Borogodança: primeiros passos
Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.
Clarice Lispector
Em uma ânsia pelo controle[ii], a assim chamada civilização ocidental dividiu o mundo em “Ocidente” e “Oriente”. Cada um deles possui sua concepção de ínfimo, aquele quase nada, de onde o todo em devir emerge. Se tivermos que escolher denominações mais generalistas, o Ocidente chamou-o de “caos”, o Oriente, de “Consciência”. Outros nomes são possíveis (espaço de Hilbert, wuji, natura naturans etc.), mas isso pouco importa.
O Ocidente define seu caos como algo em que coexistem ordem e desordem, que deve ser evitado, controlado. Os fazeres e pensares seconstituem,fazendo uma clivagem nele: ciência, arte, filosofia[iii]. Já o Oriente, apreende a Consciência como um “amor incondicional” ou “vibração sem movimento”[iv], que não julga, logo, não escolhe, e é algo de onde surgimos e com a qual devemos sempre cultivar cada vez mais intimidade. No desabrochar para o mundo, o processo de domesticação dos sentidos vai nos tornando cada vez mais insensíveis a este ínfimo. Portanto, é necessário um esforço inicial para adquirir consciência (“individual”, mas relacional e permeável ao restante) da Consciência. Essa diferença diz muito de como os acontecimentos históricos e sociais se deram, além de orientar nossa ação aqui. No entanto, está claro que a taxonomia de “Ocidente e Oriente” apresenta falhas, como todas as taxonomias, sabendo-se que existem inúmeras interpenetrações de modos de ser, por assim de dizer, ocidentais e orientais.
O Ocidente tende a conceber o tempo de modo linear, numa sucessão de instantes. O Oriente tende a apreendê-lo como um todo pulsante, em que o recorte da atenção modula a temporalidade, ou seja, num, o espaço-tempo, no outro, o aqui e agora, respectivamente[v].
O Ocidente representa o caos por números, gráficos e outras linguagens, exceto em seus exercícios espirituais mais radicais[vi]. O Oriente, ao menos sua expressão mais sensível, desenvolve modos cada vez mais sutis de cultivar a consciência da Consciência, chegando no âmbito pré-linguístico.
O Ocidente, colonizando o Brasil, não o considera enquanto “ocidental”, mas um resto, parte de um terceiro mundo. Nós, aqui e agora, vamos aceitar tal exclusão, mas operando simultaneamente uma inclusão radical, de modo a abandonar as noções de interioridade e exterioridade, apreendendo que tais noções não expressam um limite real, mas níveis de permeabilidade[vii]. Não sendo nem ocidental, nem oriental, o Brasil e suas imediações são outra coisa. Assim, o espaço-tempo não nos interessa mais. Vamos apreender o aqui e agora então; deixamos de nos localizar no eixo cartesiano — tão ocidental —, e de pensar, em termos de Brasil, em raça, sexualidade e linguagem. Se abandonamos um axioma que “nortearia” nosso pensar, mais do que simplesmente pensar, vamos intuir os devires que nos povoam, aqui e agora.
Investigando profundamente nossa terra, uma vez foi conjurada a ninguendade [viii], ou seja, a mistura de etnias gerou tamanha singularidade que foi tragicamente negada pelas etnias anteriores que a engendraram, assombradas pela falsa ideia de pureza. A tal “brasileiridade”, que se tece sob a tão trágica quanto potente malha[ix] da ninguendade, teve que buscar a partir de si mesma a sua “subjetividade”. Mas esse termo não nos ajuda mais. O que nos passa aqui e agora é menos um campo formado por vibrações sutis oriundas de “sujeitos”, e mais uma pulsação que é simultaneamente coletiva e contínua, coagulada em singularidades, que podem ser facilmente confundidas com “sujeitos” ocidentais, mas não: estamos apreendendo, mais uma vez, outra coisa.
Pela ninguendade são produzidas muitas novidades cósmicas: Cartolas, Guimarães, Clarices, Garrinchas & Elzas, Conselheiros, Mojicas, Leminskis, Lygias, del Fuegos, Glaubers, Fawcetts… Se a ninguendade é profícua em criar expressões estéticas, mas poucos conceitos formais, é porque seu processo de criação é, paradoxalmente, mais preciso na proliferação de informais (o que requer outros modos de educar, como veremos). A ninguendade, infância da brasileiridade, que coexiste aqui e agora, sofrendo e querendo, adquire também — quando a potência e a liberdade são mais abundantes — uma maturidade: a ninguendade, passando pelos diversais[x], se transduz[xi] em borogodó.
O borogodó[xii], termo sem etimologia e sem definição canônica, pode significar charme, erotismo, confusão: ainda que se tenha uma certa ideia do que é, cada um produz a sua e quando se ex-plica para o mundo, desenha sem querer um sorriso no rosto. O ó do borogodó tende a ressoar algo como “muito bom” ou “parte mais importante”, mas a instabilidade semântica, que possui grande afinidade com o borogodó, permite que signifique algo negativo também, sendo que, curiosamente, sua contração, “uó”, tende a significar algo “muito ruim”. Borogodó: menos “essência” e mais pulsação do que é a brasileiridade — mesmo uma que seja desterritorializada — que tem como hábito paradoxal escapar de si mesma.
Eis que o Ocidente nos “obriga”, então, a fornecer uma “ontologia” do borogodó. Nós gargalhamos e dizemos que, aqui e agora, são ineficazes as ontologias e as epistemologias. Nossa itinerância pelo mundo não separa “ser” de “conhecer”, nós operamos através de modulações, de modo que o ser se transduz em devir e o conhecer, em intuir.
Se não existem uma ontologia e uma epistemologia do borogodó, o que há? A borogodança: a percursividade dos devires que povoam o aqui e agora, que nossa atenção modula, coreografando uma dança cósmica mutante, cujas cascatas se expressam em rebolados, fomes, instabilidades, receptividades, dribles, mas nenhuma revolução, apenas insurreições, levantes[xiii]. As revoluções são o modo tanto ocidentais quanto orientais em proporem mudanças em largas escalas, sempre com autoritarismos alternando no controle. Forças ocidentalizantes querem sempre adestrar o borogodó às suas hierarquias, como ocorreu em Canudos no plano militar e como se dá na ausência de artistas e cientistas com borogodó em premiações internacionais, que visam, por sua vez, a manutenção do status quo ocidental. A borogodança não está interessada em controlar, mas em ressoar processos de auto-organização, ainda que certos eixos contextuais de referência possam emergir, para logo em seguida serem, de preferência, auto-destituídos, compondo a dança sempre experimental de referencialização e desreferencialização, tendo no horizonte a desreferencialização absoluta como Consciência Caótica, que pulsa em amor incondicional e uma referencialização provisório, que coexiste coma desreferencialização e gera novos modos de viver. Assim, a borogodança estimula que seus coágulos se amem, mas sobretudo que esse amor seja um trampolim para algo mais profundo, o amor incondicional, em que há total descoagulação. A borogodança inspira compaixão, mesmo àqueles que tentam evitar seu contágio.
Ser povoado por devires-borogodó envolve uma ressonância[xiv] muito peculiar, talvez exclusiva: ressoar a consciência da Consciência Caótica com a mais intensa diversão. Sabe-se que o Ocidente criou inúmeros modos de diversão, no entanto, a grande maioria deles possui uma característica de alienação de si e do mundo. A diversão que apreendemos aqui, por sua vez, é tão sagrada quanto festiva, e sua dança intensifica a consciência da Consciência Caótica. Tais devires não são exclusivos de um local, posto que operam por ressonâncias, inclusive as não-locais. No entanto, os diversais possuem afinidade com o borogodó.
Pode-se perguntar por que não os denominamos simplesmente “carnaval” ao invés de borogodança? Claro que a borogodança ressoa intensamente com o espírito do carnaval, no entanto, este possui vários significados e está deveras institucionalizado. Além disso, a borogodança ocorre também em níveis para além do humano: no âmbito quântico, inorgânico, cósmico etc., de um modo instável e destituinte, inclusive desarticulando tais categorias.
O Ocidente possui dificuldade com o borogodó, pois opera por métodos e apriorismos, iludidos em um mundo de objetos, relacionados sobretudo mecanicamente. O borogodó suscita improvisos, desvios, ginga e drible. Opera-se com ele menos por formas e mais pelos informais, ou seja, processos de individuação que nunca terminam, de modo que o borogodó evita o contrato social, preferindo a informalidade; por isso, está muito mais inscrito numa ética[xv] do que em uma moral. O borogodó possui uma relação de drible com a legalidade, o que pede uma relação social baseada mais no consenso criativo do que em leis apriorísticas.
Se o borogodó ressoa pouco com métodos apriorísticos, seu improviso se dá através de ressonâncias, ou seja, fazendo pororoca[xvi] que por sua vez, enquanto ressonância que emerge na borogodança, possui a peculiaridade do surfe festivo em encontros de fluxos diversos. A borogodança conflui a festa, mesmo que o motivo seja fúnebre, o que não constitui necessariamente uma alienação, mas a consciência de que toda morte é transdução: pororoca cujo surfe é radicalmente desreferencializante, que produz uma nova referencialização provisória, ou seja, novos modos de viver, o que suscita algum tipo de celebração. O borogodó dificilmente ressoa com rituais, sobretudo os religiosos, pois tende a preferir a festa ao ritual, de modo que a festa é refratária a dogmas, suscitando experimentações. Se o ritual é pré-formado, a festividade, por sua vez, só emerge a partir das relações no aqui e agora, cujas singularidades vão modular a festa.
A borogodança não observa o mundo, mas emerge no mundo, na vida, modulando a atenção, ainda que tenha uma mínima compaixão pelo hábito da ciência em representar. A ciência, por sua vez, tem seus laboratórios e equações apreendidos enquanto um exercício da razão limitado por ela mesma, chegando nela mesma, num ouroboros parcialmente dinâmico que é confundido com a Natureza. Pode-se questionar tal crítica, ao pleitear a eficácia científica. De um lado, muito da eficácia da ciência é oriunda de experimentos controlados de laboratório, de outro, há certa negligência por grande parte da filosofia da ciência ao desconsiderar a enorme importância do processo intuitivo no fazer científico, assim como não se explica certos saltos — intuitivos — que ocorrem na prova de resoluções de problemas matemáticos.
Para se apreender de fato os devires que compõem a Natureza — cujo ínfimo ou sua apreensão mais sutil, chamamos aqui de Consciência Caótica —, seria preciso modular a atenção para além dos métodos e linguagens. Nesse sentido, uma ciência atravessada pelo borogodó se tornaria outra coisa: sem “objetos” e com os supostos “inorgânicos” também inscritos na vida, além de evidentemente assumir, de saída, a importância acima citada da intuição no fazer científico. Também não seria concebível o “mecanicismo”, apreendendo que as supostas relações mecânicas são imprecisões, quando não se apreende devidamente as modulações e ressonâncias, que se expressam quando uma relação é tomada por um objeto em si, separado do seu entorno. Essa concepção, que vai além da ciência canônica, suscita outros modos de educação, que necessariamente seriam muito mais uma modulação da atenção, convidando sempre à criação, do que a mera transmissão de conhecimento[xvii]. Isso se desdobra na improbabilidade de que na borogodança emerja “conceitos”, a não ser que eles sejam transduzidos em pranchas (não-metafóricas, mas ressonâncias) para surfar na pororoca, trampolins para intuir o impensável.
A borogodança não se expressa por “representações”, mas por contágios. Assim, uma música torna audível os ritmos cósmicos, uma instalação artística opera modulações que o aqui e agora sugerem, a literatura expalavra o inenarrável, cuja poética se intensifica à medida que aumenta a intimidade na Consciência Caótica. A borogodança é insensível às taxonomias sexuais apriorísticas, mas goza com a ética do desejo. A borogodança não interpreta, sua saúde está no acolhimento e cultivo da criatividade, inconstante e inevitável[xviii]. A borogodança não crê em nada, não tem como hábito rezar para deuses, nem ser devoto à santos, mas apreende que todas as pulsações cósmicas são sagradas. A borogodança não quer colonizar nem ensinar, mas está sempre ressoando. A borogodança não separa o natural do artificial, mas sabe que as forças cósmicas possuem diferentes curvas e retidões, que ora se completam, ora se excluem, ora se misturam, além de operar em todas essas formas simultaneamente. A borogodança não separa micro e macro, mas apreende as extensões do mar em uma gota e vice-versa. A borogodança apreende que a vida se expressa a partir do amor incondicional, mas intuindo que isso é mais uma apreensão do pensamento, lindando com o amor incondicional de modo provisório e que a morte é apenas uma desorganização contextual. A borogodança não se autodefine enquanto “borogodança”; as palavras e conceitos são apenas pulsações na modulação da atenção, que se esvaem ao vento. A borogodança, portanto, não se institui, nem como saber, nem como movimento: a borogodança é tão destituinte, ingovernável, quanto impensável, mas pode ser intuída e apreendida, em vários níveis, alguns radicalmente sutis.
Este texto nem é um Manifesto, nem imanifesto, mas algo provisório e instável, contagiado pelo borogodó.
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[i] Nelson Job é pesquisador transdisciplinar, criador do campo conceitual e experimental transaberes, escritor, autor do romance Druam entre outros livros, psicólogo e doutor pelo HCTE/UFRJ.
[ii] Nelson Job, “Adeus ao controle: como dançar sutilmente a liberdade em uma ecologia das ressonâncias”.
[iii] Gilles Deleuze & Félix Guattari, O que é a filosofia?
[iv] Mark Dyczkowski, The Doutrine of Vibrations.
[v] François Jullien, Um sábio não tem ideia.
[vi] Wouter J. Hanegraaff, Hermetic Spirituality and the Historical Imagination.
[vii] Nelson Job, Vórtex: modulações na Unidade Dinâmica.
[viii] Darcy Ribeiro, O povo brasileiro. Nós não estamos interessados no pensamento de Darcy enquanto estadista, muito menos em identificar um universal para a definição de “povo brasileiro”. Apenas nos interessa a ninguendade como exercício provisório em promover uma espécie de “mito fundador”, passando pelo estágio já sem nenhum sotaque freyreano dos diversais, até que logo tudo isso deva ser abandonado em prol de um mergulho no que estamos tratando aqui enquanto borogodança, numa apreensão (a)temporal em que a noção de fundação perde sua importância.
[ix] Tim Ingold, Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição.
[x] Antônio Bispo dos Santos, A terra dá, a terra quer.
[xi] Gilbert Simondon, A individuação à luz das noções de forma e de informação.
[xii] Márcia dos Santos, Novas crônicas, velhas palavras: em busca do borogodó perdido.
[xiii] Hakim Bey, TAZ: Zona Autônoma Temporária.
[xiv] Tato Taborda, Ressonâncias.
[xv] Baruch Spinoza, Ética.
[xvi] Nelson Job, “Pororoca: a criação ‘brasileira’ enquanto levante”.
[xvii] Nelson Job, “Transaberes enquanto indissociabilidade de clínica e educação”
[xviii] Nelson Job, “Esquizoanálise & borogodó” (no prelo).
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