As lições de Gustave Le Bon sobre o 08/01/2023
Gustave Le Bon, em 1855, fez um relato sobre a psicologia das multidões, isto é, sobre a influência decisiva que um indivíduo recebe de modo simultâneo de um grande número de pessoas e que é capaz de produzir evidente alteração em sua vida mental. Um grupo é definido por um conjunto de pessoas que se organizam em um momento definido e com um objetivo comum estabelecido, ainda que tais pessoas possam ser, rigorosamente, estranhas umas às outras.
Le Bon começa o texto afirmando que o poder das multidões é o último soberano da idade moderna. Se ao longo da história houve uma sucessiva destruição e substituição de figuras de poder, as multidões como um novo tipo de poder se ergueu, se fortaleceu e se prestigiou, tornando-se a voz preponderante das tradições políticas (2018, p. 20).
Le Bon, repetindo as ideias kantianas, afirma que “os homens nunca se comportam seguindo as prescrições da razão pura” (2018, p. 25), mas ao se reunir em grupo, os homens já não se comportam nem mesmo segundo as prescrições de sua própria razão. Um indivíduo colocado em um grupo passa, muitas vezes, a agir de modo diverso do que agiria individualmente, fazendo desaparecer sua personalidade consciente ao mesmo tempo que faz surgir uma alma coletiva, cuja orientação dos sentimentos e pensamentos vai em uma mesma direção. A “multidão psicológica… forma um único ser e encontra-se submetida à lei da unidade mental das multidões” (2018, p. 29. Grifo do autor). Os diversos membros desse coletivo podem ser absolutamente dessemelhantes em relação a ocupações, caráter, inteligência, mas uma vez que se reunem em uma multidão, tais diferenças se desvanecem em favor de uma alma comum, o que faz com que haja, inclusive, disparidade entre os atos de um sujeito enquanto membro de uma coletividade e seus mesmos atos tomados individualmente e dissociados do coletivo. Completa Le Bon: “algumas ideias, alguns sentimentos só surgem ou se transformam em atos nos indivíduos em multidão” (2018, p. 32).
Algumas características do grupo são destacadas pelo autor: em primeiro lugar, a mediocridade. Como só se partilha qualidades ordinárias, como o heterogêneo perde-se no homogêneo, sentencia Le Bon: “as multidões acumulam não a inteligência, mas a mediocridade”. O autor destaca que as ideias só se tornam acessíveis às multidões depois de ganharem uma forma muito simplificada, sofrendo completas transformações e reducionismos para se tornarem populares. Ou seja, as ideias que chegam às multidões já não podem exibir sua complexidade ou grandeza, sendo comum apenas as ideias rebaixadas, simplistas e desproblematizadas (2028, p. 63), ou seja, lhes estão ausentes tudo o que provém da arte do espírito construído ao longo dos séculos da civilização; a seguir, temos a ilusão da invencibilidade, posto que na multidão o indivíduo adquire “um sentimento de poder invencível, que lhe permite ceder a instintos que, sozinho, teria forçosamente refreado. Cederá a eles ainda mais facilmente na medida em que, sendo a multidão anônima e consequentemente irresponsável, desaparece inteiramente o sentimento de responsabilidade que sempre detém os indivíduos” (2018, p. 34-35). Com isso advém a certeza da impunidade, que aumenta na proporção da multidão e por isso esta se entrega aos piores excessos e cenas de pretenso heroísmo. Dá-se a transformação do sujeito ignorante e nulo em alguém dotado de uma força brutal que, ainda que passageira, se mostra imensa (2018, p. 52); outra característica é o traço altamente contagioso das ideias e dos sentimentos, o que faz com que o interesse coletivo se sobreponha ao interesse individual. Por mimetismo e reprodução que se propaga em escala contagiosa, repete-se sempre as mesmas ideias, os mesmos sentimentos e as mesmas falas; ainda se pode destacar um respeito fetichista pelas tradições, um horror ao novo que pode ou poderia modificar as suas reais condições existenciais (2018, p. 56). Por fim, observa-se seu caráter hipnótico que parece paralisar a atividade cerebral do indivíduo que tem sua vontade dirigida pelo hipnotizador. Em resumo, enquanto membro de uma multidão, o sujeito já não é um sujeito, mas um signo de impotência, isto é, um autômato.
Le Bon é preciso: “pelo simples fato de fazer parte de uma multidão, o homem desce portanto vários graus na escala da civilização” (2018, p. 36-37). Se isoladamente pode ser tomado como um homem culto, na multidão nada mais é do que um bárbaro, expressando a violência e a ferocidade que lhes são próprias e podendo, portanto, facilmente converter-se em criminoso. As características reveladoras da multidão listadas pelo autor francês são: impulsividade, irritabilidade, incapacidade de raciocinar, ausência de julgamento e de espírito crítico, exagero de sentimento, isto é, tudo o que demonstra infantilismo e incivilidade. Além disso, como acontece aos infantis, os componentes da multidão não admitem obstáculo entre seu desejo e a realização desse desejo, o que faz com que desapareça a noção de impossibilidade. Prossegue Le Bon: “O homem isolado reconhece que sozinho não pode incendiar um palácio, pilhar uma loja; portanto, essa tentação não se lhe apresenta ao espírito. Ao fazer parte de uma multidão, toma consciência do poder que o número lhe confere e, diante da primeira sugestão de assassinato e pilhagem, cederá imediatamente. Qualquer obstáculo inesperado será freneticamente rompido… o estado normal da multidão contrariada é o furor” (2018, p. 41).
Na multidão as ideias fixas se transformam em ato e, uma vez que todo aspecto de racionalidade e criatividade se encontram ausentes, aflora uma credulidade excessiva de confiança em tais atos, fazendo com que facilmente se criem e se propaguem as “narrativas mais extravagantes”. A circulação dessas extravagantes narrativas resulta da completa credulidade, além das “prodigiosas deformações que os acontecimentos sofrem na imaginação de indivíduos reunidos” (218, p. 43). Os acontecimentos se desfiguram, perdem a logicidade, a coerência, a plausibilidade. Ou seja, impera o mecanismo das alucinações coletivas (2018, p. 44), embora nada disso seja percebido pela multidão. Como é próprio das alucinações, toda elaboração imaginativa ganha a vivacidade das coisas reais, não sendo possível diferenciar o real do irreal. Ou seja, não é o critério de veracidade ou de falsidade que afetam a imaginação das massas. Em realidade, quanto mais impactante for uma ideia, quanto mais for capaz de atormentar o espírito, mais a multidão fica por ela impressionada e é esse o caminho que os líderes utilizam para governar as multidões.
Como a multidão só se impressiona por sentimentos excessivos, o líder que a seduz deve abusar das afirmações violentas. “Exagerar, afirmar, repetir nunca tentar demonstrar qualquer coisa por meio de um raciocínio são os procedimentos de argumentação familiares aos oradores das reuniões populares” (2018, p. 52). O autoritarismo e a intolerância estão presentes por toda parte, de modo que ainda que os indivíduos possam operar o contraditório e a divergência, a multidão nunca as suporta, tendo por conseguinte, a necessidade de “submeter, imediata e violentamente, todos os dissidentes a suas crenças” (2018, p. 55).
Não é por outra razão senão por essa que as multidões se voltam para os tiranos que vigorosamente as dominam, erguendo a eles as mais altas estátuas e se curvando servilmente à sua forte autoridade.
Em decorrência da violência e do extremismo que lhes são próprios, nas multidões simpatia se torna adoração e antipatia se torna ódio (218, p. 71). Por isso Le Bon diz que é característico das multidões o sentimento religioso ou que as crenças da multidão têm a forma religiosa (2018, p. 72), isto é, a adoração de um ser supostamente superior a qual os indivíduos cegamente se submetem, sem questionar seus dogmas e a consequente condição de inimigo a todos que não admitem o mesmo credo. O líder que fanatiza a multidão se torna o guia dos sentimentos e das ações, submete as vontades, e é aclamado como uma figura sobrenatural e mesmo miraculosa. Tais sentimentos religiosos estão sempre prontos a renascer, em qualquer tempo da história.
O líder tem um papel considerável na condução do seu dócil rebanho. Admirado, temido, prestigiado, exerce sobre os membros do grupo um fascínio que entorpece sua capacidade crítica ao mesmo tempo que preenche sua alma de respeito. Esse prestígio que tem a forma de um magnetismo (2018, p. 127) e é suficiente para todo tipo de permissibilidade ao líder conferida – pode-se maltratar os homens, pode-se massacrar milhões que tudo é permitido e legitimado.
Por fim, Le Bon ensina que os membros da multidão confundem crime e dever, fazendo um passar pelo outro. Diz ele: “os crimes das multidões geralmente decorrem de uma poderosa sugestão, e os indivíduos que deles tomam parte convencem-se em seguida de ter cumprido um dever” (2018, p. 151).
LE BON, Gustave. Psicologia das multidões. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.