A Sociedade Intransitiva – arqueologia constitucional do século XXI
O Argumento Sintético
A Constituição que a prática política universal está debatendo, capítulo a capítulo, artigos e parágrafos, regerá o período de infância das sociedades intransitivas, de que ultrapassamos o portal em ritmo de incomparável violência social, pelo vulto das vítimas e o ineditismo da indisfarçada advocacia jornalística e da pressão dos grupos de alta renda. Ineditismo não tanto pelos cassetetes e bombas de gás de pimenta, mas pela torrente de decisões governamentais legalmente adotadas, dando fim a mais de um milênio de permanente negociação entre o altruísmo, a apatia e o interesse egocêntrico. O recurso a ditaduras tradicionais revela-se antes como peculiaridades locais do que exigência operacional das políticas impostas. Época esta, nascitura, provê disciplina severa, ainda que imprevisível e volúvel em suas regras, sem prejuízo de punições com consequências até letais. Estou me referindo à brutalidade com que são governadas, depois da crise mundial iniciada em 2008, as classes médias dependentes do setor de serviços e os trabalhadores do setor industrial da economia de todas as democracias contemporâneas. A consistência do instante não distingue entre democracias ricas, remediadas ou pobres, do norte ou do sul, historicamente estabelecidas ou de instalação recente.
A descontinuidade civilizatória é a mesma em todas as latitudes. A sociedade industrial exauriu-se. Assim como as elites asfixiaram sem substituir sociedades economicamente arcaicas e politicamente oligárquicas e colonizadas, impondo-lhes, para ajustamento ao tempo histórico, retorcidas instituições da civilização industrial, do mesmo modo vários países, no presente, ingressam em etapa revolucionária de produção da vida inteiramente desprovidos de infraestrutura material, social e cultural. Mas a adesão ao arcabouço da sociedade intransitiva é inevitável.
O projeto constitucional das sociedades intransitivas conta com a vantagem original de educar cidadãos crentes de que somente aderindo às normas constitucionais poderão opor-se a elas com alguma eficácia. Garantindo sua longevidade, portanto, pois inexiste uma “constituição” competidora à do status quo. Foi pela singularidade de admitir manifestações anunciando a urgência de superá-la que a democracia consagrou-se na comparação com organizações monárquicas e oligárquicas anteriores. Essa singularidade desapareceu.
Obviamente, tiranias nunca toleraram a propaganda de que deviam ser destruídas. Mas hoje, o acúmulo de minúsculas infrações legou ao sistema democrático-capitalista o condão de conseguir ajustar desapontamentos individuais, ou de grupos, aos filtros que os traduzem em demandas não contestatárias. Não há mais uma alternativa em disponibilidade. A periferia das relevantes arenas de poder abriga, sem dúvida, minúsculos agrupamentos, partidos estéreis, intelectuais visionários, preservados em seus direitos de oposição revolucionária. Em democracias-capitalistas atuais, é a impotência de todos que lhes assegura a legalidade no exercício do direito de oposição.
Na essência, esgota-se o combate intestino, núcleo da sociedade industrial, entre simpatia, empatia, solidariedade, egoísmo, indiferença, traição, ambição, ressentimento, frustração, torpezas – o inteiro catálogo bíblico de perversões e santidades, acrescido da galeria de heróis, heroínas, vilões e vilãs das tragédias, e ainda incorporando os censos de vilanias preparados por Thomas Hobbes, Maquiavel, os doutores da Igreja Católica e pregadores africanos, americanos, europeus e asiáticos de todas as denominações. A continuar, o combate seria, por certo, um épico sem fim natural, mantendo-se desconhecida a extensão do cardápio completo de mazelas ou generosidades que a humanidade teria a oportunidade de autorizar. E, contudo, a opulência dos futuros livros santos e opúsculos de contrição das sociedades intransitivas transformarão em singelos resumos os monumentais cartapácios religiosos indianos e em manual de primeiras letras o Velho e o Novo testamento do Ocidente. As sementes estão à mostra para cultivo dos próximos oficiantes, as futuras elites.
A hierarquia da sociedade intransitiva se enriquecerá como ocorreu com a ordem que a precedeu, adulta de milênios, desde a primeira cidade reconhecida, a de Urkut, na Suméria, há quatro mil anos. Daí, atravessando eras de crescente sofisticação organizacional, até a forma que a disputa entre as fraternas empatia e solidariedade, frente às tentações da antipatia, à volúpia do egoísmo, e à comodidade da indiferença, adquiriu no Renascimento. A Revolução Industrial distendeu a competição até a ruptura, com o incontestável triunfo do interesse sobre a simpatia, simbolicamente celebrado na derrocada do Muro de Berlim, em novembro de 1989. Fim da competição.
Compaixão, simpatia, solidariedade pertencem à família de vocábulos que, distinguindo emoções singulares nas pipetas da subjetividade, se contrapõem, por definição e consequências, a este outro ingrediente emocional: a satisfação do próprio interesse. Os primeiros concebem o Outro como sujeito receptor final dos gestos e palavras que lhes são dirigidos. No sonho de Emanuel Kant o “outro” deve ser sempre tomado como fim, jamais como meio. Já o “interesse” de Jeremy Bentham e do iluminista escocês Adam Smith percebe o “Outro” como alavanca, suporte auxiliar à sua satisfação e contentamento. Se, antes, o Muro impunha separação física entre pessoas, sua espetacular derrubada fixou-o como metonímico monumento ao extermínio dos princípios de solidariedade e altruísmo. Contaminando todas as residências, túneis e cavernas das sociedades manufatureiras, as oficinas e máquinas produtivas, as vorazes moradas financeiras, todas ofegantes ao término dos últimos três séculos de ansiedade, a tensão finalmente explodiu e o princípio egocêntrico prevaleceu. Os espasmos de solidariedade, estes, foram constrangidos à periferia das relações econômicas, políticas e sociais. É a esta ruptura de magníficas proporções que a queda do Muro de Berlim remete por metonímia. A catadura ditatorial do experimento soviético escondeu a transcendência histórica da descontinuidade.
Simpatia, empatia e solidariedade ocupam modestas posições nas investigações sociais. Preservadas nos debates sobre a racionalidade do altruísmo na secura improdutiva da teoria dos jogos, minguam as hipóteses sobre as consequências maiores e de prazo longo de emoções como “apatia”, “antipatia” e “indiferença” distribuídas pelos milhões de pessoas acantonadas nas sociedades hodiernas. A ebulição do mundo contemporâneo, com a aleatória recorrência de belicosas manifestações coletivas, obriga à retomada das reflexões teóricas sobre os estimulantes de integração, tanto quanto os estampidos da desintegração social.
Enquanto as noções positivas de simpatia, empatia e solidariedade subentendem ações cooperativas, as noções antônimas são dadas como inócuas na construção de teias de relações sociais, patrocinando somente desvarios, desordem e excitação caótica. Contudo, a apatia é substancialmente distinta da antipatia em suas consequências comunitárias, bem como a antipatia difere da noção de conflito, particularmente do conflito aberto, posto que nem mesmo o conflito político, tendo o poder como prêmio, hospeda automaticamente o sentimento de antipatia, nem este se exprime exclusivamente por meio de confrontos. Se o catálogo de emoções em disputa pelo controle da subjetividade dos agentes deve algo à genética, não está provado tratar-se de débito exclusivo. No mundo comum a mais de um ego há razões que alimentam ora esta ora aquela emoção. Em algum momento antepassado se há de indiciar um fenômeno de exemplar grandeza como marco fundador do fio da história. Nesta investigação sobre a natureza e gênese da sociedade intransitiva adota-se a moeda como o denominador universal das relações entre pessoas, grupos e nações.
A introdução da moeda produz irremediável ruptura entre o valor de uso e o valor de troca de todos os objetos de consumo, dos mais materialmente modestos aos mais simbolicamente preciosos. Moedas podem ser tribais, nacionais, sonantes ou de papel, mas a descontinuidade entre um e outro valor é universal. O fundamento do valor de uso é a simpatia e emoções aparentadas (solidariedade, compaixão, generosidade, caridade); o fundamento do valor de troca é o interesse e aparentados (segurança, avareza, egoísmo, ambição). Admitir a circulação simultânea das duas pautas de emoções pela subjetividade dos seres humanos, obrigando-os a permanente cálculo satisfazendo a equação simpatia/interesse=1, ou vice-versa, não invalida a premissa operacional do mundo da mercadoria. Desde o início da tradução monetária, em sua trajetória para a tudo transfigurar, até o intervalo de tempo entre 1980 e 2010, sucederam-se os estratagemas visando a conciliar os dois valores – equivale a dizer, os dois conjuntos de emoções -, demonstrá-los compatíveis e em equilíbrios estáveis. Em vão. Hoje, a supremacia do interesse e do valor de troca é institucionalmente indisputada e a equação prático-normativa interesse/simpatia=1 desapareceu.
O poder libertário da subjetividade se manifesta na adesão a epistemologias subversivas, despindo a hegemonia do dinheiro de ritual sacralidade ou natural inevitabilidade. Em tese, um mundo alternativo é possível; por conseguinte, viabilizar sua materialização é matéria de pura tecnologia produtiva. A atomização radical dos indivíduos, desconsiderados os nichos sem poder transformativo, moldou a sociedade em mecânico império do privado. A ordem pública não indica o comum, o ordinário, mas a ordem jurídica, ou seja, o universo do conflito, sem lugar para a cooperação gratuita. A ordem pública contemporânea expressa a intransitividade das personas que a constituem.
Exponho, a seguir, as cláusulas pétreas da carta constitucional das sociedades intransitivas:
- o amigo do meu amigo não é necessariamente meu amigo;
- o inimigo do meu amigo não é necessariamente meu inimigo;
- o amigo de meu inimigo não é necessariamente meu inimigo;
- o inimigo do meu inimigo não é necessariamente meu amigo;
- o amigo de meu amigo pode me ser indiferente;
- o inimigo de meu amigo pode me ser indiferente;
- o amigo do meu inimigo pode me ser indiferente;
- o inimigo do meu inimigo pode me ser indiferente;
- o indiferente ao meu amigo, pode ser meu amigo;
- o indiferente ao meu amigo pode ser meu inimigo;
- o indiferente ao meu inimigo pode ser meu amigo;
- o indiferente ao meu inimigo pode ser meu inimigo;
Naturalmente, disponho da liberdade de ser indiferente a amigo, inimigo ou outros indiferentes, preferindo o estatuto de mônada solitária, mas esta opção exclui a relação triangular sobre a qual incide a intransitividade – na realidade, ela contradiz a noção mesma de comunidade.
Nesta sociedade novidadeira todas as coalizões são possíveis, visto que:
- o amigo do meu amigo pode ser eventualmente meu amigo ou inimigo;
- o inimigo do meu amigo pode ser eventualmente meu inimigo ou meu amigo;
- o amigo de meu inimigo pode ser eventualmente meu inimigo ou amigo;
- o inimigo do meu inimigo pode ser eventualmente meu amigo ou inimigo.
Em universo transitivo, se A é # de B, e se B é # de C, então A é # de C. O sinal # representa toda e qualquer de associação entre A, B e C, desde altura e peso de indivíduos à hierarquia de corporações e países. Sociedades transitivas se movem segundo a sólida e reiterada expectativa de que as relações que as associam obedecem à racionalidade básica. Existem, sem dúvida, violações às regras de transitividade, tanto no mundo dos negócios quanto no das relações entre indivíduos. O poder jurídico, em geral, dispõe de recursos para punir, na área dos contratos públicos, os sabotadores das expectativas consagradas, tácita ou documentalmente admitidas. No mundo privado, prevalecem os juízos condenatórios e degradantes daqueles caídos na tentação de trair regras que, se desidratadas, ofendem aos traídos. Mais do que os prejuízos materiais e emocionais atingindo vítimas específicas, a violação da transitividade fundamental fere seriamente a estabilidade do grupo considerado, cujos laços de solidariedade se diluiriam em sequência a impunes desafios à moral coletiva.
É sobre tal fundamento de confiança que se sustentam os acordos, alianças e coalizões entre pessoas, grupos e organizações, quando agem de comum acordo, ou seja, quando procedem a ações coletivas. Maior ou menor frequência na quebra de tais regras permite classificar as comunidades em hierarquias de litigiosidade. Com volumoso ou modesto currículo de litigiosidade, contudo, é de universal validade a proposição de que, em sociedades transitivas, o fundamento básico da comunidade mantém sólida supremacia hegemônica em relação à incidência de quebras de conduta, pública ou privada. A clandestina ou expressa manifestação dos conflitos intransitivos, minoritários, ainda que em sociedades de elevada litigiosidade comparativa, são impotentes para contaminar e comprometer a estabilidade e previsibilidade macroscópica dos grandes agregados populacionais. As regras de transitividade e intransitividade, incluindo episódicas substituições de umas por outras dispõem sobre a evolução normal das sociedades, nas quais a propriedade do adjetivo “normal” se refere à ausência de violência generalizada na competição entre distintos conjuntos de valores.
Outro é o solo maleável e surpreendente sobre o qual vivem as sociedades intransitivas. As conexões vigentes entre A, B e C no dia anterior continuariam, tem tese, em vigor, mas não será incomum tenham sido essencialmente alteradas. O ineditismo histórico de tal fenômeno consiste em que cada indivíduo abrigado em tais comunidades não prefere, em absoluto, que a ordem do mundo, por assim dizer, seja “desordenada”, imprevisível, repleta de fraturas nas conexões entre indivíduos e grupos. De modo radicalmente oposto aos naturais do mundo transitivo, que são adeptos incondicionais da estrutura de conectividades, os nativos das sociedades intransitivas teriam preferência por outra dinâmica de relacionamentos. Todavia, lado trágico da supremacia intransitiva, nem mesmo a preferência majoritária de seus agentes é apta para transfigurar o mundo em que vivem. O poder intangível da instabilidade das normas é superior à capacidade dos agentes privados em substitui-la por acreditada previsibilidade. Embora paradoxal, a contrariedade existencial dos agentes resulta de inescapável drama expressando o dilaceramento subjetivo que lhes é imposto pela objetividade intransitiva.