Binômio Nova Ciência – Igreja e as interdições discursivas
A Ciência é um conjunto de conhecimentos públicos, a qual cada pesquisador acrescenta sua contribuição. Seu sistema de comunicação é vital em sua constituição e apresenta-se de formas variadas, entre elas: cartas, livros, periódicos especializados e, mais recentemente, a Internet. Para Ziman (1981, p.106) a carta particular é uma das mais importantes formas de depoimento quanto à descoberta, e ele fala também que os livros foram, até a Revolução Científica do século XVII, a única maneira de tornar públicas as novas ideias científicas.
Entre os grandes livros que abalaram as estruturas do pensamento está a obra de Copérnico De Revolutionibus Orbium Coelestium, concluída entre 1530 e 1531, e publicada em 1543, cuja importância só foi constatada bem mais tarde após sua publicação. Copérnico, considerado um dos mais importantes astrônomos europeus de seu tempo, consolidou sua reputação após a publicação deste livro e causou uma revolução no conhecimento ocidental (SOARES, 1999, p.146). Alguns estudiosos defendem que a tese do sistema heliocêntrico do universo despertou um intenso debate nas gerações futuras e foi um dos caminhos para o nascimento da ciência moderna (SOARES, 1999, p.168).
O controle das informações já foi exercido de vários modos ao longo dos séculos e apesar de a Igreja Católica ter sido tolerante com o heliocentrismo nos primeiros anos, inclusive tendo um membro da Cúria Romana, Cardeal Nicolau Schönberg, incentivando a publicação do livro de Copérnico, o qual também foi utilizado pelo Papa Gregório XIII na reforma do calendário, a Revolução Copernicana foi marcada pela intolerância da Igreja Católica. A intransigência com o heliocentrismo partiu muito mais dos defensores do pensamento de Aristóteles, até porque De Revolutionibus chegou a ser ensinado nas maiores universidades católicas. O triunfo final do heliocentrismo não foi fácil, e contou com a eliminação física de Giordano Bruno e a condenação ao silêncio de Galileu (SOARES, 1999, p.170).
O livro de Copérnico tornou-se o fio condutor de Galileu na luta por suas ideias, que resultou em sua condenação em 1633 e reforçou a proibição do copernicanismo. Porém, segundo REDONDI (1991) e WHITE (2009), toda a questão do julgamento de Galileu relacionada a Copérnico possivelmente foi um mero engodo. Há evidências (documentos G3, descoberto em 1892, e EE291, descoberto em 1999, em arquivos do Santo Ofício) de que o verdadeiro crime de Galileu seja relacionado à exegese bíblica, ligado a teoria atômica que ele descreveu em Il Saggiatore (teoria corpuscular), que ameaçava danificar o retrato ortodoxo da Eucaristia. Essas disputas discursivas remetem este trabalho ao pensamento difundido no século XX por Foucault.
A ortopedia social foi um termo designado por Michel Foucault para classificar o poder da sociedade disciplinar, que tem como referência o Panóptico, modelo definido por Bentham em 1791 para construir uma casa de detenção com arquitetura circular onde em qualquer lugar que estivesse o indivíduo poderia ser observado. No Panóptico, os erros são prevenidos pelo autocontrole do indivíduo, que sabe que está sendo vigiado, mas não sabe por quem, nem onde. O controle acontece de maneira determinada e constante, onde até suas intenções ou pensamentos não são germinados, já que não existe a possibilidade de executá-los. Para Foucault: “O Panopticon é uma utopia de uma sociedade e de um tipo de poder, que é, no fundo, a sociedade que atualmente conhecemos” (FOUCAULT, 2002, p.87).
Foucault conceitua o panoptismo baseando-se nas propostas de Bentham para reforma do sistema judiciário. É a partir deste modelo que, no século XIX, surgem as instituições, desenvolvidas em torno do modelo de instituição judiciária. As instituições de correção têm a função de corrigir as virtualidades dos indivíduos a partir do controle social, praticado por quem detém o poder e que tem a possibilidade de constituir um saber. Foucault diz ainda que em toda sociedade existe o controle do que deve ser dito.
…em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 1996, p.8).
Foucault, na aula inaugural do Collège de France, em 2 de dezembro de 1970, posteriormente publicada sob o título de A ordem do discurso, fará a pergunta que nos leva a abordar o tema no trabalho. Diz Foucault: “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal está o perigo?”. Fala também que “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder” e descreve dentre os procedimentos de controle do discurso a exclusão. Tal exclusão pode ocorrer por interdição ou pelo que ele denominou de vontade de verdade. FOUCAULT, 1996, p.8)
Foucault tenta perceber como o sistema de exclusão se realizou, se repetiu, e continua atualmente. Cita a época sofística e depois segue para passagem do século XVI para o XVII. O autor classifica dentre os sistemas de exclusão do discurso a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade; este último pode sofrer três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam. São elas: tabu do objeto; direito privilegiado; ritual da circunstância.
Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. (FOUCAULT, 1996, p.9).
A primeira interdição, o tabu do objeto, quer dizer que não se tem o direito de dizer tudo. A segunda, o direito privilegiado, exerce a sua força pela proibição da palavra, ou seja, que qualquer um não pode falar de qualquer coisa. A terceira interdição, o ritual da circunstância, prevê que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância. A vontade de verdade se baseia na exclusão a partir de um suporte institucional, que significa fundamentar um discurso, justificá-lo a partir de um discurso verdadeiro. Por mais que o discurso aborde questões completamente novas, é preciso fundamentá-lo, o que significa justificar seu desdobramento a partir de um discurso anterior. Foucault diz assim:
Enfim, creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de nossa sociedade – uma espécie de pressão como um poder de coerção. (FOUCAULT, 1996, p.18).
Comparando as interdições do discurso mencionadas por Foucault e as sofridas por Galileu, interpretamos do seguinte modo: Galileu teve a proibição da palavra quando foi condenado ao silêncio, o que nos leva a pensar no tabu do objeto, que quer dizer que não se tem o direito de dizer tudo.
A segunda interdição, o direito privilegiado, exerce a sua força pela proibição da palavra, ou seja, que qualquer um não pode falar de qualquer coisa, a qual relaciona-se com o fato de Galileu ter violado um dogma tridentino da eucaristia, ao concluir no Il Saggiatore que os átomos são imutáveis, possibilitando a contestação de que a eucaristia poderia transformar a hóstia na carne e sangue de Jesus. Galileu também não poderia ter utilizado argumentos bíblicos para defender-se. Em uma carta escrita a Benedetto Castelli, expõe suas opiniões, entre elas a de que a Escritura não se engana, mas sim os seus intérpretes.
A terceira interdição, o ritual da circunstância, prevê que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância e Galileu, ao escrever Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo tolemaico e copernicano, não atende às recomendações dos censores para fazer algumas correções no livro e o imprime em Florença. O livro foi lançado em um péssimo momento e as circunstâncias não eram favoráveis para Galileu. O Papa Urbano VIII foi acusado de compactuar com os hereges durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e, para não ser deposto, teve que aceitar o direcionamento político dos seus adversários (SOARES, 1998, p.193). Por fim, os inimigos de Galileu conseguem denunciá-lo ao Santo Ofício.
Il Saggiatore foi apresentado por Galileu a Roma como o manifesto oficial de seu projeto e de seu esforço de legitimação polêmica diante da força esmagadora das instituições que baseavam seu poder na tradição e na autoridade, principalmente os jesuítas. Para Galileu existia a possibilidade de que as sensações fossem devidas ao movimento de partículas de matéria, “mínimas, pequeníssimas e móveis”, dotadas de forma (“minina quanti”), que impressionavam os sentidos. A teoria corpuscular tratava de partes microscópicas de uma matéria prima, universalmente difundida, cuja função desagregadora se torna possível por suas dimensões e por sua alta velocidade. (REDONDI, 1991)
Mas qual a grave questão envolvida na questão atomista? Neste ponto, recorremos ao poema do filósofo atomista Lucrécio, conhecido por De Rerum Natura, que, para a filósofa Mary Midgley, representa a formação do pensamento ocidental, especialmente a ciência ocidental. Este poema foi o principal canal que permitiu a teoria atômica chegar à Europa renascentista. Ao falar do poema de Lucrécio, Midgley (2001,p.23) diz: “…the force and fervour of the poem gave atomism a head start”, e cita um trecho do poema:
They make propitiatory sacrifices, slaughter black cattle and despatch offerings to the Departed Spirits… As children in black darkness tremble and start at everything, so we in broad daylight are oppressed at times by fears as baseless as those horrors which children imagine coming upon them in the dark. This dread and darkness of the mind cannot be dispelled by the sunbeams, the shining shafts of day, but only by an understanding of the outward form and inner workings of nature… How many crimes has religion led people to commit? (LUCRÉCIO, apud MIDGLEY, 2001, p.23)
Midgley considera que Lucrécio não via o atomismo como solução dos problemas científicos, mas sim como algo muito mais importante para a vida humana. Para ele, o atomismo era a única maneira de libertar a humanidade do peso esmagador da superstição mostrando que a causalidade natural era independente dos deuses. Para Lucrécio, os seres humanos estavam tão atormentados com os eventos naturais que tomavam precauções inúteis e às vezes horríveis, como o sacrifício humano.
For Lucretius did not see atomism primarily as a solution to scientific problems. Following Epicurus, he saw it as something much more central to human life. For him it was a moral crusade – the only way to free mankind from a crushing load of superstition by showing that natural causations was independent on the gods. Human beings, he said, are so ceaselessly tormented by anxiety about natural events that they exhaust themselves in precautions against them that are useless and sometimes horrible, such as human sacrifice. MIDGLEY (2001, p.23)
Retornando à pergunta: qual a grave questão envolvida na questão atomista? Galileu propõe a ideia de que todas as substâncias tinham propriedades como gosto e cor por serem feitas de partículas invisíveis, ou seja, átomos ou moléculas. O problema maior é que, ao chegar à conclusão de que os átomos são imutáveis e que ao se transformarem em outras substâncias suas características também se transformariam, nega claramente o princípio de transubstanciação e permite a contestação da versão de que a eucaristia poderia transformar a hóstia na carne e no sangue de Jesus, uma violação do dogma tridentino da eucaristia (o que distingue o catolicismo de outras formas de crenças cristãs). Galileu aos 69 anos, velho e doente, vai a julgamento em Roma em 1633 e não aceita o conselho de amigos para fugir para algum país protestante, como a Holanda. É condenado a uma pena de prisão formal no Santo Ofício e à pena salutar de recitar os sete salmos penitenciais uma vez por semana durante três anos. Tem um julgamento “suavizado” em relação aos demais do Santo Ofício, mesmo porque em sua idade e estado de saúde não é permitido o uso de tortura; este seria “um caso difícil”. (WHITE, 2009).
Com relação à carta particular, considerada como uma das mais importantes formas de depoimento, como citado no início deste ensaio, é visto no contexto da história da ciência que a vida de Galileu reservou uma história de amor entre ele e sua filha Maria Celeste. Para Sobel: “a história deles não é uma história de abuso, de rejeição ou repressão intencional dos talentos recíprocos. Ao contrário, é uma história de amor, uma tragédia e um mistério”. Das cartas de Maria Celeste para seu pai Galileu, as poucas que foram preservadas estão na Biblioteca Nacional Central de Florença; já as de Galileu para a filha, ao que parece foram todas queimadas ou enterradas quando ela faleceu. Visto que depois do julgamento em Roma nenhum convento ousaria abrigar os escritos de alguém “veementemente suspeito” de heresia. Pelas cartas de Maria Celeste, Galileu era um bom católico e sempre procurava conciliar sua religião com seu trabalho de cientista. Em uma carta enviada por Maria Celeste ao seu pai, logo após seu julgamento, ela diz:
“… agora é hora de o senhor valer-se mais do que nunca da prudência que Deus Nosso Senhor lhe deu, suportando esses golpes com aquela força de espírito que sua religião, sua profissão e sua idade requerem. E como, em virtude de sua vasta experiência, o senhor tem plena consciência da falácia e da instabilidade de tudo neste mundo miserável, não deve dar muita importância a essas tormentas, mas, ao contrário, esperar que elas logo cessem…” (MARIA CELESTE apud SOBEL 2000, p.263).
Galileu morreu no dia 8 de janeiro de 1642 e apesar de Ferdinando de Médici querer prestar uma bela homenagem enterrando-o na basílica principal da Igreja de Santa Croce e erguer um monumento celebrando suas conquistas, o papa Urbano VIII determinou que Galileu fosse enterrado como cidadão ordinário, sem cerimônias ou qualquer monumento. Apesar de a igreja ter tentado suprimir qualquer celebração à vida de Galileu na Itália, o mesmo não aconteceu na França, Alemanha e Inglaterra, e Galileu foi reconhecido como grande cientista. (WHITE, 2009).
A questão entre Galileu e a Igreja reflete o problema da relação entre ciência e religião; ideias metafísicas e religiosas obstruíram o avanço da ciência, como no caso do conflito da nova ciência de Galileu e a igreja católica. Galileu não era um cientista puro, mas um homem engajado em uma discussão política, tendo aliados inteligentes na igreja e confrontando outros setores cultos da hierarquia católica. Galileu, seja tirando ideias de sua própria cabeça, seja usando resultados anteriores esparsos, unificou o conhecimento sobre o movimento dos corpos em uma teoria matematizada com base experimental, sendo esse seu mérito como fundador da dinâmica (ROSA, L.P. 2005) que ajudou a demolir a física aristotélica.
BIBLIOGRAFIA
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
_________. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau Ed., 2002.
MIDGLEY, Mary. Science and poetry. Londres: Routledge, 2001.
ROSA, Luiz Pinguelli. Tecnociências e Humanidades: novos paradigmas, velhas questões. São Paulo, Paz e Terra, 2005.
REDONDI, Pietro. Galileu Herético. São Paulo, Cia. Das Letras, 1991.
SOBEL, Dava. A filha de Galileu: um relato biográfico de ciência, fé e amor. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000.
SOARES, Luiz Carlos. Do novo mundo ao universo heliocêntrico: os descobrimentos e a revolução copernicana. São Paulo: Hucitec, 1998.
SOARES, Luiz Carlos. O pós-1945: os complexos bélico-militares e a guerra fria. In: ______; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Reflexões sobre a guerra. Rio de Janeiro: 7 Letras; Faperj, 2010. p. 44-58.
WHITE, Michael. Galileu Anticristo. Rio de Janeiro, Record, 2009.
ZIMAN, John Michael. A força do conhecimento. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1981.