A separação do astro: Os desastres ambientais, a pandemia e a necessidade da ciência
As origens da palavra desastre apontam para a separação do astro; logo, a má sorte, a desgraça calamitosa e totalitária que aniquila o que existia previamente.
A Escritura do Desastre, obra do filósofo Maurice Blanchot, estimula a reflexão:
Se o desastre significa estar separado da estrela (o declínio que marca a desorientação quando é interrompida a relação com a casualidade que vem do firmamento), ele indica a queda sob a necessidade desastrosa. Seria a lei o desastre, a lei suprema ou extrema, o excesso da lei não codificável: a isso somos destinados sem que nos diga respeito? O desastre não nos olha, ele é o ilimitado sem consideração, o que não pode se medir em termos de falha, nem como a perda pura e simples.
Nada é suficiente para o desastre; isso significa que, assim como é estranho à pureza ruinosa da destruição, a ideia de totalidade não pode delimitá-lo. Se todas as coisas fossem alcançadas por ele e destruídas – todos os deuses e homens voltassem à ausência – e se nada substituísse tudo, ainda seria demasiado e muito pouco (Blanchot, 1980, p. 9).
O desastre assola dramaticamente a realidade e apaga as formas pretéritas. A exploração intensiva do ambiente tem engendrado a acentuação de fenômenos violentos e destruidores. A eclosão da pandemia da Covid-19 pode ser mais um sinal do quanto a própria espécie humana ameaça o seu habitat.
Em meio a um cenário de angústia ambiental, o colapso da biodiversidade é causado antropogenicamente, entrelaçado com toda uma série de mazelas, incluindo aquecimento global, derretimento de geleiras que poderão mudar as correntes oceânicas, pico de extração de recursos naturais, vastas zonas de pobreza estrutural e poluição intensa, indústrias de alto impacto e grandes zonas de monoculturas agrícolas (Schuster, 2014, p. 164-165).
Os riscos são criados e potencializados, inconsequentemente, pelos homens, na sua infinita saga de dominação da natureza (da qual, mesmo quando não se dão conta, são parte). O imediatismo, tanto econômico quanto cultural, deliberadamente esquece o passado e não se importa com o futuro.
Contudo, não convém negligenciar a história: “todas as coisas da vida que uma vez existiram tendem a recriar-se” (Proust, 2006, p. 88). A sabedoria presente nessa afirmação sugere que se desperte para a capacidade humana de se antecipar aos fatos bons e maus que se renovam no ciclo da vida.
O rompimento da barragem de rejeitos da mineração em Brumadinho, em 2019, rememorou a tragédia de Mariana, ocorrida em 2015, assim como tantas outras ao redor do mundo, como vergonhosos exemplos de desastres ambientais que ensejam pesarosa indignação, mas dos quais é preciso tirar lições para que não aconteçam novamente os danos sofridos em uma cadência perturbadora.
Uma repetição não religiosa, sem arrependimento nem nostalgia, um retorno não desejado. Não seria o desastre, então, a repetição – a afirmação – da singularidade do extremo? (Blanchot, 1980, p. 14).
Não são fortuitas as comparações entre a pandemia da Covid-19 e a da chamada gripe espanhola, que atingiu o mundo de 1918 a 1920. Em 2020, contudo, a ciência dispõe de muito mais recursos que há um século.
O modo como uma sociedade preza e valoriza o conhecimento científico reflete a sua maturidade política e a sua capacidade de superação das crises mais agudas. A construção científica tem sido a sua maior aliada em prol não apenas da sobrevivência, mas do ganho de qualidade de vida. Seria insensato caminhar no sentido oposto, pondo a perder a experiência arduamente acumulada.
É essencial ter consciência de que o delicado equilíbrio que consente, em diferentes contextos, a existência humana, pode não durar para sempre. Enquanto as esferas de poder se quedam inertes ou impotentes, resultam marcas permanentes para os ecossistemas e populações afetadas, agravadas pela perda de muitas vidas e pelo comprometimento do bem-estar (Mattietto, 2020, p. 83).
Para lidar com esses desafios, os desastres devem ser examinados e suas causas precisam ser escrutinadas. Impende estabelecer, com evidências comprováveis, uma estrutura político-jurídica sustentável.
O não conhecimento não é não saber nada, nem mesmo é o conhecimento do “não”, mas o que toda a ciência ou ignorância dissimula, ou seja, o neutro como não manifestação (Blanchot, 1980, p. 103).
As catástrofes de grandes proporções enfatizam a carência inadiável de engrenagens legislativas e administrativas e destacam a necessidade de instituições “capazes de superar a tendência humana de deixar de apreender todo o alcance espacial e temporal dos riscos ambientais gerados pela tecnologia” (Lazarus, 2007, p. 1020).
Não permitir esse aprendizado constitui uma demonstração arrogante de obscurantismo e não o colocar em prática é um verdadeiro desperdício. Estudar os desastres ambientais há de servir para que não ocorram outros. Por sua vez, compreender amplamente a pandemia da Covid-19, inclusive pelos ângulos antropológico e social, não apenas médico e biológico, deve ajudar a humanidade a enfrentá-la e vencê-la.
O conhecimento estruturado deve prevalecer sobre o senso comum. A prudência e a escala gradual de ações e intervenções devem substituir o improviso ganancioso e a formulação de políticas intempestivas.
É imprescindível planejar e gerir de modo consistente, sem perder de vista a elaboração, a difusão e a implantação, com bases científicas, do direito e das políticas públicas.
Referências
BLANCHOT, Maurice. L’écriture du désastre. Paris: Gallimard, 1980.
LAZARUS, Richard J. Environmental Law After Katrina: Reforming Environmental Law by Reforming Environmental Lawmaking. Tulane Law Review, v. 81, n. 4, p. 1019-1058, Mar. 2007.
MATTIETTO, Leonardo. Environmental catastrophes law and literature: Maurice Blanchot and The Writing of the Disaster. Direito das Políticas Públicas: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIRIO, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 79-89, jan./jun. 2020.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Trad. por Mário Quintana. São Paulo: Globo, 2006. v. 1.
SCHUSTER, Joshua. How to Write the Disaster. Minnesota Review, n. 83, p. 163-171, 2014.