A lição de Semmelweis
Nos tempos em que estamos vivendo, tempos em que se deixou de ter o pudor de esconder a ignorância e se passou a exibi-la, inclusive, com orgulho, é preciso lembrar de Ignaz Philipp Semmelweis (1818-1865), médico húngaro que trabalhava no Hospital Geral de Viena. Sua história e os acontecimentos que a cercam nos revela o quão desprezível as narrativas farsescas podem ser.
Louis Ferdinand Céline dedica a ele sua tese de doutorado[1], tonando possível a todos nós conhecer a sua vida cujo empenho era destruir a estupidez, o que só lhe conferiu uma coleção de inúmeras maldades e, no limite, o levou à morte.
Antes de Pasteur, nove operações em dez, em média, terminava com a morte ou com a infecção do paciente, que era apenas uma morte mais lenta e bem mais cruel. Explicava-se a morte pelo “pus bem ligado” ou pelo “pus de boa natureza” ou ainda pelo “pus louvável”. Ou seja, explicava-se a morte, dava-se pomposos nomes para as infecções, mas não se procurava saber o que acontecia naquelas circunstâncias. Havia como que uma banalização das mortes, justificada pelo fatalismo da existência. Era como se nada pudesse ser feito ou como se a vida humana não necessitasse de todos os sacrifícios para ser salva.
Semmelweis, diplomado doutor em obstetrícia em 1846, é nomeado, nesse mesmo ano, assistente do Prof. Klin no Hospital Geral de Viena, onde este último dirigia uma das duas maternidades. Este Prof. Klin, homem arrogante e medíocre, personagem de destaque nessa trama, usará toda a influência que dispunha, bem como todos os esforços para abafar a verdade da febre puerperal – verdade essa que viria à tona a partir do gênio de seu assistente. Não há dúvidas de que aquele que distorce, impede ou manipula as descobertas científicas, sobretudo as destinadas a salvar vidas, sempre merecerão o nome de criminoso ou de auxiliar da morte, como Céline chama o Prof. Klin. Sua conduta em toda essa história, como disse Vernier, “será sua vergonha eterna”.
No Hospital Geral havia dois contíguos pavilhões de parto de construção idêntica: um deles estava sob a direção do Prof. Klin e o outro sobre a direção do Prof. Bartch. Se no último o risco de morte pela febre puerperal era considerável, no primeiro era uma certeza. As mulheres sabiam dessa estatística, de modo que só iam para a maternidade do Prof. Klin as que não tinham recursos ou apoio (muitas delas preferiam dar a luz na rua, onde, acreditem, o perigo era menor); em sua maioria eram as mais recriminadas pelos costumes intransigentes da época: eram mães solteiras. Esse fato vai revelar mais um dado da miséria humana: a permissão para conduzir a ciência pela moralidade mais rasa, que julga as condutas e se torna indiferente aos resultados, tornando-se, claro, cúmplice das mortes. Assim, o fato de haver maior incidência de mortes nesse pavilhão era tributado à vida e às práticas dessas mulheres: “uma espécie de tributo doloroso pelo ingresso na vida materna”.
Semmelweis, ao invés de se colocar como um servo do fatalismo ou apoiador da pequena moralidade, se pergunta quais as medidas que poderiam ser tomadas para que o flagelo puerperal fosse evitado e combatido.Em 1846 a mortandade chega a 96% no pavilhão do Prof. Klin, tornando evidente que se morria mais nesse pavilhão do que no outro. Muitas causas foram aventadas e na sequência descartadas, em razão de sua inutilidade: brutalidade, nacionalidade dos estudantes (chega-se a reduzir à metade o seu número com a expulsão dos estrangeiros); causas cósmicas, telúricas, de humidade atmosférica; o frio, o calor, a dieta, a lua etc, são hipóteses sucessivamente levantadas para explicar as mortes; até o sino do Padre será acusado de fomentar nas parturientes um estado de ansiedade que as predispõe para o ataque da febre puerperal – o que leva à supressão temporaria do sino.
Semmelweis acreditava que era preciso procurar a causa das mortes não em elementos exteriores, mas na própria prática médica e é assim que começa a amealhar sentimentos hostis, a provocar o ódio, a receber advertências e a definitiva promessa de demissão. Ou seja, o médico húngaro, sendo um homem de ciência, pretende ter um olhar científico e não supersticioso para um fenômeno clínico. Mas não se tolerou isso. Embora personagem do século XIX, pós iluminista, pós triunfo da ciência, a mentalidade fanática, permeada de crendice é ainda a voz dos seus colegas e superiores.
Semmelweis resolveu observar os estudantes bem de perto, em todos os seus gestos e constatou que nas dissecações esses usavam instrumentos imundos. Em razão disso, tomou a providência de instalar pias nas portas da clínica, ordenando aos estudantes para lavarem cuidadosamente as mãos antes de qualquer exame ou manipulação em uma gestante.
Essa medida de higiene (hoje tão e tão repetida como necessária ao combate da pandemia que estamos vivendo) foi considerada ridícula e de pronto rejeitada pelo Prof. klin. Como se não bastasse isso, sua proposta de medida higiênica acarretou sua demissão.
Semmelweis, a pedido de seu antigo mestre Skoda, é acolhido pelo Prof. Bartch. Na nova enfermaria o médico húngaro solicita a preparação de uma solução de cloreto de cal para que os estudantes lavassem as mãos cuidadosamente. Resultado: no mês seguinte, a mortalidade cai a 12%. Ocorre que, inacreditavelmente, Semmelweiss não conheceu o sucesso que se poderia supor, uma vez que ciúmes e rancores levaram o Prof. Klin a reunir um grande número de adversários que espalharam a desconfiança e a incredulidade frente à teoria dos procedimentos antissépticos.
Manipulações de estatísticas, acusações de resultados errôneos e mesmo mentirosos, falsidade de informações ganham livre curso em seu processo de desmoralização, inclusive pelas grandes autoridades que o ordenam sair de Viena – parece que até mesmo parturientes foram infectadas para a horrenda satisfação de não lhe dar razão. Como se vê, nenhum empenho para salvar vidas, apenas empenho para consolidar reputações. O interesse pelo poder produz uma recusa de realidade, uma transgressão ao conhecimento. Esses médicos e essas autoridades se retiram do lugar de médicos e autoridade, de atenção à vida humana que deveria ser seu compromisso primeiro, para ocupar apenas o lugar daquele que incita o embate e propaga o ódio.
A alma de Semmelweiss conhecerá o massacre. Ele passará anos de impiedosas provações que o levam primeiro a ser incompreendido, depois ao desgaste, à exaustão diante de tantas lutas pessoais, ao banimento, à fuga. É verdade que, em sua reação, ele não soube não ser brutal. Mas foi brutal com os outros e consigo mesmo, chegando ao ato fatal de sua vida quando se corta profundamente com um escalpelo que usara minutos antes para dissecar um cadáver, infectando-se mortalmente. Mas imagine o quão doloroso foi para Semmelweis se submeter à sordidez e estultítcia que reside na sagração da ignorância e nos métodos utilizados por aqueles que a glorificam. Como diz Stuart Mill, se se descobrisse que as verdades geométricas pudessem atrapalhar os homens, há muito que seriam consideradas falsas.
Como se pode ver, o embate de Semmelweis era contra a obstetrícia europeia do século XIX, contra seus pares que desprezaram tanto quanto possível suas observações e consequentes recomendações acerca das medidas profiláticas que deveriam ser tomadas contra a febre puerperal. Seu embate não era com leigos ou pessoas sem formação; não era um apelo ao povo sem cultura ou escolaridade; seu embate era com a ciência médica do seu tempo, mas uma ciência que se revelou dogmática e interesseira, desqualificada e perversa, descompromissada e manipuladora. Imagine um embate travado apenas na esfera da doxa…
Aqueles que se identificam com Semmelweis sentem, nesse momento, uma espécie de solidão glacial. Parece que o discurso de ódio produz um isolamento das nossas paixões e acreditamos que elas não despertam mais ecos. Uma impotência do espírito nos assombra.
No caso de Semmelweiss, Pasteur iria aclarar, cinquenta anos mais tarde, a verdade microbiana de modo irrefutável e total. Demoraria meio século para que os melhores espíritos admitissem e passassem a aplicar a descoberta do médico proscrito. Para Céline, a alma deste homem foi “uma florescência tão magnífica, que o destino da humanidade será, por seu intermédio, suavizado para sempre”.
Quanto a nós, aguardemos que surjam os dias que queremos.
[1] Céline, Louis-Ferdinad. A vida e a obra de Semelweis. São Paulo: Cia das letras, 1998.