Atenção para a atenção
É quase inevitável remetermos à obra de George Orwell 1984, em que o governo opressor do Big Brother anunciava sempre uma novilíngua, espécie de gramática progressivamente encurtada, tendo como objetivo limitar as pessoas, diminuindo assim a sua capacidade de questionamento e, por consequência, de resistência.
Junte tudo isso à crescente medicalização da vida, a tendência em trocar uma mudança saudável de hábitos por remédios para quaisquer males e a mais recente “algoritimização” da vida, a saber, o fato do nosso cotidiano e muitas de nossas escolhas serem invadidas por algoritmos presentes em lojas, bancos, redes sociais etc. A massificação de músicas populares e repetitivas e de filmes blockbusters limitam a possibilidade de escolha, gerando uma aparente diversidade e uma limitação estética. O resultado: pouco conhecimento alimenta certa paranoia, justificando a crença em soluções fáceis, cuja crescente legitimação cria uma atmosfera de orgulho da ignorância.
Vivemos hoje uma estranha guerra de realidades: de um lado, o fundamentalismo medieval (religioso, dogmático e demonizador do outro) e por outro lado, um fundamentalismo iluminista (científico, racional, considerando jocosos os sistemas de crenças em geral).
Uma medida a se tomar é problematizar ainda mais o solipsismo acadêmico, ou seja, tornar os saberes da universidade menos estruturados em departamentos que não interagem e abrir as portas desses conhecimentos relacionados, para um público mais amplo. É importante que intelectuais deem mais atenção à divulgação científica, ao contato com o público leigo. Junto a isso, a proliferação de museus de ciência, grupos de estudos, conversações públicas. Urge tornar o saber prazeroso e desejável, como uma celebração do encontro com o mundo.
Tudo isso é apenas um trampolim para um problema mais radical e profundo. É necessária uma reflexão de como se concebe a educação. Educação é muito mais uma questão de atenção do que de simples transmissão. Entendo por transmissão a típica aula de um professor que limita a ensinar seus conhecimentos para uma audiência passiva. A educação enquanto transmissão, realiza uma descolonização do olhar, uma conscientização corporal e um convite à descoberta, ao conhecimento como movimento lúdico. Algumas filosofias ditas orientais são precisas em praticar a meditação enquanto modulação da atenção, o que envolve uma mudança de foco no eu ou na mente individual para o pertencimento cósmico, ou seja, na relação daquele corpo com sua atmosfera, emergindo disso mais um contínuo eu-mundo do que um dualismo eu-e-o-mundo.
A partir dessa educação enquanto uma questão da atenção, uma nova concepção do tradicional dualismo simples-complexo emerge. Para evitar a atual disputa do pensamento simples da novilíngua cada vez mais corrente com o pensamento complexo da academia e de parte da malha progressista da sociedade – ainda que ambas coincidam menos do que normalmente se diz – cabe retornar à etimologia do que é simples e complexo. Seria interessante, por exemplo, que as escolas produzissem parte do seu conteúdo, como suas músicas, instrumentos e brinquedos.
O termo plic em latim significa “dobra” ou “prega”. Nesse sentido, simples significa “sem dobra”; complexo seria “com dobra”; explicar,“desdobrar”, multiplicar, consiste em “muitas dobras” e implicar é “estar nas dobras”.
O convite aqui é para, sobretudo, se implicar. Com isso, quero dizer que a dicotomia simples e complexo deve ser ultrapassada e o foco da atenção é na implicação, no sentido educativo. Implicação é nos estendermos ao contínuo do mundo, do ponto de vista que as dobras e redobras sejam apenas movimentos. Apreendermos a educação e o mundo por esse viés permite evitar dualismos e, sobretudo, evitar fundamentalismos, quaisquer que sejam. Se, digamos, a religião tem por destino desdobrar ou simplificar e a ciência tem por hábito dobrar ou complexificar (ainda que, dependendo do enfoque, podemos inverter e até mesmo igualar esses movimentos de ambas), devemos focar a atenção nessa atitude de nos implicar no encontro de ambos.
A implicação pela atenção, juntar-se criativamente ao mundo, é mais que uma aparência, deveria constituir um hábito. O convite ao saber, ao aprender a aprender, pode se tornar uma atividade lúdica em todas as idades e em todos os níveis de conhecimento. Isso deve ser realizado na escola, continuado na universidade e invadir os lares e as ruas para ser capaz de gerar uma convivência prazerosa e harmônica.