Alguns comentários sobre o conceito de sincronicidade – reedição
Richard Wilhelm, um diplomata e sinólogo, que fez a mais completa tradução do I Ching do chinês para o alemão, contou a C.G. Jung uma estória vivida por ele no começo do século 20:
“Havia uma grande seca na região de Kiang Su. Os habitantes de uma cidade onde Wilhelm estava, já não sabiam mais o que fazer. Já tinham ido ao monge budista, ao sacerdote católico, ao templo dos ancestrais, a mágicos, feiticeiros e nada de mudança na situação. Até que um dia, alguém comentou que conhecia um velho na província vizinha que sabia fazer chover. Chamaram o velho imediatamente, que após certificar-se da situação pediu uma cabana no alto de uma montanha próxima, e que o deixassem só com água a mantimentos. Após 3 dias começou a chover de maneira intensa para alegria geral. Todos queriam festejar o velho. Eu estava ali também e me aventurei a perguntar como ele havia feito aquilo. Ele me disse que não havia feito nada, mas que notou que as pessoas estavam muito perturbadas e “fora do Tao”, e que isto o contaminou. Quando ele voltou a ficar no Tao, naturalmente a ordem voltou à Natureza e a chuva caiu”. (1)
Esta estória soa estranha para os ouvidos de todos aqueles que estão acostumadas com o pensamento racional causal, onde os acontecimentos estão interligados por uma cadeia de causa e efeito de forma lógica.
Porém, para o pensamento chinês antigo, que é baseado no princípio da sincronicidade, esta é uma estória comum, porque eles tendem a juntar vários acontecimentos isolados, mas que ocorrem simultaneamente.
Assim sendo, a falta de chuva, o sofrimento do povo e a perturbação coletiva trouxeram a necessidade de uma solução diferente, já que as tradicionais existentes no local não funcionavam. A chegada do homem velho constelou um arquétipo conhecido ancestralmente pelos chineses, “o fazedor de chuva”.
O fazedor de chuva tem a ver com um atributo dos shamans, que constituíam a religião mais antiga dos chineses. Antigamente o Shaman era o próprio rei, que comovido com o sofrimento do povo, se oferecia em sacrifício para atrair a boa vontade dos deuses, como na oração do rei Tang citada nos Analectos de Confúcio:
“Eu, uma criança, presumo anunciar ao senhor, grande e soberano Deus… se pela minha pessoa, cometi ofensas, elas não devem ser atribuídas ao povo destas regiões. Se o povo cometeu ofensas, então deixe elas recaírem em mim sozinho…”(2)
Logo em seguida a chuva veio, em resposta ao sacrifício e sofrimento assumido pelo rei-shaman. Mais tarde, os reis passaram a controlar o poder político, e os shamans o poder espiritual. Com a evolução e o passar do tempo, de acordo com o Taoismo, qualquer pessoa que tivesse relação com o Tao, poderia também realizar este feito.
Podemos aqui pensar em um paralelo com a teoria dos campos morfogenéticos de R. Sheldrake, que afirma haver uma “ressonância mórfica” com sistemas do passado que influenciam sistemas atuais, como se a imagem do shaman antigo e do homem velho atual tivessem uma ressonância.
O homem velho da estória, ao se defrontar com uma situação de grande sofrimento, perdeu o contato com o Tao, ficou cindido, céu e terra separaram-se dentro dele. Mas depois de 3 dias, ao restabelecer a união entre céu e terra dentro dele, as coisas fora dele também entraram em harmonia e, então, “naturalmente choveu”.
Os 3 dias de isolamento são simbólicos; para os chineses o número 1 simboliza o céu, o masculino e o criativo; o número 2 simboliza a terra, o feminino e o receptivo; enquanto que o número 3 representa o céu e a terra juntos, cuja reunião é o Tao.
A manifestação do Tao exige da pessoa uma natureza essencialmente ética, como se diz no texto “A doutrina do meio” de MoShi:
“Somente um homem devotado a mais completa sinceridade interior pode conhecer o futuro. Esta virtude é realmente uma qualidade da Natureza, e através dela uma união do externo e do interno pode acontecer, e os caminhos do céu e da terra podem ser explicados em uma única sentença”. (3)
Jung, após ouvir esta estória de Wilhelm, disse que esta era um bom exemplo do conceito de sincronicidade e comenta-a no “seminário das visões”:
“Esta é a maneira que o oriental pensa – sem causalidade, mas sincronisticamente. O fazedor de chuva pensou, que tendo vindo a um lugar onde não chovia, tinha algo de errado com o local, mas com ele também, por estar neste local. Então ele fez o que devemos fazer quando nos sentimos errados: tentar nos colocar em ordem. Isto pode levar 3 dias – 5 ou 6 dias – não importa, mas quando ele se conectou, a chuva caiu. Não é ele que fez a chuva cair, ele simplesmente esperou até ela cair. Mas o interessante é o modo como ele trabalhou verdadeiramente de acordo com a natureza”. (4)
Mas o que é entrar em ordem? Para Jung na estória:
“O fazedor de chuva, ao perceber a situação errada, voltou seus olhos para dentro e buscou encontrar o Tao dentro dele, que acabou acontecendo também externamente. Quando ele estava centrado, a chuva caiu. É um milagre somente para aqueles que pensam causalmente, mas se pensarmos psicologicamente, então, se houver a atitude correta, a coisa certa acontece. Não é que alguém faça a coisa certa, simplesmente ela é certa, e a pessoa sente que ela tinha de acontecer assim”. (5)
Na Introdução ao I Ching, Jung descreveu a mente dos chineses antigos e comparou-a com a do físico moderno:
“A mente antiga dos chineses contemplava o cosmos de certa forma como o físico moderno, que não pode negar que seu modelo de mundo tem uma estrutura psicofísica. O evento microfísico inclui tanto o observador como a realidade observada, assim como o I Ching leva em conta a situação subjetiva, isto é, psíquica do observador no momento do evento”. (6)
O ponto de vista científico tradicional tende a separar o sujeito observador do objeto experimental, enquanto que o sincronístico considera essencial observar as realidades física e psíquica juntas.
A união ou re-união do céu e da terra, simbolicamente, seria a totalidade do individuo, o Self, a mandala e o Tao, enquanto que a chuva, naquele momento específico, seria o seu equivalente parapsicológico. Jung postulou a existência de um “Unus Mundus”, um único mundo que transcenderia a dualidade da pisque e da matéria, e que se manifesta nos fenômenos sincronísticos.
Para os chineses, o “Unus Mundus” seria o Tao, que se manifesta no mundo concreto, mas é ao mesmo tempo inatingível, como se lê no capítulo 14 do Tao Te Ching:
“Porque os olhos observam, mas não o reconhecem, é chamado de engano.
Porque os ouvidos escutam, mas não podem ouví-lo, é chamado de rarefeito.
Porque as mãos sentem, mas não podem acha-lo, é chamado de infinitesimal…
Estes são chamados de formas não formadas, formas sem forma, valores parecidos.” (7)
O Tao, que não pode ser aprendido seria uma inteligência cósmica, uma consciência universal, indefinível, indescritível e incapaz de ser aprendida pelos sentidos humanos. Este conceito está próximo ao de alguns cientistas modernas como Einstein e Pauli, que acreditavam em Deus como uma inteligência última, mas muito distante do homem e do mundo.
Em termos psicológicos, esta inteligência maior seria o Self, que na descrição da Dra. von Franz “é uma supra inteligência, muito maior que a do homem, mas é a inteligência do Inconsciente coletivo. É vasta, mas não é focalizada. Neste planeta, pelo menos, o homem tem esta consciência mais focalizada e ele pode experimentar realizações específicas de significado”. (8)
Para o homem, a busca de significado de fatos psicológicos, é muito importante, porque daí ocorre um desenvolvimento de sua totalidade, sua individuação como diz Jung, ou seja, uma integração consciente de suas quatro funções básicas: pensamento, sensação, intuição e sentimento.
Para que isto seja possível, a linguagem racional é pouco eficaz, e para Jung somente a linguagem do mito e da poesia é capaz também de incluir ao sentimento a falta de clareza do significado. Isto inevitavelmente nos conduz a uma obscuridade científica e, ao mesmo tempo, mostra onde estão os limites do encontro entre a Ciência Moderna e a Psicologia.
O grande problema para a aceitação do conceito de sincronicidade pela ciência moderna é, no fundo, o de quebrar padrões antigos e habituais de pensamento e incluir o sentimento e os valores éticos do observador, fato este que necessitaria como disse a Dra. Nise da Silveira: “um salto qualitativo nas ciências”.
Bibliografia
1- C.G. Jung, Obras completas, vol. 14, Routledge & Kegan Paul, London, 1769
2- J. Ching, The ancient sages (Sheng): their identity and their place in Chinese intelectual history,
Orieus Extrennus, Jahrgang 30, Hamburgo, 1983.
3- Mo Msi, Doutrina do meio, em “On divination and synchronicity” by M.L. von Franz, 1980, Taranto.
4- C.G. Jung, Visions Seminar, p. 333, Princenton, USA (1997).
5- C.G. Jung, Visions Seminar, pp. 1199/1200, Princenton, USA (1997).
6- I Ching, Tradução Richard Wilhelm.
7- Lao Tzu, Tao Te Ching, cap.14, p. 70, Penguin classic, UK (1986).
8- M.L. von Franz, Ordem e significado: pontos de encontro e diferenças entre a Psicologia Analítica e a Física Quachant, nº 1, USA (1981).