarda cientifica. Será?
Essa resposta me parece não somente simples, mas simplista. De qualquer modo, não me satisfaz, não deveria nos satisfazer. Uma reflexão a esse respeito seria benéfica para a atividade científica dos tempos atuais.
Cosmos e Contexto publica em sua sexta edição uma versão resumida do ensaio ‘A ciência e o esquecimento’1 de Paolo Rossi, bem como dois textos na área de cosmologia que analisam seu desenvolvimento sob essa mesma perspectiva: Jayant Narlikar escreve o texto ‘Cosmologia moderna do ponto de vista histórico’; e José Salim discute ‘Algumas questões cosmológicas’.
Esses textos, tratando explicitamente de Cosmologia, vão muito além de questões técnicas a respeito das características de nosso Universo. Eles constituem críticas severas sobre o modo de fazer cosmologia (leia-se: ciência) que nos dias de hoje, os grandes centros de investigação cientifica estão produzindo.
São artigos de reflexão sobre os fundamentos da ciência cujos conceitos e consequências não deveriam ser ignorados pelos cosmólogos, mas em igual medida pela sociedade que deles obtém a moderna visão da estrutura do nosso universo – bem como os divulgadores da ciência – em particular, quando esses são também doublé de cientistas.
Cosmos e Contexto iniciou a análise dessas questões em números anteriores nos artigos de M Novello, E Recami e D Wiltshire. Continuamos nesse número aprofundando aqueles comentários. (Ao final deste comentário, confira os links para os artigos citados.)
2.
Em maio de 2002 passei um mês de intensa atividade no grupo de Cosmologia do Centre de Physique Théorique de Marseille, na França. Meu vôo de volta ao Rio de Janeiro, sairia de Paris ao final da tarde onde chegou, vindo de Marseille bem cedo pela manhã. Aproveitei então esse dia livre para almoçar com alguns antigos colaboradores da Universidade de Paris e passear entre livrarias que me atraiam, em particular a Press Universitaire de France que ficava no boulevard Saint-Michel. Um desses amigos, Nathalie Deruelle, à época diretora do grupo de Cosmologia da Universidade de Paris, disse-me que deveria me deixar logo depois do almoço pois tinha um compromisso imperdível: assistir à conferência do professor Jayant Narlikar na Sorbonne: “E você sabe, não? Quando Narlikar fala de Cosmologia, não podemos deixar de ouvi-lo!”
Infelizmente, eu soubera tardiamente daquela conferência e fiquei contrariado por não poder adiar por um dia que fosse meu retorno ao Rio.
Se me detenho nesse pequeno episódio é somente para que o leitor que não conheça o status científico do Professor Narlikar possa avaliar a dimensão de sua importância entre seus pares.
Nessa mesma direção, encontramos o comentário de um dos mais brilhantes cosmólogos do século XX, Fred Hoyle, que, no prefácio do livro An introduction to Cosmology de Narlikar, assegura que: “This book is a masterpiece of clarity.” E, acrescenta: “this is not only an important book: it is the best book (on cosmology)”.
O doutor José Salim pertence à primeira geração de cosmólogos brasileiros formados no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) onde desenvolve uma carreira brilhante. Dentre seus inúmeros trabalhos científicos deve-se destacar que foi um dos descobridores da primeira solução analítica representando um universo eterno, que deu origem ao programa atual de universo com bouncing. Nesse modelo, o universo possui uma fase de colapso gravitacional na qual o volume total do espaço diminui com o passar do tempo cósmico global; passa em seguida por uma região de volume mínimo (chamado big-bang finito) e penetra depois na atual fase de expansão. Esse cenário desfruta atualmente de um grande número de cientistas envolvidos em sua análise e congressos internacionais dedicados a seu estudo tem aparecido e, em particular, em nosso país. Nos últimos tempos o professor Salim tem se dedicado a uma análise spinozista da cosmologia, de orientação marcadamente deleuziana e procurando assim criar uma nova orientação da cosmologia.
Por caminhos aparentemente distintos, Narlikar e Salim concluem seus artigos com uma dura crítica ao modo de fazer cosmologia disseminado nos diversos centros de pesquisa internacionais nos tempos atuais. Narlikar argumenta que os cosmólogos de hoje têm se envolvido com uma dose tão grande de elementos especulativos em suas interpretações dos dados observacionais, que o leva a afirmar que essa forma de cosmologia não pode ser entendida como uma disciplina cientifica!
Por outro rumo, Salim vai buscar nas origens da moderna visão da cosmologia, nas primeiras décadas do século XX, e nos pensadores que permitiram seu status filosófico, como Spinoza e Bérgson, sua argumentação para produzir uma crítica à simplificação exagerada de seu modelo padrão que reduz toda a complexidade do universo a uma simples equação formal onde a totalidade do que existe é reduzida, compartimentada, simplificada a somente um grau de liberdade.
Esse encontro da cosmologia atual com suas origens está na raiz da questão apontada por esses autores. Estimular esse diálogo é uma das propostas de Cosmos e Contexto.
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*Mario Novello, cosmólogo do Instituto de Cosmologia Relatividade e Astrofísica (ICRA/CBPF).
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[1] Rossi, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento, Editora UNESP, 1991.
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Links
Nesta Edição:
A ciência e o esquecimento, Paolo Rossi;
Cosmologia moderna do ponto de vista histórico, Jayant Narlikar;
Algumas questões cosmológicas, José Salim.
Em edições Anteriores:
O Barão de Munchausen, Mario Novello;
Táquions, Erasmo Recami;
Da energia escura à estrutura cósmica, David Wiltshire.