A psicologia do fascismo por Bataille
Para minha amiga Gisele Rodrigues
Introdução
O fascismo não é uma experiência política exclusiva de uma nação ou circunscrita a um tempo histórico. Mesmo em uma democracia, isto é, em um regime de eleição livre, pode-se ficar sob a dominação de um tirano ou de um fascista. Foi nesse sentido que Umberto Eco (2019), em uma conferência proferida em 25/04/1995, apresentou o seu conceito de Ur-fascismo ou fascismo eterno, cujas características não estão reunidas ou são próprios de um único modelo político, mas estão pulverizadas pelos diversos modelos existentes ao longo da história. Desse modo, onde quer que uma de suas características apareça, forma-se aquilo que o autor chama de “nebulosa fascista”.
O fascismo não encontra sua unidade nas condições econômicas ou políticas que lhe servem de base, mas, como ensina Bataille, na sua estrutura psicológica própria. Ou, para dizer como Reich (2001), as massas não foram enganadas – elas desejaram o fascismo. É na base das psicologias das massas que reside a força do fascismo, e Bataille, em seu texto A estrutura psicológica do fascismo, de 1933, nos detalha como funciona esse desejo, ou seja, como se dá a influência da estrutura da psique humana na forma fascista que um Estado qualquer pode assumir. Tal influência, em Bataille, parte da distinção fundamental entre mundo homogêneo e mundo heterogêneo, entre o sufocamento e o desejo de emancipação de determinada forma de vida.
Nesse sentido, o fascismo pode emergir em qualquer país, em qualquer nação, podendo se manifestar em cada sujeito. Logo, diferentemente dos que sentem pudor em usar o conceito “fascismo” ou “fascista” para as experiências políticas contemporâneas, devemos, ao contrário, não limitar seu uso apenas aos que, abertamente, usam as insígnias do fascismo, e sim detectar sua presença no cotidiano. O fascismo nosso de cada dia ou o fascismo que portamos em nós mesmos não depende simplesmente de nossa filiação política ou do voto que depositamos nas urnas. Como diz Foucault, em seu prefácio sobre o Anti-Édipo, somos fascista mesmo (e sobretudo) quando nos acreditamos um militante revolucionário.
1 Mundo homogêneo e mundo heterogêneo
A impotência em assimilar o que se recusa às classificações, às leis, à medida; a dificuldade em abordar o não explicável, em abordar aquilo cuja matéria é anterior à redução intelectual, traduz o gosto pelo que Bataille chama de homogêneo (2022, p. 29). Por outro lado, a violência, a desmesura, a loucura, a conformidade com sentimentos extremos, o inconsciente, o pavor súbito, o crime, enfim, tudo o que arruina a consciência tranquila (2003, p. 25) trazem a realidade da força que rompe o curso regular das coisas, trazem o transbordamento do ser, trazem o contraste com a vida comum, ordinária, e revela o incomensurável, ao mesmo tempo que explicita o quão fastidioso e impotente é a homogeneidade tranquila.
Bataille chama de heterogêneos os elementos difíceis ou mesmo impossíveis de assimilar. Em sua obra é o conceito de erotismo que vai se referir ao que não pode ser reduzido à homogeneidade, ao que não pode ser objeto de uma determinação positiva (2022, p. 27), se situando para além do que pode ser considerado pela inteligência humana, para além do que é simples e definível – o que se abre à vagueza e à variação.
2 O erotismo
O termo erotismo introduz uma expectativa equívoca, já que de modo ordinário se refere à sexualidade, à excitação sexual ou ao seu estímulo. Mas em Bataille ele é aquilo sobre o que é difícil falar – o erotismo é o mais misterioso dos problemas e implica uma vida que se abre à exuberância. Ele é o mais intenso dos movimentos e, por isso, diz ele, está situado no cume do espírito humano. E o que é o cume do espírito humano? É abertura a todo possível, é expectativa que “nenhuma satisfação material pode apaziguar e nenhum discurso iludir” (1980, p. 246). É uma “exuberância de vida” (1980, p. 13).
A experiência erótica, portanto, situa-se fora da vida de todos os dias, permanecendo essencialmente separada da comunicação que normalmente fazemos das nossas emoções (1980, p. 224), está para lá daquilo que vivemos presencialmente e, portanto, refere-se a algo que só é possível sob a condição de sairmos do mundo em que estamos atualmente. Ou seja, a medida do erotismo existe para nós como se não existisse e pressupõe a oposição do homem a si próprio (1980, p. 228) – tal como para Nietzsche ou Bergson, para Bataille o cume do espírito humano pressupõe a oposição do homem a si próprio. Nesse sentido, a experiência erótica está fundada em um princípio de dissolução.
Bataille diz também que o erotismo é um dos aspectos da vida interior (1080, p. 27). A experiencia interior do homem é dada quando ele tem a consciência de se rasgar a si próprio. Ou seja, o erotismo é o que leva o homem a por o seu ser em questão. É, diz ele, o eu perco-me (1980, p. 29. Grifo nosso). Há uma flagrante perda implicada pelo erotismo e uma imensa revolução se produz quando se é capaz de ultrapassar a consciência objetiva que limita o sujeito, ultrapassar a razão e seus balizamentos utilitários e ortodoxos em favor de um excesso, uma exuberância, uma abundância, uma revolução exasperada que, nos travessando, nos leva a uma nova experiência da existência e à própria possibilidade de pensar. Bataille diz que o pensamento só se consuma em nós mediante o excesso porque pelo excesso nos deparamos com o que é intolerável de ser visto, com o que se situa antes de tudo, o que destrói, vertiginosamente, todos os limites (1981, p. 27-29). O excesso é o inverso da vida, uma modificação de tudo o que está dado na existência, a ruína do ser.
Duas faculdades são instrumentos fundamentais ao homem comum: a consciência e a razão. Tais faculdades levam em consideração tudo o que é simples e definível, mas negligenciam o vago e o variável, de modo que elas se mostram insuficientes para pensar a própria ideia de erotismo. A consciência clara é acima de tudo a consciência das coisas, e o que não tem nitidez exterior, ou seja, o que não se conforma sob a forma de coisa não se torna claro à primeira vista para essa consciência (BATAILLE, 1980, p. 144-145). Em realidade, aquilo que é irredutível à grosseria das coisas tem que ser considerado como coisa, tem que ser adaptado à ideia de coisa para poder ser claramente compreendido e “é pelo trabalho que o homem regula o mundo das coisas, é pelo trabalho que o homem se reduz, neste mundo, a ser uma coisa entre outras” (1980, p. 140). Sendo o mundo das coisas um mundo de degradação, de diminuição, pelo trabalho o sujeito se degrada e se diminui; se subordina e se subjuga, se afasta da imensidão imanente.
As verdades da nossa experiência interior e do erotismo não sofrem a redução homogênea e, por conseguinte, escapam à apreensão da consciência clara. O mundo exterior é o mundo das coisas, mas o mundo do espírito, ou mundo interior, próprio do erotismo, é o mundo que se opõe ao máximo à redução do homem à condição de coisa. Ou seja, o erotismo é um modo de resistência à coisificação, à operação de redução da vida que há em todos nós que se traduz no enquadramento do homem como um ser que trabalha, produz, conserva e goza pouco. O erotismo, no que tem de íntimo e incomensurável, é que torna possível a não redução do homem à força do trabalho, a instrumento, à coisa. Diz Bataille: “a animalidade, ou a exuberância sexual, é em nós aquilo que faz com que não possamos ser reduzidos a coisas” (1980, p. 141). Nesse sentido, há na humanidade um elemento irredutível à coisa e ao trabalho, fazendo com que o homem não possa ser diminuído, esmagado. Mas, quando o homem, dominado pelo mundo da produção, se torna um animal que trabalha, um ser submetido ao trabalho, o homem necessita, justamente para que tal submissão se dê, renunciar a uma parte dessa exuberância.
Ou seja, a submissão ao mundo do trabalho, da produção, do capital se dá às custas da perda da exuberância da vida. Nesse processo de sujeição a razão utilitária é aliada da vida homogênea, mas sua força não é absoluta, posto que o desejo de heterogeneidade não se contém. É nesse sentido que Bataille afirma que “é insano se assujeitar sem trapacear às manobras do espírito, que desmente sem cessar o que ele mesmo estabelece” (1999, p. 101). Ou seja, as manobras do espírito podem construir a logicidade da sociedade homogênea e até manter, em certa medida, a sujeição do homem a ela, mas a força do espírito faz com que ele desminta tudo isso sem cessar. E como homem de espírito, deve-se procurar aquilo que, negando o nosso próprio limite, a nossa fraqueza, não participe dessa servidão profunda. É negando a si próprio que o homem pode dar as costas a todo tipo de servilismo e diminuição concebível e aproximar-se daquilo que é soberano no espírito e que deve ser posto para uma humanidade soberana (BATAILLE, s/d, p. 239).
Bataille afirma que a consciência alienada é uma consciência sem escândalo, tão somente uma consciência de objetos claros e distintos – consciência da inteligibilidade duradoura e apaziguadora dos objetos operáveis pelo intelecto. Mas há algo em nós que excede as representações da inteligência: algo de apaixonado, generoso e sagrado (s/d, p. 177) que nos põe diante do ininteligível do que não pode mais ser cognoscível, do que não aparenta mais ser tolerável – eis o sentimento do escândalo e do grito erótico.
O erotismo difere da sexualidade na medida em que a sexualidade humana está limitada por proibições (BATAILLE, 1980, p. 228) – tal como o incesto ou as restrições relativas ao sangue menstrual, ao que é obsceno, ao assassinato, ao consumo de carne humana -, e o domínio do erotismo é o domínio da transgressão dessas proibições. Logo, erotismo não é a atividade sexual reprodutiva, mas uma forma particular de atividade sexual. Embora todos os animais sexuados possuam atividade sexual, apenas o homem é capaz de transformar essa atividade em atividade erótica – apenas o homem pode ultrapassar tal atividade como uma atividade natural, que se caracterizaria pela finalidade da reprodução e pela preocupação com a procriação. Como diz Bataille, “a atividade sexual dos homens não é necessariamente erótica, mas o é cada vez que não é simplesmente animal” (1980, p. 27).
O erotismo também não deve ser confundido com a experiência amorosa, posto que amor é um lugar de reconhecimento, um método de reconhecimento de si e do outro. O erotismo dos corpos deixa transparecer o avesso em que se revelam sentimentos, partes do corpo e modos de ser de que vulgarmente temos vergonha, e, portanto, seu domínio é essencialmente o domínio da violência e da violação (BATAILLE, 1980, p. 17-21). O erotismo é um lugar onde perde-se a segurança da identidade – da identidade de si e do outro; é um lugar em que ocorre a perturbação da posse de uma pretensa individualidade durável. O erotismo é a força de um elemento comum que une os sujeitos e dissolve suas formas constituídas, produzindo uma fusão violenta, excessiva, disforme e desordenadora e, por isso, é o erotismo a condição para uma experiência de emancipação de si.
Os homens se distinguiram dos animais pelo trabalho e se impuseram restrições, conhecidas como proibições, que recaíam sobretudo sobre os mortos e a atividade sexual. O homem saiu da animalidade inicial trabalhando, compreendendo que era mortal e passando da sexualidade inocente à sexualidade envergonhada. O comportamento sexual humano é comportamento submetido a regras e a definidas restrições. São duas interdições que aparecem ao homem: a morte e a união sexual – dois mandamentos caros que foi preciso, pedagogicamente, ser ditado a Moisés.
Mas embora tenha edificado o mundo racional, sempre subsiste no homem um fundo de violência. Por isso a vida humana está repartida entre a proibição e a transgressão – não há proibição que não possa ser transgredida e, frequentemente, a transgressão é admitida e até recomendada (BATAILLE, 1980, p. 56). A proibição revela a insuportabilidade frente ao mundo racional dos cálculos. Logo, por mais racional que sejamos, uma nova violência sempre pode dominar-nos, o que faz com que subsista no homem um movimento que excede os limites que lhe são impostos, que se traduz em uma libertação, em um entregar-se à vida em sua plenitude e na consequente descoberta do que a realidade recusa – tal movimento que excede sempre os limites, só parcialmente pode ser reduzido (1980, p. 36). O que é descoberto naquilo que a realidade recusa é uma verdade que difere da verdade ligada à percepção dos objetos e, por conseguinte, ligada às consequências intelectuais da percepção. Não há racionalidade nem comunicação que dêem conta dessa experiência. Bataille a aproxima da experiência mística, da experiência que ultrapassa os limites comuns (s/d, p. 28-29).
Em todo homem existe o desejo de transgressão, e o erotismo é infração à regra das proibições. O desejo de matar é uma transgressão em relação à proibição de matar; o desejo de atividade sexual é uma transgressão em relação às proibições que limitam a experiência sexual. Em outras palavras, só há proibição de matar ou de realizar determinada atividade sexual em casos precisos. Assim, a todo tempo o jogo de proibição e transgressão está posto: não matarás, exceto na guerra, no duelo, em defesa própria etc. (o assassinato é crime, porque revela o desprezo pela proibição); não fornicarás, exceto no casamento (BATAILLE, 1980, p. 64). Assim como a morte cometida no sacrifício é ao mesmo tempo proibida e ritual, também o ato sexual inicial, que constitui o casamento, é uma violação sancionada. E o casamento é, acima de tudo, o enquadramento da sexualidade lícita. Ou seja, a proibição submete a transgressão a determinados limites, regulamenta as formas e impõe uma expiação àquele que se torna culpado dela. Para aquém da transgressão indefinida, de caráter excepcional, as proibições são vulgarmente violadas segundo regras previstas ou organizadas por ritos.
3 Tempo profano e tempo sagrado
Bataille distingue dois tipos de tempo que se relacionam com a proibição e a transgressão: o tempo profano e o tempo sagrado. O tempo profano é o tempo vulgar, o tempo do trabalho e das proibições. O tempo sagrado é o tempo da festa, dos deuses, isto é, o tempo da transgressão das proibições, tempo em que são admitidas ou até mesmo exigidas condutas contrárias às leis do tempo profano (s/d, p. 254) – no plano do erotismo é a licença sexual; no plano sagrado é o tempo do sacrifício, ou seja, a violação ritualística de uma proibição, a transgressão à proibição de matar (1980, p. 229).
No tempo profano do trabalho a sociedade acumula reservas, sendo o consumo reduzido à quantidade necessária à produção. Mas o tempo sagrado é o tempo da festa, isto é, da negação dos limites da vida que o trabalho impõe. Na festa o que é vulgarmente proibido é permitido, de modo que entre o tempo vulgar e a festa há uma inversão de valores. A festa consome desmedidamente os recursos que foram acumulados com o tempo de trabalho, ou seja, o que fundamenta a festa é a dilapidação, e a festa é o ponto culminante da própria atividade religiosa, daí a estreita relação entre erotismo e religião. A religião, diz Bataille, nunca deixa “de nos lançar apaixonadamente fora de nós, em grandes impulsos em que a morte não é já o contrário da vida” (s/d, p. 102).
No momento da volúpia erótica há uma ruptura evocadora da morte. A morte é também juventude do mundo, ela assegura incessantemente rejuvenescimento sem o qual a vida declinaria, porque a vida é um criar e um destruir – ela não cessa de gerar, assim como também não cessa de destruir o que gera, sendo pois a morte condição de renovação da vida. Bataille (2016, p. 41) afirma ser a morte a reveladora da impostura da realidade, da perda da verdade, do mundo dito real. Com a morte, pode-se compreender que nada dura, o que faz recordar a mentira da identidade, da estabilidade, da permanência. Ingenuamente se acredita na ligação estreita que há entre morte e tristeza, mas as lágrimas da morte não são lágrimas dolorosas e sim “expressão de uma consciência aguda da vida comum apreendida em sua intimidade” (2016, p. 42). A expressão dessa intimidade não pode ser dada nem pela discursividade nem pela consciência mas “o inchaço exorbitado, a malícia que explode apertando os dentes, e que chora; o deslizamento que não sabe de onde vem nem para onde vai; no escuro, o medo que canta a plenos pulmões; a palidez de olhos brancos, a doçura triste, o furor e o vômito … são diversas escapatórias” (2016, p. 43). É pela violência, pela destruição da individualidade, pela incompatibilidade com o indivíduo separado que a intimidade da imanência se mostra. Esta ordem íntima é inconciliável com a ordem das coisas, com a consciência, mas, pela festa, podemos dela nos aproximar, à condição de manter a consciência na obscuridade. Ou seja, só há festejo onde a consciência é impotente, onde a consciência se extravia, onde se desvia dos objetos claramente percebidos pela consciência.
O fato da vida desaparecer na morte mostra que a vida não é uma coisa, mas que possui uma potência afirmadora e maravilhada que grita no momento que se esvai e se consome para produzir o novo em sua plenitude imanente e excessiva – “a vida, a não ser em casos de impotência, mobiliza sempre um excesso de energia que é necessário despender” (BATAILLE, 1980, p. 84). É nesse sentido que Bataille diz ser o erotismo a afirmação da vida até na morte (s/d, p. 15), porque revela “o aspecto do excesso proliferado do ser”. Ao deixar de ser o que se é, afirma-se o movimento excessivo e mesmo compulsivo da vida como criação. A morte do ser, a sua destruição é também a intensidade erótica. Como diz Breton, “tudo leva a crer que existe um determinado ponto do espírito donde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, deixam de ser apreendidos contraditoriamente” (1969, p. 152)
O erotismo decompõe as figuras coerentes que nos estabelecem e nos lança num infinito que é a morte – “há na sensualidade uma turvação e um sentimento de estar afogado, análogo ao mal estar que os cadáveres exalam… Na turvação da morte, alguma coisa se perde e nos foge, uma desordem em nós começa, uma impressão de vazio, e o estado em que entramos está próximo do que precede um desejo sensual” (s/d, p. 152). Desse modo, o momento erótico não pode ser dito apenas agradável, mas por possuir um elemento de desordem, põe em jogo a vida daqueles que o experimenta. Nesse sentido, “sexualidade e morte são apenas os momentos culminantes da festa que a natureza celebra com a inesgotável multidão de seres” (Idem, p. 54), porque ambas têm o sentido do desperdício ilimitado que a natureza procede contra o desejo de durar que é próprio de cada ser. O erotismo é uma transgressão perigosa para a estabilidade geral e para a conservação da vida, mas “sem a evidência da transgressão, não é possível experimentar o sentimento de liberdade necessária à plenitude do ato sexual” (idem, p. 95). No erotismo a violência ultrapassa a proibição, revela a impotência da lei e, por isso, nada pode conter a violência erótica.
Mas ao lado do mundo heterogêneo da experiência interior, isto é, da experiência erótica com seu transbordar, seu excesso, seu desmentido, o homem vive o mundo homogêneo do trabalho e da razão. O mundo homogêneo faz com que os esforços humanos pareçam um non sense diante da morte inevitável; ao mesmo tempo, faz com que mundo do trabalho lhe pareça próprio e legítimo, ou seja, faz com que ele acredite que aí reside o seu verdadeiro pertencimento. Dito de outro modo, enquanto a operação da razão serve ao mundo do trabalho – ao mundo profundamente reduzido ao peso da utilidade-, a desordem, o movimento da violência arruina o próprio ser, e por isso o homem se identifica à ordenação operada pelo trabalho e separa-se das condições de violência que atuam em sentido contrário (Idem, p. 40-41).
É próprio do domínio do trabalho exigir um comportamento que constantemente realiza um cálculo de esforço, um cálculo ligado à eficácia produtiva. Por isso que, no tempo reservado ao trabalho, a coletividade deve se afastar dos movimentos contagiosos nos quais existe apenas o abandono imediato ao excesso, ou à violência. Ou seja, o trabalho “exige um comportamento racional em que os movimentos tumultuosos que se libertam nas festas, ou geralmente, no jogo, não são admitidos” (BATAILLE, 1980.p. 37). Tais movimentos devem ser refreados para que o sujeito consiga trabalhar, ao mesmo tempo em que o trabalho introduz o motivo que leva a refreá-los. Os sujeitos que, ao contrário, cedem a estes movimentos tumultuosos, têm uma satisfação imediata, enquanto que o trabalho só promete uma satisfação posterior. Ensina Bataille, “desde os tempos mais remotos, o trabalho introduz uma pausa, um intervalo, graças aos quais o homem deixa de corresponder ao impulso imediato que corresponde à violência do desejo” (idem, p. 37).
O trabalho também é caminho da consciência, pelo qual o homem saiu da animalidade. É pelo trabalho que a consciência clara e distinta dos objetos é dada, e a ciência sempre permaneceu aliada ao desenvolvimento técnico. Já a exuberância sexual afasta o homem da consciência, uma vez que uma sexualidade livremente transbordante diminui a capacidade para o trabalho, tal como um trabalho prolongado diminui o apetite sexual.
Há entre a consciência, estritamente ligada ao trabalho, e a vida sexual uma incompatibilidade, e, uma vez que se definiu pela consciência e pelo trabalho, o homem teve não só que moderar, mas desconhecer e até amaldiçoar o excesso sexual. Inclusive, diz Bataille, o casamento é meio de paralisar o amor profundo, que só se torna acessível por meios ilícitos. Diz o filósofo francês: “por isso se pode perguntar em que medida é que o amor profundo, que o casamento de forma alguma paralisa, poderia ser acessível sem o contágio dos amores ilícitos, os únicos que podem conferir ao amor o que este tem de mais forte que a lei” (Idem, p. 99).
Parte da energia humana dedicada ao trabalho é, portanto, retirada da consumação erótica. Logo, a humanidade no tempo humano, anti-animal do trabalho nos reduz a coisas, e o homem domesticado, reduzido ao racional e ao razoável, está privado da visão do homem integral que a humanidade pretendia ter (Idem, p. 148).
Em resumo, o mundo do trabalho é o mundo de produção, logo todo trabalho é uma operação servil, dado que produzir é submeter toda atividade ao cálculo de tempo e metas, se perguntando a cada momento pela utilidade de cada coisa produzida. Tal cálculo é um cálculo de valores homogêneos, em que os objetos produzidos são quantificados, bem como o prazer final que se alcança. Ser um sujeito racional no mundo capitalista significa uma modo de organizar as ações tendo em vista a autoconservação, a conservação dos seus bens, permitindo-se uma auto fruição moderada do prazer e sempre se perguntando pela utilidade de suas ações.
Aliás, diz Bataille, que a burguesia moderna só consente o despender para si, isto é, ela dissimula seus dispêndios aos olhos das demais classes e lhes impõe o dispêndio restrito sustentado pelas concepções racionalistas desenvolvidas a partir do século XVII, que tornaram o mundo um lugar econômico, vigilante dos modos de dispêndio, o que faz da classe burguesa, aos olhos do autor, a vergonha do homem e sua sinistra anulação (2020, p. 28).
Para Bataille aí está o verdadeiro núcleo da alienação – todo trabalho é uma forma de alienação e, por isso, vencer a alienação, se emancipar, é vencer o trabalho, liberar a atividade da forma do trabalho.
Bataille descreve a nossa sociedade como sociedade homogênea, isto é, uma sociedade em que seus elementos podem ser mensurados e é possível ter consciência desta mensuração, o que caracteriza seu caráter produtivo e utilitário (2022, p. 13). Por conseguinte, aquilo que não está na esfera da utilidade é excluído da sociedade em seu caráter homogêneo. De modo semelhante a Freud, Bataille está dizendo que a sociedade do trabalho, utilitária, necessita conter forças livres, movimentos aberrantes, heterogêneos, ou seja, ímpetos não ortodoxos para que o sujeito racional produtivo emerja. Este sujeito compreenderá que sua atividade deve ser atividade útil, ou seja, aquela que se compõe com o prazer sob uma forma moderada, visando, antes de tudo, a conservação dos bens e das vidas humanas, considerando patológico o que é desvio disso. As pessoas de bem, diz Bataille, possuem olhos castrados e “por isso temem a obscenidade. Não sentem nenhuma angústia ao ouvir o grito do galo ou ao descobrirem o céu estrelado. Em geral, apreciam os ‘prazeres da carne’, na condição de que sejam insossos” (2003, p. 58).
Na sociedade homogênea, diz Bataille, cada elemento deve ser útil a outro e cada atividade útil sempre terá uma medida comum com outra atividade útil, a saber: o dinheiro, a equivalência cifrável dos diferentes produtos resultante da atividade coletiva dos homens. Na sociedade homogênea, o dinheiro serve para mensurar todo trabalho e faz do homem uma função de produtos mensuráveis, cada um deles valendo em razão do que produz (2022, p. 14). Explica o autor:
“na ordem atual das coisas, a parte homogênea da sociedade é formada pelos homens que possuem os meios de produção ou o dinheiro destinado a sua manutenção e compra. É na classe dita capitalista ou burguesa, exatamente na parte média desta classe, que se opera, em suma, a redução tendencial do caráter humano a uma entidade abstrata e intercambiável, reflexo das coisas homogêneas possuídas” (2022, p. 15. Grifo do autor)
Como explica Vladimir Safatle (2019), na sociedade homogênea funciona um processo de autogoverno, do ponto de vista material e moral, porque só os que se autogovernam são capazes de trabalhar, de submeter suas vontades, de agir segundo um dever que o sujeito impõe a si mesmo, segundo uma lei de conduta que o indivíduo impõe a si mesmo, que é expressão de sua própria vontade.
Em síntese, para o homem domesticado, submetido, reduzido e privado, todo esforço particular que realiza, para ser válido, deve ser redutível às necessidades fundamentais da produção e da conservação, ou seja, de acordo com essa lamentável visão utilitarista, a parte mais apreciável da vida é a atividade social produtiva.
No mundo da utilidade clássica, da utilidade que se pretende material, admite-se o prazer, ou melhor, concede-se o prazer, mas somente em sua forma moderada, dado que o prazer violento é tido como patológico. A utilidade se limita pela produção e conservação dos bens, pela reprodução e conservação das vidas humanas. Tal visão não considera que a sociedade humana possa ter interesse em perdas consideráveis, em catástrofes tumultuosas ou em certo estado orgíaco.
Nesse sentido, a humanidade que, em sua quase totalidade, se alinha a essa visão utilitária, é uma humanidade que permaneceu menor frente às suas possibilidades, porque ela reconhece o direito de adquirir, conservar ou consumir racionalmente, mas exclui o dispêndio improdutivo (2020, p. 20).
Transpondo essa diferença para o campo da arte, Bataille nos ensina que os Gauleses representam uma verdadeira antítese da civilização clássica, uma vez que eles ignoraram tudo o que podia dar aos homens disciplinados uma consciência de valor e autoridade oficial – eles nada calculavam, não concebiam o progresso e davam livre curso a todo sentimento violento (1994, p. 24).
Do ponto de vista da natureza plástica, merece destaque, diz Bataille, o fato de que desde o século IV a.C. os Gauleses cunharem moeda copiando certos tipos gregos que tinham no verso a representação de um cavalo (assim também eram as moedas macedônicas). Ocorre que as moedas dos Gauleses mostravam deformações de cavalos que poderiam sugerir, ao homem comum, a inabilidade de quem as cunhou, isto é, algum defeito ou deficiência técnica, alguma incapacidade artística. De forma surpreendente, Bataille diz que os cavalos dementes imaginados pelos diversos povos primitivos não resultam de um defeito técnico, mas sim de uma afirmação de extravagância (1994, p. 25).
Parece fácil perceber que os cavalos são animais considerados entre os mais perfeitos e mais acadêmicos e sua forma foi de fato, na época clássica, representada de modo exaltante, o que revelava o seu parentesco com o gênio helênico, com a filosofia clássica idealista que busca a perfeição ideal de onde nos chegam todos os valores. Trata-se, diz Bataille, de um povo “subjugado pela necessidade de ver nobres e irrevogáveis ideias regular e dirigir o curso das coisas” (1994, p. 25), que se traduz em sua obsessão em representar corpos de cavalo e dispensar a representação de outros tipos animais como as feias aranhas e os cômicos hipopótamos que “não dariam resposta a esta elevação do espírito” (1994, p. 26).
A representação pela extravagância e seus consequentes contrassensos, pesadelos e monstruosidades feita pelos bárbaros está em contradição com as formas arrogantes da ortodoxia científica dos gregos. O que pode parecer um mal uso da razão aqui ganha o sentido também do heterogêneo, pois os gauleses se mostram incapazes de reduzir uma agitação burlesca e incoerente a parâmetros da reta razão; de educar imagens violentas e detestáveis a grandes ideias diretoras que conferem a povos ordenados a consciência da autoridade humana.
A arte gaulesa introduz elementos absurdos que inviabilizam a inteligibilidade perfeita, de modo que suas moedas revelam o desprezo pela concepção idealista dos gregos, ao mesmo tempo em que demonstram apreço à fealdade excessiva, aos arroubos ligados ao sangue, aos urros desmesurados, isto é, ao que não tem nenhum sentido, nenhuma utilidade, ao que não introduz nenhuma esperança e nenhuma estabilidade.
Os monstros imaginários dos gauleses são um insulto à correção dos animais acadêmicos, incluindo, claro, o cavalo, assim como os pântanos são uma resposta a tudo o que é harmonioso e regrado na terra. Os gauleses, com seus cavalos monstruosos, ensinam que a natureza deve ser representada em permanente revolta perante si própria – com o horror do que é informe, com as mais repulsivas formas se sucedendo em profundo tumulto (1994, p. 28). A deformação em vários graus do cavalo clássico chega, por fim, ao frenesi das formas, transgride as regras e consuma a expressão exata da monstruosa mentalidade destes povos. É uma resposta da burlesca e horrível noite humana às clarezas e às arrogâncias dos idealistas, ao desejo da imutável harmonia e hierarquia (1994, p. 27).
4 A experiência de excesso
Embora a homogeneidade social se forme e seja incansavelmente protegida na sociedade produtiva, há forças outras, ditas heterogêneas, de natureza incompatível com a sociedade homogênea, que tratam de “elementos impossíveis de assimilar” (BATAILLE, 2022, p. 27) e que, embora censuradas e mantidas fora do campo de atenção, inapreensíveis à ciência ortodoxa, não são completamente anuladas do mundo da vida. O que significa dizer que toda sociedade é atravessada pela necessidade de experiências não homogêneas, experiências que estão fora da lógica utilitária e produtiva, experiências de excesso que são irracionais do ponto de vista da lógica racional do capitalismo. Em consequência, este sistema visa eliminar todos os fatos que não podem ser concebidos pelo cálculo do prazer, mas que são motivados pelo gozo, como o erotismo. O gozo, diz Lacan (1997, p. 256), não é pura e simplesmente a satisfação de uma necessidade, o que implica dizer que em realidade o capitalismo não abre espaço ao gozo, ou antes, só o admite quando inserido em uma lógica de produtividade e contabilidade; só o admite pra inscrevê-lo em uma lógica de produção que se eleva como modo fundamental da vida humana.
A experiência de excesso envolve os elementos heterogêneos que constituem um conhecimento da diferença não explicável (Idem, p. 29) e, por essa razão, tais elementos exigem da inteligência um acesso ao que não é redutível à vida do intelecto, um acesso a um modo de ser anterior às capturas da sociedade homogênea. Esse excesso não é da ordem da grandeza, da quantidade crescente, mas sim da ordem da mudança qualitativa, isto é, ele se refere à alteração da uma suposta ou imaginária natureza que, nos tempos do capitalismo, está cristalizada como conservação, produção e cálculo racional de dispêndio. Logo, o excesso é um recusa desta natureza, uma recusa em pensar e agir de acordo com essa parametrização, uma recusa em compreender o desejo balizado e prisioneiro de uma lógica utilitarista e castradora dos padrões de utilidade próprios da sociedade do trabalho.
Os resultados do dispêndio improdutivo é o que é rejeitado pela sociedade homogênea em duas formas contrárias de excesso: uma inferior e uma superior – uma de valor elevado e outra de valor degradado; os últimos são os loucos e seus delírios, a violência e a agitação, incluindo a poética, os sonhos e sua dimensão inconsciente, a desmesura, enfim, tudo o que se apresenta com a realidade da força e do choque (Idem, p. 31-33); e a forma superior é o sagrado, atravessado por forças desconhecidas e perigosas.
O mundo heterogêneo compreende o conjunto dos resultados do dispêndio improdutivo, isto é, tudo o que a sociedade homogênea rejeita seja como dejeto (como valor inferior), seja como valor superior transcendente. Ou seja, o heterogêneo teria como dois níveis: um para cima e outro para baixo. Ou teria um valor transcendente como o sagrado ou não teria valor algum, como o erotismo. Há, pois, uma dualidade fundamental do mundo heterogêneo entre o puro e o impuro, o que pode produzir tantos atração quanto repulsão. A relação com o excesso é o gozo – para baixo e para cima. O gozo é o que é inoperante, é o que escapa da relação utilitária, o que está para além do prazer.
O sagrado pode ser considerado uma forma restrita com relação ao homogêneo. Há uma força misteriosa, impessoal desconhecida e perigosa, da qual dispõem certos indivíduos, como reis e feiticeiros. A coisa heterogênea se supõe imbuída de uma força desconhecida e perigosa e (no campo religioso) há uma certa proibição social de contato que a separa do mundo homogêneo ou vulgar.
A violência, a desmesura, o delírio e a loucura caracterizam, sob graus diversos, os elementos heterogêneos que se produzem rompendo as leis da homogeneidade social e têm certa conformidade com os sentimentos extremos. A realidade heterogênea é a da força e do choque. A existência heterogênea pode ser representada em relação à vida corrente, cotidiana como totalmente outra, como incomensurável. O heterogêneo mobiliza um gozo que não pode se submeter à lógica homogênea de valor, de utilidade.
Marcel Mauss chama de Potlatch (apud Bataille 2020, p. 24) uma forma de troca que se opõe ao escambo, isto é, uma forma de troca que não tem a finalidade de adquirir o que se necessita, mas ao contrário, tem como necessidade a destruição e a perda. O Potlatch, praticado por algumas tribos da costa noroeste dos Estados Unidos, está indissociado da festa (ele é ou causa ou ocorre na festa) e é um modelo de troca em que riquezas consideráveis são oferecidas ostensivamente com a finalidade de humilhar, desafiar e obrigar um rival. Também é possível desafiar o rival por meio da destruição de aldeias, canoas, ou outros bens que são queimados, afundados ou jogados ao mar, o que constitui a propriedade positiva da perda. Nessas práticas, aquele que efetiva a pura e simples destruição evidencia seu grande prestígio. Destrói-se o trabalho útil, retiram-se os objetos do consumo produtivo, inverte-se, pois, a lógica acumuladora do mundo do capital.
Enquanto jogo, o potlatch é contrário a um princípio de conservação e põe fim à estabilidade das fortunas tal como existia no interior dessas comunidades onde a posse era hereditária. Não há preocupação em colocar a fortuna ao abrigo da necessidade, mas ela está à mercê de uma necessidade de perda desmesurada. Aqui o poder é poder de perder e “é pela perda que a glória e a honra lhe são vinculados” (BATAILLE, 2020, p. 26).
De forma inversa aos índios americanos, a sociedade burguesa desenvolveu a mesquinharia universal. No plano social, ao se conduzir segundo a razão, o homem trabalha para aumentar a sua riqueza, para acumular mais riqueza e mais coisas. Ou seja, de modo geral, o que ocorre é que o indivíduo renuncia à exuberância do erotismo em favor da atividade racional. Mas, no momento da excitação sexual, o homem se conduz de modo oposto: despende suas forças indevidamente e, às vezes, na violência da paixão, dilapida, sem conta, recursos consideráveis (BATAILLE, 1980, p. 152).
Bataille diz que não é a necessidade, mas seu contrário, o ‘luxo’, que coloca para a matéria viva e para o homem os seus problemas fundamentais. A história da vida sobre a terra é o efeito de uma louca exuberância: o acontecimento dominante é o desenvolvimento do luxo, a produção de formas de vida cada vez mais onerosas.
Os homens se encontram constantemente empenhados em processos de dispêndio. Em sua forma acentuados estados de excitação podem ser comparados a estados tóxicos, definidos por impulsos ilógicos e irresistíveis à rejeição dos bens materiais ou morais que teria sido possível utilizar racionalmente. Por isso que quanto mais os homens são humanizados, menor é a sua exuberância.
Bataille afirma (2020, p. 21) que a atividade humana não é inteiramente redutível a processos de reprodução e conservação, e o consumo deve ser distinto em duas partes: o uso do mínimo necessário à conservação da vida e ao prosseguimento da atividade produtiva; e, pelos dispêndios improdutivos: o luxo, por exemplo das joias deslumbrantes, os enterros; as guerras (a guerra é um luxo, uma exuberância agressiva que mantém a grandeza da exuberância – nunca foi um meio em que um povo se serviu para aumentar ou acumular, pelas conquistas, a sua riqueza, como se pensa ordinariamente), os cultos (onde se faz um desperdício de sangue de animais no sacrifício), as construções de monumentos, os jogos de competição (onde ocorrem perdas de absurdas quantias de dinheiro, empenhadas sob a forma de apostas), os espetáculos e as produções da arte, a atividade sexual perversa (ou seja, a desviada da finalidade genital) – atividades que têm em si mesmas seu fim.
O conto Terpsícore, de Machado de Assis, escrito em 1886, relata a história de um casal pobre, cheio de dívidas, próximo ao despejo devido ao atraso de seis meses de aluguel, cujo almoço se resumia a pão e café, que ganha o prêmio de 500 mil réis na loteria e, ao invés de estabelecer um plano racional para o que deve ser gasto e o que deve ser poupado, decide oferecer uma grande festa que termina em um concorrido baile onde a mulher reina com o seu vestido de seda azul. A decisão de contrapor o mundo do trabalho (que traz um verdadeiro ganho) ao mundo da festa, do luxo da seda, revela um dispêndio improdutivo inassimilável na lógica racional e capitalista do trabalho.
5 O fascismo como busca pelo heterogêneo
Entretanto, Bataille ensina que essa busca pelo heterogêneo pode encontrar um outro caminho: o do fascismo. Como já foi dito, há um dualismo fundamental no mundo heterogêneo: se por um lado, ele contempla a forma do sagrado, a força misteriosa, desconhecida e mesmo perigosa que alguns indivíduos como os reis e os feiticeiros dispõem e que inclusive constituem tabu para o mundo vulgar, por outro lado, sua realidade de força e de choque será também encontrada na existência heterogênea dos líderes fascistas: “opostos aos políticos democratas, que representam nos diferentes países a monotonia inerente à sociedade homogênea, Mussolini ou Hitler logo aparecem em projeção como totalmente outros” (2022, p. 35, grifo do autor). Em tais líderes verifica-se a qualidade de uma força que os situa acima dos demais homens, força esta capaz de romper o curso regular das coisas, a tranquila homogeneidade, a estabilidade da legalidade em uma violência autorizada. Ou seja, o líder fascista enquanto expressão da heterogeneidade arrebatará aqueles que, da mesma forma, experimentam o desejo do heterogêneo, quais sejam, os homens sufocados pelo mundo do trabalho, do capital e da utilidade. Vai se dar assim, um processo de identificação entre o líder fascista e os seus seguidores que autorizam os atos cada vez mais violentos e desmedidos, fazendo uso de recursos indevidamente disponíveis nesse processo de desfiguração do mundo.
Bataille explica o gosto pelo fascismo como uma busca pelo heterogêneo, como uma desejo de ordem psicológica, daqueles que não desejam sofrer as limitações da redução homogênea. É pela miséria da vida homogênea que os sujeitos se colocam na dependência das forças imperativas do gosto fascista. E é pelo processo de identificação que eles se vêem libertos de suas limitações e miséria, ao mesmo tempo que alçados à condição de nobreza e superioridade.
É pelo caráter dual da forma do sagrado, pelo dualismo fundamental do que é heterogêneo, que os líderes fascistas são tratados como pessoas sagradas, e a ação fascista parecerá pertencer às formas superiores. Diz Bataille que a ação fascista “acena para os sentimentos tradicionalmente definidos como elevados e nobres e tende a constituir a autoridade como um princípio incondicional, situado acima de todo julgamento utilitário” (idem, p. 45).
A ação fascista, heterogênea, pertence ao conjunto das formas superiores. Ela acena para os sentimentos tradicionalmente definidos como elevados e nobres e tende a constituir a autoridade como um princípio incondicional, situado acima de todo julgamento utilitário.
O líder fascista possui uma paixão de destruição e, para realizar a opressão total, ele se serve de duas formas de autoridade: a militar e a religiosa (idem, p. 58). O exército existe em razão da guerra, a nobreza das armas denota sua heterogeneidade e cada soldado, ainda que possua uma natureza ordinária e infame, considera a glória do superior sua própria glória. Como se tal processo de identificação psíquica fosse suficiente para anular a condição de populacho. Sob o uniforme militar o populacho se transforma em ordem e brilho.
Não há como não lembrar de La Boétie (1982) que afirma que a verdadeira força da dominação não reside nem no hábito nem na alma pacificada. O segredo maior da tirania reside ali onde não se imagina – não seriam os guardas, o exército, a fortaleza ou as armas que protegeriam os tiranos, mas na vontade de dominar que cada escravo guarda em si, ou seja, no desejo de cada dominado em se afirmar dominador, de cada obediente de ser obedecido, de cada tiranizado se tornar tirano. Ou seja, o fascismo se sustenta na identificação psíquica que os indivíduos estabelecem com o líder, se acreditando, a partir de então, igualmente superior e honrado. Reich, da mesma forma, sintetiza assim a ideia desta identificação psíquica: “devendo obediência aos superiores, ele é simultaneamente o representante dessa autoridade diante dos que estão abaixo dele e, como tal, goza de uma posição moral (mas não material) privilegiada” (2001, p. 42-43).
Entretanto, continua Bataille, o exercício da dominação não pode se dar por meio exclusivamente militar, devendo se servir dos elementos de uma outra força, a saber, a atração religiosa que funcionará como fonte de autoridade social (idem p. 71). O mundo religioso, o mundo do contato com Deus – forma soberana por excelência – é caracterizado pela heterogeneidade fundamental, por sua comunidade de origem e estrutura com a natureza divina. Assim, o líder, em certa medida, será compreendido como emanação da natureza divina, concentrando seus atributos e suas forças, compondo assim uma existência fictícia. O valor religioso do líder é fundamental para a atividade fascista cujas ações se distanciam (justificadamente) daquelas que decorrem da homogeneidade como o dever e o respeito à lei. A heterogeneidade fascista explica sua violência imperativa, seu alcance desmedido, sua assim considerada existência gloriosa.
Assim, o fascismo representará a constituição de um poder heterogêneo total, tendo uma fundação tanto religiosa quanto militar. Os seguidores do fascismo se identificam com a pessoa imperativa do líder, buscando apaziguar seu estado de abandono e miséria próprios do mundo homogêneo do trabalho operariado. Tal miséria é como que transformada em glória, como se assim estivesse solucionado o problema que as contradições internas da homogeneidade apresentam (idem. p. 91).
6 O erotismo como busca do heterogêneo
Se o fascismo é uma forma de busca pelo heterogêneo e saída da sufocante sociedade homogênea do trabalho baseada na utilidade e quantificação, ou seja, se é um modo da sociedade lidar com a exclusão do que é heterogêneo, Bataille insistirá que o erotismo é a saída afirmativa do intolerável mundo homogêneo. Como diz Reich, “o caminho do fascismo é o caminho do autômato, da morte, da rigidez, da desesperança. O caminho da vida é radicalmente diferente, mais difícil, mais perigoso, mais honesto” (2001, p. 311). O erotismo é uma liberação plástica das formas e não uma forma de dominação.
Contra o fascismo só será possível contrapor outra forma de heterogeneidade, ainda mais radical, uma vez que está relacionada à assim concebida dimensão inferior da heterogeneidade, uma heterogeneidade que não se disciplina, que expressaria uma espécie de poder subversivo, fazendo com que “o que é alto se transforme em baixo, o que é baixo se transforme em alto” (Bataille, 2022, p. 94-95). Não à toa, o fascismo procura destruí-la e retirá-la do contato dos homens.
O erótico, pois, sendo o que escapa à nossa razão e, portanto, à atividade produtiva, ao cálculo do interesse, é atividade essencialmente excessiva – enquanto a razão é comedimento, o erotismo é constituído por um desejo de excesso. O excesso erótico faz com que entremos no caminho da desordem voluptuosa onde nada nos satisfaz. Se as prescrições da razão nos exige consumo moderado, gastos calculados, dispêndios produtivos, o erotismo, ao contrário, é a experiência do dispêndio improdutivo, o despender sem conta, a certeza do caráter inútil e ruinoso das nossas despesas “como se uma ferida se abrisse em nós” (BATAILLE, 1980, p. 153).
O erotismo é, pois, uma informidade. Com ele revela-se um corpo em nós que reage para além da vontade refletida dos amantes. Há uma emergência do involuntário, de forças heterônomas que nos atravessam que não controlamos, de algo que não se explica pela relação de posse, de controle, de propriedade e, por isso, radicalmente distinto da sociedade utilitária ou da sociedade do trabalho, criada pelo sistema de produção, caracterizada por uma estrutura social na qual relações e valores são baseados na utilidade, na quantificação, na comensurabilidade e na consciência dessa comensurabilidade.
O erotismo é uma expressão de forças heterogêneas e com ele o homem quer, justamente, se sentir o mais longe possível do mundo em que o aumento das riquezas e da posse é regra. O que se pretende é um mundo nada ortodoxo, “um mundo às avessas, um mundo completamente subvertido e por isso é possível dizer que a verdade do erotismo é a traição” (1980, p. 153). Eis a profunda subversão que quer buscar a emancipação (BATAILLE, 2022, p. 100) que conhece o sentimento de transbordar, daquilo que não se encerra nos limites que sufocam a vida, daquilo que parece trazer em si uma revolução.
Em sua obra A literatura e a vida, Bataille afirma que o único meio de alguém não ser reduzido à condição de coisa é querer o impossível, e Baudelaire o quis até o fim, expressando o desejo de uma vida não dominada pela atividade do trabalho e da crescente soma de recursos na busca sempre presente do que é útil. Diz o escritor francês: “ser um homem útil pareceu-me uma coisa deveras repugnante” (apud BATAILLE, s/d, p. 64).
Diz Safatle (2014) que “Bataille quer mostrar como as sociedades capitalistas não são apenas economicamente injustas, mas principalmente elas organizam nossas formas de vida a partir da exclusão de experiências que retiram da vida sua mobilidade e força” e é por isso que essa forma de vida, hegemônica, é também para nós fonte de profundo sofrimento. Nesse sentido, Bataille nos convida à emancipação, isto é, a desejar uma existência livre de limites, uma existência que nega a realidade que se atualiza e, portanto, a realidade que permanece sempre menor frente ao excesso que corre nos movimentos da vida. A razão, a ciência ortodoxa, pode ignorar essa verdade, mas se nós a desconhecermos, desconhecemos também o que somos e o que podemos ser, e por isso é inevitável a nós alcançar esse excesso, esse despender sem conta, porque é ele que nos dá a força de negação do mundo da produção, da posse e do cálculo racional. Nasce daí o homem soberano, integralmente entregue à volúpia, que não se seduz pelas fraquezas que a razão oferece, que quer aceder ao gozo mais forte, que recusa subtrair-se.
Referências:
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BATAILLE, Georges. A estrutura psicológica do fascismo. São Paulo: n-1 edições, 2022.
______. O Erotismo. 2. Ed. Lisboa: Moraes editores, 1980.
______. A noção de dispêndio. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
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______. Teoria da Religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
______. A história do olho. São Paulo: Cosac e Naify, 2003.
______. A mutilação sacrificial e a orelha cortada de Van Gogh. Lisboa: Hiena, 1994.
______. Madame Edwarda; El muerto. Barcelona: Tusquets, 1981.
______. O Padre C. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
______. A literaura e o mal. Lisboa: Ulisseia, s/d.
BRETON, André. Manifestos dos surrealismo. Lisboa: Moraes Editores, 1969.
ECO, Umberto. O fascismo eterno. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.
LA BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
REICH, Wilhelm. Psicologia das massas do fascismo. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SAFATLE, Vladimir. In:”https://www.academia.edu/8674660/Curso_Integral_Erotismo_sexualidade_e_g%C3%AAnero_sobre_Bataille_Foucault_e_Judith_Butler_2014“. Acesso em: 23 jun. 2023.
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