A Terceira Onda veio pela pandemia
O confinamento, por certo, não foi uniforme. Não foi uniforme no mundo, pois cada país seguiu à sua moda, variando em função do perfil dos governos, que oscilaram entre a ciência e o capital, e dos perfis culturais. Enquanto a Nova Zelândia teve um resultado modelar, com um governo comprometido e a população sintonizada nas medidas de segurança, outros países ficaram à mercê das pressões políticas e econômicas. O caso do Brasil foi – e continua sendo – lastimável. Variantes culturais (acesso à informação e à educação) também influenciam fortemente as medidas preventivas notadamente o lockdown. Ainda assim, um ano depois, já podemos ter uma visão clara dos impactos sociais da pandemia. A vacina se aproxima, mas sabe-se que ela não é mágica. Ainda teremos que nos precaver com máscaras, por exemplo, por um bom tempo. E não se sabe como ficarão as relações sociais após a pandemia. Uma coisa é certa: o forte avanço da informatização na vida doméstica, nos serviços (públicos e privados) e nas relações de trabalho.
A nova vida traz à tona a obra ultimamente esquecida, mas muito debatida no final do século XX, de Alvin Toffler, o futurista norte-americano que escreveu uma famosa trilogia entre os anos 70 e 90 do século passado na qual antevia a hegemonia do mundo digital. Nos três livros – “Choque do Futuro”, de 1970, “A Terceira Onda”, de 1980, e “A Mudança do Poder”, de 1990 – Toffler defende uma curiosa e coerente teoria na qual entende que a humanidade se dividiria em três grandes fases, ou ondas, que, embora sucessivas, poderiam justapor-se dependendo do contexto (como é o caso do Brasil, como se verá adiante). Chamou-as de ondas pelo fato de que haveria em cada uma um excesso de mudanças num curto de espaço de tempo, daí originando-se o choque. Para Toffler, a Primeira Onda caracteriza-se pelo modo de produção agrícola, iniciada com a Revolução da Agricultura ocorrida no Neolítico, que provocou a sedentarização. A Segunda Onda iniciou-se com a Revolução Industrial e caracteriza-se pela industrialização dos meios de produção e é alicerçada pelos bens tangíveis (petróleo, máquinas, aço) no âmbito do capital. Mas não haveria dúvida que a espinha dorsal do seu pensamento reside, sobretudo no que se refere justamente à Terceira Onda. Nessa fase toda a vida social e econômica se baseia no uso universalizado dos computadores, de amplo acesso e tornados simples aparelhos domésticos, e por isso o ser humano tenderia a viver em suas casas. Uma situação que terminou ocorrendo com o confinamento forçado provocado pela pandemia.
Com suas previsões, o termo futurista ganhou força nos anos 60 e 70 do século passado. Não se tem certeza se foi inventado para Toffler, ou se com ele foi divulgado, o fato é que sendo ele o primeiro estudioso da chamada revolução digital, os apelidos futurista e futurólogo logo lhe foram sempre atribuídos. Não sem merecer. A lista de antecipações e previsões é no mínimo espantosa. Do ponto de vista social, Toffler previu a aceleração do ritmo de vida, transformações no perfil das famílias (e no próprio conceito de família), o trabalho em casa e a customização em massa. Do ponto de vista tecnológico, previu a nanotecnologia, o boom informacional, o amplo emprego de computadores domésticos e pessoais (que poderiam ser lavados para qualquer lugar, por exemplo), a tv por assinatura e até mesmo a clonagem dos seres vivos.
A base da Terceira Onda obviamente é a segunda. Esta caracteriza-se por um ambiente de trabalho predominante físico, mecânico e repetitivo: horários fixos em fábricas e escritórios; grandes negócios e grandes unidades de trabalho, ênfase no transportes e velocidade transacional relativamente rápida. Predominam os grandes negócios e as grandes unidades de trabalho. Os alicerces e as fontes de geração de energia seriam o petróleo e o aço. Os transportes, assentados em vias físicas, são enormes redes de estradas, portos, estações de todo tipo ligando todo o mundo. Velocidade rápida nas relações econômicas garantem inovações intermitentes. Na Terceira Onda, enfim, chega-se à era digital, que ele chamava de eletrônica, onde o conhecimento e a informação são a base da economia. O capital agora estaria em bases intangíveis como a tecnologia e os softwares. A moeda é eletrônica. O trabalho mental passa a ser predominante, mais criativo, menos intercambiável; fluxo contínuo e ininterrupto, ocorrendo primordialmente em casa, mas também no carro, no avião, ou onde puder. Pequenas empresas e unidades de trabalho são mais importantes. A ênfase maior seria na comunicação (sistema neural eletrônico com base em redes inteligentes) e a velocidade transacional seria em tempo real, o que garante – e requer – inovações constantes.
A obra de Toffler foi construída em base marxista. O uso do conceito de modo de produção deixa bem claro sua matriz de pensamento. Contudo, entre a juventude militante e as obras mais famosas, seu sistema foi-se tornando moderado, ainda que sem abandonar a origem. Alvin Toffler nasceu em Nova Iorque em 1928, sendo filho de imigrantes judeus poloneses. Formou-se em letras pela universidade nova-iorquina, já que desde criança se dedicava a escrever contos e poesias. Mas foi também na universidade que cedo se dedicou à militância sindical. Mesmo abrandando suas posições, permaneceu sempre um questionador do capitalismo. Foi assim que no foguetório dos anos 60 dedicou-se a estudar e fazer reportagens sobre a área industrial e as condições de vida dos trabalhadores do estado de Ohio. Naquela mesma época, percebe que uma profunda revolução cultural estava sacudindo o Ocidente industrializado. Ele localiza o início desse período, a que chama de Era da Informação, em meados dos anos 50. Tais reflexões desaguaram no livro “Choque do Futuro”, de 1970, que daria início à trilogia. O choque em questão era um “um excesso de mudanças em um curto espaço de tempo”. E acrescenta: “O choque do futuro é a absoluta desorientação trazida pela chegada prematura do futuro. Pode muito bem ser a mais importante doença do amanhã… é um produto do ritmo grandemente acelerado das mudanças na sociedade“2. O livro vendeu milhões de exemplares e virou um documentário narrado por Orson Welles.
“A Terceira Onda” (1980) e “Mudança de Poder” (1990) completam a trilogia na previsão duma grande mudança econômica, cultural e social na qual o sistema de produção em massa se transformaria para modelos computadorizados e baseados em informação. Independentemente de concordar-se ou não, sua originalidade é inquestionável. Ele anteviu a internet, a televisão a cabo, a realidade virtual e a onipresença dos computadores individuais e domésticos. Também previu as mudanças em âmbito psicológico, social e cultural ao antever os perigos da ansiedade generalizada com a information overload (sobrecarga informativa) e o que ele chamou de “sensação de desorientação vertiginosa provocada pela chegada prematura do futuro”. De quebra, o surgimento de novas células familiares, proliferação do divórcio, aumento da criminalidade, do uso de drogas e, paradoxalmente, da alienação social. Ele entendia que tais fenômenos seriam consequência da sensação de desorientação provocada pelas mudanças e pelo excesso de demanda de informação. Um elemento fundamental de suas previsões é o fato de que para ele os iletrados do século XXI não serão aqueles que não sabem ler ou escrever, mas aqueles que não são capazes de aprender e reaprender. Ou seja, Toffler também anteviu o que hoje se chama analfabetismo digital.
Onde ele errou
Alvin Toffler por certo não previu a pandemia do coronavírus, que apressou o cenário por ele antevisto. Mas, por outro lado, a pandemia, ainda que imprevista, acelerou um processo que já estava em marcha, este, por sua vez, por ele claramente antecipado. Seu erro maior, contudo, não foi este. Toffler era na realidade um otimista. Ele supunha que as reações traumáticas às mudanças seriam absorvidas com o tempo por serem parte de um ciclo maior e que seriam contrabalançadas pela esperança do futuro. E mais. Ele vislumbrava o fim das hierarquias centralizadas e pressentia um modelo de sociedade mais aberta, centrada na figura dum híbrido de consumidor e produtor ao qual ele chamou de “prosumer”. No entanto, o mundo digital, enquanto etapa do capitalismo, não somente manteve as divisões socioeconômicas, como ainda as acirrou. O já citado analfabetismo digital, previsto por ele, aumenta o fosso das divisões culturais e sociais, enquanto a globalização – igualmente prevista por ele – dá ao capitalismo um novo fôlego, contribuindo para aumentar as distâncias não somente entre as classes sociais, como também entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento. Interessante que nesse plano ele acerta e erra alternadamente.
Outro elemento não previsto por Toffler foi o das fake news, fenômeno político que caracterizou tanto os últimos processos eleitorais dos Estados Unidos como do Brasil. Os dois presidentes eleitos aqui e lá (Trump e Bolsonaro) basearam-se no fenômeno digital escancarado das notícias falsas e boatos, sendo o caso do Brasil de proporções assustadoras, colocando a política brasileira – e mesmo o País como um todo – como o centro das chacotas mundiais. A eleição de Jair Bolsonaro, um obscuro representante do chamado baixo clero (os inexpressivos e fisiológicos deputados federais, em geral de direita, que vivem da troca de favores nos corredores da Câmara dos Deputados) foi catapultado à Presidência da República por uma série de notícias falsas divulgadas nas chamadas redes sociais, notadamente WhatsApp, Facebook e twiter. E o pior. Por mais desastroso que esteja sendo seu governo, a manutenção depois de dois anos e meio de governo duma faixa aproximada de 30% de apoio do eleitorado graças à rede de informações montada para dar-lhe sustentação política mostra o escandaloso fôlego das fake news.
Igualmente não previsto por Toffler, a sempre crescente indústria religiosa/neopentecostal, também se baseia na internet, sobretudo nas fake news. Uma infinita rede digital, que abarca todas as mídias eletrônicas, também se desenvolve com base em notícias e informações forjadas, além de conluios políticos, em geral com políticos de direita ou extrema direita. Em geral, mas nem sempre. A inusitada aliança entre o PT e a Igreja Universal terminou sendo o beijo de Judas da era petista. Uma vez tendo usado os governos Lula/Dilma para crescer, conquistar benefícios, privilégios e concessões, os neoprotestantes voltaram-se para a direita e para o golpe que vitimou a ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016. A base dessas igrejas, importadas dos Estados Unidos durante a Ditadura Militar para contraporem-se às tendências progressistas de parte do clero católico da época, era justamente o aparato eletrônico, sendo pródigas no emprego da televisão e pioneiras na internet.
Toffler e o Brasil
O futurista norte-americano também se referiu mais diretamente ao Brasil em suas previsões, novamente com mais acertos do que erros. Alvin Toffler esteve no Brasil nos anos 80, mais precisamente durante o governo José Sarney, e criticou diretamente as formas de investimentos públicos. Para Toffler, o governo deveria investir prioritariamente em educação. Ele avaliava que países como Brasil vivem simultaneamente as três ondas, tal como se antecipou no começo deste artigo quando se disse que as três ondas poderiam coexistir simultaneamente. Haveria para o futurista norte-americano as três economias e sociedades no Brasil: um país de vasta produção agrícola com sociedade igualmente agrária (a primeira onda) convivendo com regiões como São Paulo, fortemente industriais (a segunda onda), ao mesmo tempo em que espaços mais reduzidos já estariam na terceira onda. Toffler entendia que somente a educação poderia sanar tais diferenças. “Esses bolsões, ou essas ilhas, de terceira onda têm mais em comum com os correspondentes bolsões nos países desenvolvidos do que com outras regiões de seus próprios países”, conclui, enfatizando que vários países da Ásia (Japão em primeiro lugar, Tigres Asiáticos em segundo e agora a China) já perceberam esses fossos, investindo em estratégias para entrar e serem bem sucedidos na Terceira Onda, mas que os governos do Brasil ainda não tinham chegado a esta avaliação. A julgar pelo atual momento político brasileiro, nossa tendência é voltar para a primeira onda. Ou pior.
Referência: TOFFLER, Alvin – Choque do futuro.