Bifurcação no Universo
(A necessidade de ir além de uma aliança: a união ciência-filosofia que a Cosmologia exige)
Introdução
O Universo é uma estrutura simples?
Durante o século 20, uma imagem de simplicidade para descrever o universo foi propagada em inúmeros meios de comunicação através do mundo, seja por cientistas através de revistas técnicas, seja por divulgadores da ciência em jornais cotidianos e programas de televisão.
E, no entanto, história recente, uma versão diferente tem despertado a atenção dos cosmólogos, que estão redescobrindo a complexidade do universo. Isso acontece como consequência natural das críticas e do desenvolvimento que a teoria da Relatividade Geral—que descreve os processos gravitacionais que controlam a evolução da cosmologia — está passando.
Há, sem dúvida, uma enorme atração pela descrição de fenômenos observados em termos de uma formulação simples. Com efeito, entre duas possíveis interpretações de um mesmo fenômeno, escolhe-se, em geral, aquela que é menos complexa, que não exige uma análise muito sofisticada.
A ideia de descrever o universo a partir somente de uma única função relacionada ao volume total do espaço tridimensional, encantou os físicos que aceitaram a proposta do cientista russo A. Friedmann que, na segunda década do século 20, descobriu uma solução exata das equações da Relatividade Geral.
É importante notar que a propriedade de universalidade da gravitação impede que façamos experiências controlando o campo gravitacional; ou seja, na Cosmologia só podemos fazer observações de fenômenos não controlados.
Eu não entrarei em detalhes na descrição dessa solução e suas consequências, remetendo o leitor interessado para as referências citadas ao final deste texto ou em https://cosmosecontexto.org.br/licoes-de-cosmologia-para-nao-especialistas-das-leis-fisicas-as-leis-cosmicas/.
Façamos somente um breve comentário sobre a solução cosmológica de Friedmann, pois aqui, quero me concentrar nos principais desvios daquela solução e que estão produzindo aquilo que chamei recentemente de Cosmologia Aberta (cf https://cosmosecontexto.org.br/cosmologia-aberta/).
Métrica cosmológica
Em 1915 aparece a Teoria da Relatividade Geral, uma nova forma para descrever processos gravitacionais. Em 1917 Einstein aplica sua nova teoria ao universo e produz o primeiro modelo cosmológico descrevendo um cenário estático. Em 1922 Friedmann produz um novo modelo, onde o volume espacial total varia com o tempo cosmológico. Uma dificuldade enorme aparece: esse modelo tem uma singularidade onde todas as quantidades físicas atingem o impossível valor infinito.
Independentemente desse problema, o modelo de Friedmann se adaptou bastante bem às ulteriores observações astronômicas.
Desde então, os modelos cosmológicos examinados são descritos, em sua grande maioria, com a identificação da distribuição de matéria/energia no universo a um fluido perfeito, caracterizado por uma densidade de energia E e uma pressão P. No entanto, nas últimas décadas do século passado, começou-se a examinar outras configurações da matéria.
Isso ocorreu depois que se mostrou que diversos cenários mais complexos não exibiam a dificuldade da singularidade e podiam explicar a recente observação do fenômeno de aceleração do universo.
Universo eterno (Bouncing)
Em 1979 aparece o primeiro modelo cosmológico representando um universo dinâmico, sem a presença de singularidade (Novello-Salim), eliminando a maior dificuldade do modelo de Friedmann. A fonte da geometria consiste no campo eletromagnético interagindo não-minimamente com a gravitação. Essa solução representa um universo que se inicia no Vazio (quântico) no estado fundamental da geometria plana de Minkowski, colapsa diminuindo o volume total do espaço até um valor mínimo (distinto de zero) e inicia a seguir uma fase de expansão.
Criação de matéria (Ya. Zeldovich)
Com o advento da Teoria Quântica a dualidade onda-partícula — que se originou na interpretação da estrutura da luz na famosa controvérsia entre Huygens (a luz é uma onda) e Newton (a luz são corpúsculos, os fótons) e posteriormente se espalhou para todo corpo material– provocou uma mudança radical na descrição da matéria. Tudo que existe (matéria e vazio) passou a ser descrito de modo unificado, em um único formalismo segundo a Teoria Quântica de Campos (TQC).
Desse modo, a substância fundamental – o que chamamos, simplificadamente, matéria — passou a se espraiar por todo espaço-tempo, sob forma de aglomerados de diversos tipos de campo. Assim, todo corpo macroscópico deve ser descrito em termos de número de partículas fundamentais de cada campo (os quanta do campo).
Essa teoria (TQC) unifica as diversas quantidades de matéria de um dado corpo, estabelecendo um formalismo que permite a aplicação de um operador formal a um estado fundamental – chamado Vazio do campo correspondente— que quantifica o seu número de partículas. Ou seja, se um corpo possui um certo número N de quanta do corpo ele pode ser descrito como resultado da aplicação formal de N vezes um operador de criação atuando sobre seu estado de Vazio.
Entende-se então que esse Vazio não é único: existe um Vazio para cada tipo de quanta.
Em um artigo de 1970 o cientista russo Ya. B. Zel´dovich conseguiu exibir um resultado notável que misturava essas ideias da TQC com a proposta de Friedmann de que o universo é um processo dinâmico. Ele mostrou que o estado Vazio que existe em um dado tempo, não permanece como tal em um tempo posterior. Isso se deve à evolução da geometria do espaço-tempo e sua identificação aos efeitos da gravitação. Dito de outro modo, a gravitação interage com a matéria (sob diferentes formas) e o resultado desta interação, em um universo dinâmico, gera o fenômeno de criação de partículas.
Fluido viscoso
Em momento ulterior Zel´dovich examina a forma de distribuição dessa matéria recém-criada no universo, e mostra que ela pode ser descrita como um fluido viscoso de densidade de energia E e pressão P onde P é função não somente da densidade de energia (como na descrição do universo de Friedmann) mas depende também da taxa de variação do volume espacial do universo. É essa propriedade que devemos examinar para entender o fenômeno da bifurcação.
Bifurcação
O fenômeno de bifurcação em um ponto de uma trajetória implica na ruptura causal entre o passado e o futuro desse ponto. Dito de outro modo, perde-se o princípio do determinismo clássico com que a física sempre construiu um cenário causal do mundo.
Esse fenômeno, a bifurcação, pode ocorrer em certos sistemas de equações (diferenciais), como descoberto há mais de um século pelo matemático francês Henri Poincaré. Um exemplo típico acontece em processos descritos por fluidos viscosos.
No laboratório terrestre, esse fenômeno pode ser controlado e suas consequências minimizadas. Essa situação foi popularizada graças ao livro La nouvelle alliance do químico Ilya Prigogine e da filósofa Isabelle Stengers.
Um exemplo mais extraordinário do que o considerado naquele livro, foi a descoberta de que as equações da Relatividade Geral, que descrevem a evolução do universo, permitem a existência de bifurcação.
Onde aconteceria um tal processo de bifurcação? Precisamente no momento de transformação do colapso à expansão atual. Ou seja, no valor onde o volume total do espaço é mínimo. Perde-se assim a possibilidade de elaborar uma cosmologia capaz de descrever a totalidade espaço-temporal do universo.
Isso significa que a fase anterior de colapso gravitacional (onde o volume do espaço diminui com o tempo cósmico) ficaria causalmente desconectada da atual fase de expansão.
Não seria possível instituir formalmente uma cosmologia causal nesse cenário. Somente através de observações poderíamos dar sentido a uma descrição do universo. A análise teórica não seria suficiente para isso.
Em verdade, estamos em face de um cenário que desestabiliza o edifício formal da ciência, levando à necessidade imperiosa de reexaminar seus fundamentos – ou seja, a presença de uma bifurcação no universo está acenando para o reexame dos princípios da ciência.
A Cosmologia, para seguir em frente e produzir um cenário realista do universo, requer impreterivelmente a implementação desse processo.
Um primeiro passo consistiria em um retorno anterior à ordem cientifica criada no século 16, alterando não somente o determinismo clássico, mas sim dialogando com outras áreas do saber, compartilhando os diversos modos de interpretar o mundo, nas múltiplas versões do pensamento e, possivelmente, retornando ao momento em que ciência e filosofia não se haviam separados.
Referências
- https://cosmosecontexto.org.br/licoes-de-cosmologia-para-nao-especialistas-das-leis-fisicas-as-leis-cosmicas/.
- https://cosmosecontexto.org.br/cosmologia-aberta/.
- Bouncing Cosmology, M Novello e S. Bergliaffa in Physics Report (2008)
- M. Novello e Ligia Maria C. S. Rodrigues: Bifurcation in the early cosmos in Lettere al Nuovo Cimento vol 40, 10 (1984)
- M. Novello e J. M.Salim: Non linear photons in the universe in Physical Review (1979).